Criada para profissionalizar fazedores de cultura e democratizar o acesso aos recursos públicos, há quase uma década, a partir da luta e mobilização dos movimentos culturais das periferias da capital paulista, a Lei de Fomento à Cultura das Periferias de São Paulo se tornou realidade. Apesar da conquista histórica, agentes culturais relatam problemas nas últimas edições, desde atrasos orçamentários e descumprimento de regras do programa.
Mariana Torres* (nome fictício), moradora da região Noroeste de São Paulo que atua na articulação de políticas públicas voltadas às coletividades periféricas, relata sobre os atrasos na 9ª edição do programa, realizada em 2024. “Os coletivos foram notificados de que precisariam interromper atividades e só receberiam a segunda parcela no próximo ano [2026]. Isso prejudica projetos e fragiliza trabalhadores da cultura na periferia”, afirma.
“Ninguém mexe nos recursos do Theatro Municipal, por exemplo. Mas editais de hip-hop, forró e samba são afetados. As chamadas ‘pedaladas fiscais’ vêm gerando uma bola de neve na execução orçamentária há pelo menos cinco anos.” – Mariana Torres é moradora da região noroeste de São Paulo.
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O orçamento geral de 2025 destinado à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo atingiu o total de R$ 848.440.606,00. Para o Programa de Fomento à Cultura da Periferia, especificamente neste ano (2025), o valor alocado foi de R$ 13.700.000,00, mesmo montante de 2024.
A artista cita sobre as exigências feitas pela Secretaria Municipal de Cultura (SMC), como devolução de bens duráveis adquiridos a partir dos projetos — algo que não está previsto na lei nº 16.496 que instaura o Programa de Fomento à Cultura da Periferia de São Paulo. “Quando a Secretaria altera o edital [que institui o programa] incluindo ou excluindo regras não previstas em lei, ela está legislando sobre a lei. Isso é ilegal”, afirma.
Ela ainda conta que, apresentação de antecedentes criminais por parte dos proponentes, o que impede jovens egressos do sistema prisional de acessarem a cultura, também são exigências que vêm sendo feitas em um dos trechos do edital oficial da 10ª edição, para quem irá escrever seu projeto.
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“Também houve exigência de apresentação de antecedentes criminais, sob a justificativa de impedir que pessoas acusadas de crimes contra crianças e adolescentes trabalhem com elas. É uma medida excludente, que impede jovens, muitos egressos do sistema prisional ou Fundação Casa, de acessarem arte e cultura. Essa é uma percepção racista”, acrescenta.
Apesar da ausência de estudos mais precisos, especificamente, sobre a população negra egressa do sistema prisional brasileiro, a alta representatividade de pessoas pretas e pardas dentro dos presídios revela que essa realidade é atravessada por desproporcionalidades, com desafios na ressocialização e reintegração social.
Pedidos de devolução de bens adquiridos por meio de editais
“A SMC está legislando sobre a lei. Grupos das 7ª, 8ª e 9ª edições foram convocados a devolver bens adquiridos durante o projeto, incluindo automóveis. A lei [que institui o programa] não proíbe, mas a Secretaria exige devolução ou doação. Caso isso não seja feito, o proponente precisa devolver o valor do automóvel, o que é completamente inviável”, diz.
Coletivos e projetos prejudicados
Caso o artigo 6º da lei – que prevê investimentos em pesquisas, formações e acompanhamento contínuo – fosse plenamente cumprido, haveria um acesso mais amplo à cultura, beneficiando um público amplo, é o que aponta a agente cultural.
“Há barreiras de acesso, mobilidade e linguagem que excluem muita gente. […] Dentro das nossas periferias, temos muita gente competente, profissional e desenrolada, mas isso não é considerado, e diz muito sobre as deficiências do orçamento público cultural [em São Paulo]”, afirma.
Multiartista, produtor e articulador cultural pelo Fórum de Cultura da Zona Leste, Paulo Figueiredo* (nome fictício), destaca que a luta dos movimentos culturais periféricos ainda é pelo cumprimento integral da legislação. “A periferia não chegava nesses editais. Foi preciso criar uma política pública que fosse lei, política de Estado, e não de governo”, explica ao frisar que a lei garante participação de representantes da sociedade civil em pé de igualdade com indicações políticas. Ou seja, uma das principais conquistas do movimento social é que a lei garante que artistas, especialmente periféricos, integrem o corpo técnico e decidam em igualdade sobre a distribuição de recursos, aprovação de projetos e as políticas culturais.
No entanto, a execução prática apresenta questões como atrasos em repasses financeiros de editais, falta de acompanhamento técnico, dificuldade de acesso para coletivos que submeteram projetos ou que foram aprovados em edital pela primeira vez e descumprimento do artigo 6º. “Desde 2020 fazemos essa provocação na comissão de seleção, mas nunca houve formação voltada ao Fomento à Cultura das Periferias”, lembra.
O ativista também aponta ausência de dados e desigualdades territoriais: “Os mapas divulgados pela Secretaria [acerca dos territórios contemplados pelo Fomento], nem sempre seguem padrões consistentes. Coletivos da zona leste, por exemplo, são prejudicados pelo baixo acesso a informações gerais sobre como participar dos editais públicos. Há sub atendimento técnico, com coletivos que receberam a primeira parcela, mas não têm reunião de acolhimento. Ou seja, têm o dinheiro, mas não podem executar o projeto”, explica.
Ele explica ainda que o problema não é a falta de verba, mas a ausência de equipe para usá-la corretamente.
“A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo prefere ‘queimar grana’, pagando mais um coletivo do que estruturar estudos e formações. O ideal seria ter formadores distribuídos pelas regiões, com acompanhamento completo. Hoje, tudo está centralizado por preguiça e falta de vontade política.” – Paulo Figueiredo é multiartista, produtor e articulador cultural pelo Fórum de Cultura da Zona Leste.
Outras políticas públicas culturais, segundo ele, também sofrem atrasos, como o fomento às comunidades de samba. “Em 2023, o projeto não teve liberação da verba. Houve consulta pública, mas a Secretaria não se posicionou nem correu atrás do orçamento para cumprir a lei”, relembra o produtor cultural.
Impacto no território
Outro grupo da zona leste de São Paulo, existe há 16 anos e é um dos coletivos paulistanos que nunca acessaram os recursos relativos ao Programa de Fomento à Cultura da Periferia. Luana Souza* (nome fictício), uma das fundadoras da iniciativa, que trabalha o teatro junto às juventudes periféricas, explica que, ao começar as atividades não havia equipamentos culturais no bairro para a população local. “Criamos então as nossas próprias articulações, pensando no teatro periférico”, compartilha.
O coletivo passou por dois ciclos de pesquisa (2008-2016), produzindo espetáculos sobre gênero, raça e classe. Para levantar recursos, venderam rifas e contaram com amigos, mas só encontraram público quando circularam pelos parques da zona leste.
“Chegamos ao Parque São Rafael sem público, fizemos imersão, conversamos com moradores, fomos à Feira Livre, à avenida principal, às casas da vizinhança, para recolher depoimentos e levantar dados. A partir disso, construímos um espetáculo sobre a fundação do bairro e realizamos um cortejo pelo território”, conta sobre o trabalho do grupo.
Apesar de terem participado de outros editais, como o Programa VAI, com orientação técnica, nunca foram aprovados. Atualmente, o coletivo mantém a sede e as demais despesas de forma totalmente independente. “O nosso aluguel custa em torno de R$ 1.500 […]. Chegamos a submeter projetos que foram avaliados como não relevantes para o território. O nosso grupo recebeu notas baixíssimas. Como a Secretaria determina o que é relevância em uma periferia?”, provoca.
“A cultura funciona como prevenção social. Se houver mais verba, podemos produzir mais arte e fortalecer a economia local.” Luana é artista e moradora da zona leste de SP.
Falta de suporte e reconhecimento de artistas periféricos
Luana ainda critica a demora e a falta de funcionários da Secretaria. “A resposta para dúvidas demora, mesmo com contratos milionários sendo feitos dentro da Cultura. É importante contratar pessoas aprovadas em projetos para orientar sobre a burocracia e oferecer formações inclusivas”.
Ela destaca a necessidade de que, em geral, os editais públicos realizem as formações em horários mais acessíveis para a rotina dos trabalhadores da periferia. “[Cursos] não podem ser apenas em horários excludentes, como 10h ou 14h, porque a periferia é trabalhadora e precisa conciliar estudo, trabalho, ensaios e reuniões”, coloca.
Marcela Alves* (nome fictício), uma das representantes do coletivo MANAS, de Itaquera, zona leste da cidade, conta que, apesar dos desafios, já acessou o Programa de Fomento à Cultura da Periferia (em 2021 e 2024), mas destaca que a dificuldade de escrever projetos reflete a dinâmica geral dos editais públicos. “É um verdadeiro chá de canseira, somos direcionados de um setor para outro. Geralmente, quem acessa editais é quem escreve bem ou tem [algum assessoramento]”, diz acerca dos processos de seleção.
Pesquisa aponta centralização de recursos culturais na cidade de São Paulo
“Mesmo com formação e experiência, muitos artistas da periferia não são reconhecidos, sendo colocados ainda neste lugar de ‘amadorismo’. E quem mora na periferia acaba sendo punido por falta de informação ou suporte.” Marcela é uma das fundadoras do coletivo MANAS e moradora da zona leste de São Paulo.
Ela é mais um exemplo de quem luta para acessar financiamento público. “Por anos [eu e o coletivo em que atuo] ficamos distante desse acesso, sem tentar nos candidatar ou participar de projetos públicos”, aponta.
As inscrições da 10ª edição do Programa de Fomento à Cultura da Periferia de SP, que originalmente deveriam ter sido abertas em junho, só começaram em agosto. Inicialmente, o prazo iria até o dia 26 de setembro. No entanto, poucos minutos antes do encerramento, decidiu-se prorrogar as inscrições por mais um mês, estendendo o prazo até 27 de outubro.
A prorrogação é interpretada pelos coletivos como uma estratégia para adiar o processo de seleção e de uso de recursos do orçamento de 2025, empurrando a execução para o próximo ano. “É um efeito dominó: fechando as inscrições só em outubro, iniciando a avaliação dos projetos e formando a comissão para dar notas em novembro, os meses seguintes — dezembro e janeiro — praticamente inviabilizam o uso do orçamento deste ano. É muito óbvio que essa foi uma manobra também para postergar a execução do orçamento”, conclui Mariana.
*Os entrevistados preferiram não se identificar. Os nomes foram alterados para preservar a identidade e privacidade das fontes.
Falta de respostas
O Desenrola e Não Me Enrola procurou a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, mas até o fechamento desta matéria não recebeu resposta. O espaço permanece aberto.