REPORTAGEM

“Macumba não”: faixa expõe racismo religioso em praça na zona leste de São Paulo

Edição:
Ronaldo Matos

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Moradora que reside no local afirma que não é a primeira vez que uma faixa com mensagem de intolerância é exposta na praça pública.

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A faixa foi vista pela primeira vez na tarde de sexta-feira, dia 3 de agosto, e retirada por moradores no dia 9. (Foto: Natlia Silva)

Na última sexta-feira (3), Renato Gama, 46, morador da Vila Nhocune, zona leste de São Paulo, estava passando de carro pela praça José Patrocínio Freire, localizada no Jardim Nossa Senhora do Carmo, com destino ao Parque do Carmo. De dentro do automóvel, o filho dele avistou uma faixa estendida entre as árvores do local com a seguinte mensagem: “Macumba Não. Ambiente familiar, pedimos sua compreensão”.

Revoltado com a intolerância e discriminação presente na mensagem da faixa estendida em praça pública, ele produziu um vídeo e imagens denunciando o incidente e acionou pelas redes sociais o assistente social e babalorixá Júlio Cezar De Andrade, que é candidato a deputado estadual pelo mandato coletivo Quilombo Periférico, como tentativa de denunciar e dar visibilidade ao que tinha visto no local.

“Precisamos nos utilizarmos das leis para denunciar e educar para que situações como essa não ocorra”

Renato Gama, 46, morador da Vila Nhocune, zona leste de São Paulo e integrante da Igreja Rosário dos Homens Pretos da Penha.

“Ela traz no seu conteúdo racismo, intolerância religiosa e discriminação”, conta Gama, que é integrante da igreja Rosário dos Homens Pretos, importante patrimônio histórica da população negra na cidade de São Paulo.

Conforme o artigo 5º da Constituição Federal, ela protege o livre exercício dos cultos religiosos, ao enfatizar que é garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e liturgia, de modo a assegurar a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença.

“A narrativa do atual (des)governo brasileiro legitima esses crimes, será necessária uma ação gigantesca de educação e processar as pessoas que tem convicção nesses crimes, temos que valorizar a escola, ampliar e atualizar nossos processos educacionais”, enfatiza Gama.

Não é a primeira faixa

Natália Cristina Silva, 23, mora em frente à praça onde foi estendida a faixa, no Jardim Nossa Senhora do Carmo. Ela conta que sentiu muita revolta quando passou pela praça no dia 3 de agosto pela manhã, para levar o irmão mais novo à escola.

“Senti muita revolta! Reparei em duas coisas: o uso do termo ‘macumba’ e a justificativa dizendo que aqui é um bairro familiar, já ouvi pessoas disfarçando sua intolerância religiosa contra manifestações das religiões de matriz africana com a justificativa de ‘desperdício’ de alimentos e ‘sujeira’ nas ruas. A faixa deixou bem evidente o preconceito de quem a fez, sem qualquer fingimento”, conta Silva 

“Já fizeram outras placas com a mesma estética contra a prostituição, também com a justificativa de ser um bairro familiar”

Natália Cristina Silva, 23, é moradora do Jardim Nossa Senhora do Carmo.

A moradora considera um crime impedir a manifestação religiosa das pessoas, apenas por não concordar com os pensamentos religiosos do outro. “Além de ser moralmente errado impedir alguma manifestação religiosa, é contra a lei também. Acho irônico esses ‘cidadãos de bem’ defensores da liberdade e da lei exporem uma faixa dessa, mas é esperado que essa defesa só se aplique ao que beneficie eles”, comenta.

Oliveira revela que não é a primeira vez que isso acontece na região e que outras faixas assim já foram colocadas. “O bairro é bem religioso, tem muitas igrejas evangélicas e uma igreja católica grande que fazem muitos eventos por aqui, testemunhas de Jeová abordam pessoas constantemente, cultos evangélicos nas praças, mas nunca houve qualquer tipo de manifestação contra isso. Percebe-se que é um preconceito bem direcionado”, relata a moradora. 

O assistente social e babalorixá Júlio Cezar de Andrade registrou um boletim de ocorrência por meio da delegacia online da polícia civil. (Foto: Quilombo Periférico)

Racismo institucional e religioso

O Desenrola entrou em contato com Júlio Cezar de Andrade, assistente social, mestre em serviço social pela Unifesp, e Babalorixá da casa de axé Ilê Asè Ayedum, no bairro Lajeado, zona leste de São Paulo. Ele relata que assim que tomou conhecimento da denúncia, registrou um boletim de ocorrência por meio da delegacia online da polícia civil, e buscou mobilizar outras lideranças de religiões de matrizes africanas nas periferias da zona leste da cidade.

“No dia 04/08, na parte da noite, eu verifiquei nas minhas redes sociais que tinha uma marcação em uma foto, quando vi, era uma imagem com uma faixa escrito “Macumba não. Ambiente familiar, pedismo sua compreensão”, e diante disso começamos a fazer um processo de mobilização com algumas lideranças das comunidades de Axé e Terreiro”, diz Júlio, que foi até o local para produzir um vídeo nas redes sociais e denunciar o ato de intolerância religiosa. 

Além do boletim de ocorrência, o babalorixá conta que o mandato coletivo Quilombo Periférico que ocupa um gabinete na Câmara Municipal de São Paulo, protocolou um ofício junto a subprefeitura de Itaquera, solicitando a retirada da faixa.

Segundo o artigo 208 do Código Penal, é considerado crime de “ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo”, punido com detenção de um mês a um ano, ou multa, a conduta de quem “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar (tratar com desprezo) publicamente ato ou objeto de culto religioso.

Ciente da importância da política institucional para construir políticas públicas e projetos de lei sensíveis as questões de intolerância às religiões de matriz africana que afetam principalmente a população negra, Júlio lembra da importância de valorizar e eleger lideranças políticas do movimento negro e das periferias nas eleições.  

“Precisamos escolher candidaturas que se aliem ao projeto do movimento negro, aos projetos dos movimentos periféricos, e que defendam objetivamente o estado democrático de direito e a laicidade do Estado e denuncie as práticas de racismo estrutural e institucional”

Júlio Cezar De Andrade, assistente social, mestre em serviço social pela Unifesp, e babalorixá na casa de axé Ilê Asè Ayedum, no Lajeado, zona leste de São Paulo.

De acordo com o babalorixá que está acompanhando de perto os debates políticos importantes dentro de casas legislativas, como a Câmara Municipal de São Paulo e a Assembleia Legislativa do estado, casos como esse estão diretamente ligados à concepção de racismo institucional e religioso.

“É o racismo institucional religioso, porque ele não só criminaliza a pessoa pelo direito de manifestar a fé nas religiões e dos povos tradicionais de matriz africana, mas também ele criminaliza toda vivência, não podemos esquecer que uma menina foi tirada a força pelo poder judiciário, institucionalizado no serviço de acolhimento institucional, devido ela estar participando de um ritual de candomblé, essas práticas são as manifestações cotidianas do racismo, que está presente nas relações sociais e que vem violando e violentando nossos corpos, mentes e corações dos povos de terreiros”, explica.

O mestre em serviço social faz uma alerta importante, apontando que na cidade existem poucos lugares em que as pessoas de religião matriz africana possam fazer seus cultos. “Hoje em São Paulo, existem poucos espaços para que as religiões de matriz africana possam fazer o seu culto, principalmente no Estado de São Paulo, precisamos criar a nível legislativo, tanto no estado, como no município, espaços onde as religiões possam garantir, vivenciar e materializar o seu contato com a natureza.”

Diante dos ataques que as religiões de matriz africana vêm sofrendo tanto pelo poder público, quanto pela sociedade, Júlio compartilha um exemplo de articulação política realizada pelos povos de terreiro na Bahia, que servem de exemplo para elaborar propostas concretas de políticas públicas para combater a intolerância e o racismo religioso.

“Diferente do que tá escrito naquela placa, as religiões de matrizes africanas são sustentáveis, porque elas preservam a natureza e os recursos naturais. Na Bahia, com muita resistência das comunidades e povos tradicionais de terreiro, hoje tem um espaço, onde fazem as festas e colocam os objetos sagrados na natureza. É fundamental que o estado de São Paulo aja nesse caminho, precisamos que o estado crie estratégias para que haja respeito aos nossos corpos, aos nossos tambores, ao nosso sagrado”, conclui. 

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1 COMENTÁRIO

  1. importante denúncias como estás, os responsáveis tem de ser encontrados, isso é racismo! O ambiente familiar é a branquitute incomodada. Muito necessária essas falas sobre racismo institucional, um texto que denúncia e informa.

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