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Biblioteca comunitária Assata Shakur disponibiliza acervo com obras de escritores negros

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Na garagem da casa de número 190, na Rua Chaberá, localizada no bairro e distrito da Vila Formosa, zona leste de São Paulo, é possível encontrar uma variedade de livros gratuitos, todos com autoria de escritores negros. É nesse endereço que fica a biblioteca comunitária Assata Shakur, que além de disponibilizar livros, oferece cursos, promove debates, palestras e festas que celebram revolucionários negros referências para o coletivo, como Malcolm X e Assata Shakur. 

Professor e cofundador do espaço, Kairu Kijani conta que a biblioteca se tornou um local de combate ao epistemicídio, contra o apagamento de criações e conhecimentos produzidos pela população negra. “A biblioteca é essa grande possibilidade de conhecer a nossa história e estudar os nossos teóricos, pessoas negras que produzem conhecimento e que não é tão fácil de ser acessado”, afirma o cofundador da biblioteca.

Na biblioteca Assata Shakur são realizados cursos, debates, palestras e formação política. (foto: arquivo do coletivo)

Morador do bairro e distrito do Cangaíba, na zona leste de São Paulo, Kairu aponta que a criação da biblioteca surgiu da necessidade de ter um espaço em que as pessoas pretas pudessem se encontrar, estudar, socializar e ter momentos de lazer. 

“A gente percebe o quanto a biblioteca é importante, porque vêm pessoas de diversas localidades, até de fora de São Paulo. A gente vê o quanto as pessoas [que] vêm aqui se conscientizam [e] socializam. A biblioteca é um potencial incrível para agir enquanto grupo e pensar em outras possibilidades de viver nessa sociedade que é extremamente competitiva, individualista e a gente quebra essa lógica do capital.”

Kairu Kijani, professor e cofundador da biblioteca Assata Shakur.

Kairu relembra que o processo de construção da biblioteca foi complicado, pois pelo fato de atuarem de forma autônoma, toda construção se deu a partir de recursos próprios. Outra dificuldade tem haver com o próprio diferencial do espaço. “Quando a gente, em 2017, começou a comprar livros, [o acesso a livros de escritores negros] não era como é hoje”, menciona. Ele diz que os livros eram garimpados em sebos e sites virtuais, também por conta dos preços. 

O local que atualmente comporta a biblioteca era a garagem de Edneusa, mãe de uma das fundadoras da iniciativa, Tati Nefertari. Inaugurada em 2019, pela organização Ujima Povo Preto, a biblioteca carrega o histórico da iniciativa que foi fundada por pessoas conectadas ao movimento hip-hop, negro e educacional. Kairu explica como o nome da iniciativa, assim como da biblioteca, dialogam com o objetivo deste trabalho. “Ujima vem de uma palavra suaíli, e é um princípio do Kwanzaa, que é uma celebração africana feita no final do ano. O Kwanzaa tem alguns princípios e um deles é o Ujima, que significa trabalho coletivo e responsabilidade”, explica.

A biblioteca foi criada da necessidade de ter um espaço para que as pessoas pretas pudessem se encontrar, estudar e socializar. (foto: arquivo do coletivo)

O professor pontua que Assata Shakur foi uma revolucionária preta e que se inspiraram nela por conta da mensagem, ideias e práticas da escritora e militante. “Ela fez parte da organização Panteras Pretas, nos Estados Unidos, e do Exército de Libertação Negra. Ela também teve uma passagem [na] luta pela educação [com as crianças], quando entrou no Partido dos Panteras Pretas. E é muito pela questão de como ela enxerga a luta do povo preto, a questão da autonomia e da combatividade”, explica Kairu sobre a homenagem. 

É a própria iniciativa que mantém o espaço financeiramente. Como todos trabalham com outras demandas, a biblioteca geralmente é aberta aos fins de semana, das 9h às 18h. “Mas se alguém quiser pegar algum livro é só mandar mensagem que a gente faz o possível para abrir na semana”, coloca Kairu.

Quilombinho Beatriz Nascimento

Durante o período de férias escolares, a biblioteca também realiza ações com foco nas crianças. A atividade, nomeada em homenagem à historiadora negra Beatriz Nascimento, acontece no mês de janeiro, sábado e domingo, das 9h às 17h, com café da manhã, almoço e lanche da tarde. “Elas vêm e participam das oficinas e a gente percebe o quanto esse espaço não escolar fortalece a negritude, consciência e a socialização das crianças”, observa Kairu. 

Atividade realizada com as crianças que participam do projeto Quilombinho Beatriz Nascimento. (foto: arquivo do coletivo)

“É um espaço não escolar em que [as crianças] aprendem tanto quanto ou até coisas que não aprendem na escola por conta do currículo escolar que tem muitos conteúdos eurocêntricos”, comenta o professor. 

As atividades que acontecem na biblioteca têm como base o hip-hop e Kairu conta que isso também se estende para o Quilombinho. “A gente entende o hip-hop com cinco elementos, que é DJ, grafite, Mc, B-boy e o conhecimento”, explica.

As crianças e os realizadores das oficinas do Quilombinho Beatriz Nascimento. (foto: arquivo do coletivo)

Além de hip-hop, as crianças também têm oficinas de capoeira, balé, culinária e contação de história. “No final de [cada edição] a gente faz um grafite em uma parede do bairro. Você vê a felicidade deles, [pois] é uma linguagem que acaba sendo expressada, pessoas vão passar na rua e ver o grafite que você fez”, menciona Kairu.

Segundo o professor, através das atividades as crianças percebem que diversas coisas partiram de construções realizadas no continente africano e por pessoas pretas. “Eles acabam criando senso de identidade, orgulho negro e tendo posicionamento político. É uma ética e estética negra fortalecida [junto com] os pensamentos e posicionamentos políticos”, comenta.

Kairu com as crianças na biblioteca Quilombo Seu Gustavo. (foto: arquivo do coletivo)

As interações com as crianças incentivaram o coletivo a criar um espaço exclusivamente para elas. Em 2022, o grupo fundou a biblioteca Quilombo Seu Gustavo, que é formada por livros infantojuvenis somente de escritores negros, funciona aos fins de semana das 9h às 17h, na Cidade Tiradentes.

Legado de amor e cura através das memórias ancestrais

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É muito provável que não prestamos atenção nesses sinais de conexão, ou do que quiserem chamar. 

Essas conexões podem acontecer na leitura de um livro ou o socorro inexplicado de algum desconhecido ou amigo que aparece naquele momento difícil simplesmente para nos ajudar, sem que tivéssemos pedido.

São várias situações inusitadas que poderia descrever aqui, porém, só utilizei esses exemplos para ilustrar a ideia e dizer que, para algumas pessoas isso seria só coincidência, para outras, mais sensíveis e atentas, nomearia de sincronicidade, intuição ou até mesmo ajuda espiritual. E porque não um cuidado ancestral?

Já aproveitando essa introdução para compartilhar situações vivenciadas por mim que vou discorrer na escrita deste artigo. Elencaria como conexões espirituais ou ajuda ancestral, o que importa é que tudo tem haver com o amor e cuidado que recebemos, seja no físico ou metafísico.

Sempre procurei entender meu passado, minha infância, a educação que recebi e a forma que fui criada. No fundo, sentia um vazio gigantesco por não saber quase nada sobre meus pais e antepassados, só as poucas história que tive oportunidade de ouvir da minha mãe, Rosa, onde escrevo um pouco sobre ela em alguns capítulos do livro “Obará – Escrevivências Coletivas de Autocuidado”. ]

Também aproveito para compartilhar aqui um pouco sobre ela com vocês.

Reconheci a forma de vida de minha mãe, também descrita em um dos livros indicados na oficina de Escrita de Si, conduzida pela Bianca Santana, já citada aqui anteriormente. Foi uma experiência maravilhosa, me senti muito sintonizada e conectada aos meus ancestrais. Obtive algumas respostas e tudo fez muito sentido para mim.  

Neste livro que se chama “O Espírito da Intimidade”, de Sobonfu Somé, a autora nos proporciona ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. Foi para mim uma daquelas sincronicidades e intuições bem poderosas que mostram muito o que temos a aprender com os ancestrais e nos conhecermos para nos fortalecer. 

Minha admiração por minha mãe é notória nos meus relatos no livro que escrevi. Sua força, presença e inteligência foram importantes para mim, pois vivíamos em um ambiente hostil e perigoso, pois na periferia o dia a dia era muito violento e nada fácil para uma mulher preta e viúva na década de 70, com quatros filhos pequenos. Mantê-los e educá-los como ela se propôs a fazer era muito complicado.

Intuo que ela teve muito apoio de forças ancestrais poderosas e invisíveis aos sentidos físicos e que esteve presente durante toda a sua trajetória, acolhendo suas dores, fraquezas e ainda lhe dava força para manter um comportamento firme, obstinado com os filhos e para si. Não perdia o hábito de manter o cuidado com sua aparência elegante, bonita e vaidosa como uma filha de Oxum.

Construiu uma vida digna e com um certo bem estar, mesmo com todas as adversidades com a pobreza que era presente nas nossas vidas. Contrariando as normas e regras sociais criou seu próprio mundo, suas próprias regras na vida que lhe foi imposta.

Fui criada por esta mulher admirável com características do cafuso, a mistura negra e indígena. Suas características amorosas, sua beleza, inteligência e força não passavam despercebidas. Era uma mulher preta lindíssima. Com seu bom gosto e gestos requintados, causava inveja nas mulheres e muito desejo nos homens, e por isso, muito admirada e também muito perseguida, mas adentrar os motivos disso dá um outro artigo. 

O que importa nesse momento é descrever o quanto ela viveu sua própria vida, suas crenças e os costumes de seus antepassados. Mesmo com todas as dificuldades e perseguições sofridas, não deixava de cultuar sua fé na Umbanda e nos guias. 

Ao escrever sobre ela sinto uma conexão muito forte com todas essas experiências. Minhas memórias me levam a minha infância, quando às sextas feiras eram religiosas, pois cuidava do terreiro para que a gira de Pretos Velhos, Caboclos e demais entidades chegassem num ambiente limpo, cuidado, organizado, florido. Preparado para quando iniciasse a gira, as entidades fossem recebidas de forma amorosa para dar seus passes, ensinar suas rezas, curar as feridas dos assistentes que lhes procuravam pedindo ajuda. 

Também posso dizer que nos protegiam pelos caminhos da sua vida, da minha infância e na pré-adolescência, como também de meus irmãos.

Convivi e senti a magia da cura e do socorro dos males espirituais que me afetaram e que eles sempre estavam lá para nos ajudar e curar. Ainda tive a ajuda de minha avó Ambrósia (madrasta de minha mãe) com suas rezas e benzimentos que tirava da cama com suas rezas e ervas me curando do mau olhado.

Finalizo este artigo com a certeza de que muito do que tenho escrito e trazido para nossas sessões podem estar sendo intuídos por estes antepassados que precisam ser lembrados, amados e valorizados, pois nos deixaram um grande legado. 

Hoje sigo alguns passos desta mãe e mulher que me marcou a vida de forma profunda e amorosa, deixando sua história como exemplo para ser seguido e segue me ajudando a superar minhas dores.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

“Quero que a arte seja minha principal fonte de renda”, diz cantor independente do Capão Redondo

Morador do Valo Velho, bairro localizado no distrito do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, Adan Costa, 25, conta que se aproximou da arte ainda criança e que prioriza o sonho de viver do seu talento. O artista foi uma das atrações da 3º edição do Ballroom na Sul, evento que busca exaltar o protagonismo LGBTQIAPN+ e descentralizar o movimento, realizado em setembro, na Casa de Cultura Municipal Santo Amaro, região sul de São Paulo.

Nascido em Minas Gerais, Adan se mudou para São Paulo em busca de melhores oportunidades para sua carreira na música. A partir de referências ligadas ao Dancehall e ao movimento Ballroom, o artista inclui recortes sociais em suas produções que se conectam com suas vivências no território e em espaços culturais que circula. 

Como você definiria sua ocupação?

Num sentido geral, sou artista. Sou cantor e também trabalho como stylist. Eu tenho uma marca de upcycling, que é customização de roupa, chamada DogStyle. E na vida padrão de São Paulo, eu trabalho em Call Center [e] costumo dizer que trabalhar CLT é meu hobby.

O que fez você escolher ser cantor? 

Eu gosto de arte desde que eu me entendo por gente. Desde que eu comecei a poder exercer qualquer tipo de habilidade artística comecei a colocar em prática. Eu aprendi a tocar violão com uns 10 anos de idade, ter familiaridade, criar notas [e] compor as minhas próprias músicas. Isso foi evoluindo e virou um espaço muito meu. Eu criava para exercitar, mas também como espaço de prazer, lazer e de expressão. Antes era algo muito intimista, só meu. Demorou um tempo para eu criar coragem de abrir para outras pessoas. A identificação do outro é gratificante. Você permitir que outras pessoas se identifiquem com o que você pensa, com o que sente, com o que já viu, é um espaço de cura. Quando eu tive contato com essa possibilidade, o sonho de trabalhar com a música foi ficando mais forte. Saber realmente que o que eu faço não é só um lazer próprio, mas principalmente para a identificação do outro é a função mais daora da arte. Conseguir ser um instrumento de cura para mim, e a partir da minha cura, contaminar [e] abraçar outros universos.

Quais são as suas formas de consumir cultura?

Minha principal forma de consumir cultura, mesmo que eu não queira, é através da internet. Em relação à moda, eu consumo muito de brechós, adoro moda sustentável. O upcycling tem brilhado os olhos das pessoas, principalmente na cena underground. E claro, os rolês. Quando falo de rolê na periferia é onde eu consigo ter mais referências de moda, além das referências musicais. Só de estar nesse espaço cultural já dá para absorver muita coisa. O que eu mais frequento são eventos de Dancehall, mesmo não sendo cantor de reggae.

Como você começou a frequentar esses espaços?

Eu vim de Minas [Gerais]. Estava na universidade estudando artes cênicas. Lá eu tinha contato com cultura, mas era um nicho universitário. Vir para cá [São Paulo], me trouxe abertura para nichos que são mais orgânicos nesse sentido. Eu sou um desses que vem para consumir cultura daqui e fazer cultura aqui dentro, tendo contato com pessoas que já estão há tempos nesse espaço. Minha amiga Marilu, por exemplo, ela foi criada nessa cultura e ajudou a me inserir ali dentro. Eu gosto muito de eventos que fomentam artistas periféricos. Promover um evento que fortaleça os artistas independentes faz toda diferença no cenário cultural geral.

Qual a importância das iniciativas culturais no território que você mora?

É essencial. Precisamos entender que nós somos o principal espaço de evolução da nossa própria arte. Não tem como querer transformar a arte periférica em algo global, se eu não começo primeiro pela periferia. Falando da minha vivência como artista que vem de fora e que foi criado pelo Capão Redondo, nesses quatro anos de São Paulo, esse foi o aprendizado mais importante que eu tive até agora [de] começar pelas pessoas que me influenciam e que são as minhas referências, para depois o centro da cidade tomar conhecimento de quem sou eu. Hoje me sinto muito mais preparado por ter tido essa visão, essa comunhão com os artistas que eu encontro ao longo da minha trajetória. Muitos eventos são organizados de maneira independente, em outros existe uma outra visão. Existem instituições que têm um espaço, às vezes não tem verba, não tem nem equipamento, mas só de ter um espaço seguro, já é um um ponto. Eu sou frequentador da Fábrica de Cultura do Capão Redondo. Minha última música eu gravei lá de forma 100% gratuita. Eu só preciso de um espaço digno para exercer minha arte, ensaiar, isso já fortalece muito a minha a minha carreira. Além do contato direto com a arte de outras pessoas. Não existe outro espaço para viver isso que não sejam esses. 

Como esses movimentos contribuem com a formação da sua própria identidade? 

Eu era uma pessoa na faculdade, já aqui em São Paulo, eu me identifico como outra pessoa. Em relação a referências, tanto estéticas quanto de construção de personalidade. Eu realmente precisei romper o ciclo que eu tinha onde eu morava. Em questão de produção artística, não precisa ser uma cidade grande para se fazer arte de qualidade. Mas vir para cá e ter a vivência da cidade em si, no que diz respeito a fomentar a minha arte e me auto sustentar sozinho sendo CLT,  engrandeceu muito a construção da minha pessoa como ser humano, mas também como cidadão. 

E para o futuro, o que você idealiza? 

Falando como o Adan que vai fazer um pocket show no evento da quebrada hoje, eu já estou num lugar em que eu não imaginava estar. Isso já é um ponto muito positivo. Eu já consigo identificar pessoas que acompanham o meu trabalho mesmo não estando próximo do meu círculo social, isso também é um ganho muito grande. Pensando no futuro, eu quero poder ter mais estabilidade e conforto para fazer o que eu quero fazer sem precisar lidar com o jogo do mercado. Eu sei que em partes é necessário pela sociedade que a gente vive. Mas eu acredito que o Adan do futuro vai conseguir se manter a partir da arte. Eu quero muito que a minha arte seja a minha principal fonte de renda para que não precise ficar mantendo as mesmas pessoas ricas, não no sentido ganancioso ou prepotente, mas tendo em mente o reconhecimento. O mais daora em ser artista é aprender a reconhecer o valor do nosso trampo. Eu não cheguei aqui à toa, precisei abandonar muita coisa para ser chamado para um evento na periferia, ser reconhecido pelas pessoas daqui. Não é só porque eu conheci alguém, pelo contrário, conheceram meu trabalho. Algo que eu formulei durante todos esses anos e isso está virando algo, sendo reconhecido de alguma forma. Então eu já sinto esse reconhecimento, mas espero que o futuro me traga ainda mais. 

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

“A minha identidade é arte”, diz Kamala Nala, multiartista moradora da Vila Ede

Nascida no Maranhão, Kamala Nala Omoborin, 23, afirma que constrói sua identidade social e artística a partir de seus mochilões pelo Brasil. A multiartista atravessou o Piauí, Brasília, Porto Alegre, Bahia, entre outros locais, até chegar na Vila Ede, bairro do distrito da Vila Medeiros, zona norte de São Paulo, em 2022. Além de artista, Kamala é educadora de diversidade e atua na causa do HIV. 

A educadora compartilha que a formação da sua travestilidade foi sendo construída a partir dos territórios que passou, e que os fragmentos desses locais fazem parte da sua identidade. Kamala também participa da comunidade Ballroom, movimento artístico, cultural e político criado por mulheres trans, negras e latinas como um espaço de resistência à discriminação e violência, através de experimentações artísticas.

Como você se descobriu uma multiartista?

É muito aquele processo que falei da personalidade quando a gente se constrói enquanto uma corporeidade. Sou uma travesti. Quando eu me construí enquanto essa personalidade, essa travestilidade, eu comecei a ramificar as coisas no meu corpo que na minha cabeça isso foi se movimentando nos espaços que caminhei enquanto projeto, vivência e trajetória. Me descobri uma multiartista no momento em que me encontrei enquanto uma travestilidade que vive com HIV e consegue se ramificar não só corporalmente, como mentalmente. Quando encontrei isso em mim, falando de ser uma artista, foi um processo de me identificar, não só em um espaço, mas enquanto uma ramificação de acessos. Já sou uma corporeidade preta, periférica e nordestina, preciso entender que o que consigo entregar é excelência. Vejo que faço isso em muitos espaços, como sou bartender, educadora de diversidade, trabalho com ativismo de pessoas que vivem com HIV [e] trabalho enquanto uma dançarina também. Então me ramifico em muitas coisas. Sou da comunidade Ballroom em várias categorias, da [categoria] Face a Vogue Performance.

De que forma a sua identidade reflete na sua arte?   

Acho que não tem como dividir. A minha identidade Kamala Nala Omoborin é arte, e a identidade Alexainy Miriam Farias Torres é arte, só são em lugares diferentes, mora em métodos [e] movimentos diferentes. A Alexainy é uma pessoa que vai estar em outro espaço, em algo mais casual. A Kamala já é naquele pique de fazer a performance, de entregar, sorrir, trazer e chamar as pessoas. As duas são [minha] identidade.

Como essa identidade foi construída a partir dos territórios que passou?

Costumo dizer que a minha vivência enquanto Kamala, enquanto Alexainy, são muitas coisas, e parte desse processo tem o Alexander, que é o meu menino, o meu amigo que viveu muito nesse corpo e que passou por muitas coisas para se construir o que é hoje. Quando se pensa em trajetória no meio de tudo isso, você imagina que o universo te ensina e precisa que veja algumas coisas antes para quando entrar nesse mundo artístico sem identidade, te moldar para que se blinde, para que consiga acessar [e] se movimentar. Costumo resumir isso em aprendizado. Minha trajetória é identidade, a construção dela sempre vai ser os territórios que o Alexsander, que a Kamala, que a Alexainy vivem e passam diariamente. Tudo que sou é uma ramificação, é uma consequência da minha trajetória, do meu caminho da rua, de Brasília, do Piauí, de Pernambuco, da Bahia, de Floripa, de Porto Alegre, é um pedaço de cada lugar dentro de mim sendo eu, e entregando a minha personalidade.

Qual a diferença entre a Kamala pessoa física e a artista?  

A Kamala artista é uma palhaça e a Kamala pessoa [física] é muito meiga. Eu costumo dividir assim, talvez seja até pesado falar palhaça, mas é que a Kamala é essa personalidade aqui, que vai trocar, falar, sorrir, chamar energia, sabe? Ela é muito essencial enquanto energia, enquanto força. E a Kamala pessoa [física] é mais afetuosa, meiga, tem que ter uma troca. Acho que é mais essência, é força, é poder, é empoderamento e a outra é mais o casulo para se curar e ficar quietinha, depois voar que nem uma borboleta.

Quem é a Kamala do passado, do presente e quem será a Kamala do futuro?

A Kamala do futuro vai ser aquela que vai conseguir tudo que ela quer nessa selva de pedra. Que vai conseguir mostrar e fazer as pessoas identificarem o quanto de excelência trago no que eu falo, no que faço, no que movo, no que produzo. A Kamala do presente é a que está naquele processo de entendimento, de construção de identidade, de personalidade, porque todo dia vou aprender algo novo. Então essa é a Kamala do agora, está sempre num processo de olhar, aprender e receber, de fazer todo aquele processo de identificação, de reciclagem de tudo, de absorver e continua sendo a Kamala Nala Omoborin. A do passado era a Kamala que não achava propósito, foi a que passou por muitas coisas, uma em cima da outra, aí descobriu que vivia com HIV, descobriu que enquanto uma personalidade estava em processo de transição, transicionou, se encontrou e foi procurando onde conseguia agir enquanto área artística. Estava no processo de descoberta de muitas coisas, aí depois que descobriu se torna a Kamala do presente e a do futuro ao mesmo tempo.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.

Pesquisadora aponta ligação entre Kemetic Yoga e práticas ancestrais de cuidado

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Através de práticas relacionadas ao autocuidado presentes no cotidiano, Merit Amon, pesquisadora e instrutora da yoga de base africana, busca aproximar a Kemetic Yoga às pessoas pretas e periféricas. “Geralmente uma pessoa na periferia só vai se dar conta de que realmente precisa se cuidar quando adoece. O trabalho que a gente faz é trazer essa atenção para o corpo”, diz a pesquisadora.

A prática de Kemetic Yoga, segundo Merit, envolve o desenvolvimento da autonomia, que pode contribuir na prevenção de doenças, o que aponta ser necessário diante das faltas existentes no campo da saúde pública. 

O questionamento sobre autocuidado, segundo Merit, é o princípio para o desenvolvimento da autonomia, na perspectiva de que não dá para terceirizar o próprio cuidado e esperar que alguém te salve. “São pequenas oportunidades que tem você no dia de falar assim ‘cinco minutos é meu, é tudo que eu tenho’, mas você valoriza seus cinco minutos [por saber] que é essencial para você, então é um processo de auto investigação, ele vai provocar o autoconhecimento”. Merit menciona que tentar encaixar o yoga na vida de um modo leve, para que não se torne mais uma obrigação, é um bom caminho.

A pesquisadora coloca que a prática do yoga vai além de movimentar o corpo físico. “[O yoga] vai provocar você a olhar para as suas estruturas. Como está a sua vida hoje? E como que você realmente quer? Para projetar, a gente tem que estimular a imaginação, tem que se visualizar [e] o yoga ajuda muito nesse processo”, aponta. 

“A yoga de base africana nas periferias é uma novidade, embora tenhamos na nossa memória ancestral esse caminho mapeado. Porém, de acordo com a forma que as informações são manipuladas, a gente acaba, sem perceber, ficando afastado desse conhecimento por conta da rotina, das necessidades, que ainda são as básicas de sobrevivência.”

Merit Amon, pesquisadora e instrutora de Kemetic Yoga.

A pesquidara pontua que existem dificuldades para que a prática alcance corpos negros e periféricos não apenas no âmbito de enfrentar os preconceito, por se tratar de uma prática de matriz africana que envolve espiritualidade, mas também por outras necessidades que essa população enfrenta. “Como pensar em yoga nas periferias se a gente ainda está no modo de sobrevivência?”, questiona.

“O desafio da nossa periferia é: eu enxergo, vejo que é importante, mas quando vou no mercado o orgânico é R$ 10”, exemplifica a instrutora. “A gente vê no Brasil muitos casos de hipertensão, diabetes, ansiedade”, aponta Merit ao ressaltar que essas não são demandas da yoga, e que apenas a prática não é capaz de mudar esse cenário, mas que pode auxiliar na busca por melhorias.

A instrutora conta que a Kemetic Yoga é uma prática cultural que nasceu no continente Africano, e “Kemet” se relaciona ao estudo do antigo Egito e significa “a terra preta” ou “terra dos pretos”. O método envolve as posturas, que são chamadas de progressão geométrica, respiração, meditação e contato com os fundamentos da espiritualidade africana. “A intenção é que essa prática, [para além] do tapete, possa ser levada de forma coerente para a vida”, Merit pontua. 

Ela também comenta que devido ao processo de escravização, o reconhecimento das próprias potências tem sido um processo de construção para parte da população negra. “[Assim como] reconhecer o poder de onde a gente vem e provocar essa transformação social onde a gente reside”, menciona.

Moradora do bairro Jardim São Bento Novo, que fica no distrito do Capão Redondo, zona Sul de São Paulo, Merit conta que, através do estudo, notou que experiências e práticas que faziam parte do seu cotidiano também se relacionavam com a Kemetic Yoga. “Eu nasci em uma periferia e isso chegou tardiamente para mim. Eu fui me ligar que eu já pratiquei meditação num processo que eu já estava no meio do rolê do estudo do yoga de base Africana”, conta. 

Ela relembra quando, na quarta série, a professora da escola colocava a turma sentada ao sol e passava meditações. “E aquilo foi uma coisa que marcou na minha infância. Depois eu comecei a olhar para o lado da saúde”. 

A pesquisadora também identifica essas conexões no âmbito familiar. “A minha avó é rezadeira, então a prática de cuidado dentro da minha família era muito parecida com as coisas que eu fui ler depois. Para mim a prática do Kemetic Yoga foi um processo de resgate”, afirma. Ela conta que a avó também atendia a comunidade a partir dos seus saberes, e relaciona a prática como um conhecimento de autopreservação de identidade, etnia e cultura.

“A gente cuidava também do corpo energético com os banhos. Minha avó também ajudava a comunidade, porque quando as pessoas tinham seus problemas de saúde ou problemas espirituais iam lá. [Ela] falava ‘Merit, pega aquela erva x’, eu ia lá trazia um punhado”, relembra.

Com formação iniciada pelo mestre Yirser Ra Hotep, criador do Yoga Skills Method of Kemetic Yoga, realizada pela Kasa de Maat, a pesquisadora autodidata em saúde integral, atualmente conduz a yoga de base africana de forma online e presencial em eventos pontuais. Merit indica que é possível encontrar instrutores pela internet e que, por vezes, espaços como Casas de Cultura e unidades do Sesc oferecem atividades relacionadas.

Embranquecimento e comercialização

Merit chama atenção para o contexto de embranquecimento da prática do yoga, que também se dá através da questão de classe, em que pessoas brancas viajam para adquirirem esses saberes na Índia, em mosteiros, e se apropriam disso. “Tem gente que tem esses privilégios que acha que basta vir na comunidade e falar ‘vem fazer yoga de graça’. Nada é de graça nessa vida e acaba utilizando da estética e dos corpos das pessoas que pertencem a esse território”, observa. 

“A maioria das pessoas daqui da região acordam extremamente cedo, voltam tarde, tem uma rotina pesada e quando tem filho então nem se fala. Tudo o que se tenta ter é um mínimo de paz. E aí quando eu falo que o Kemetic Yoga é uma ferramenta muito potente nesse aspecto de bem-estar.”

Merit Amon, pesquisadora e instrutora de Kemetic Yoga.

A prática de yoga indiana é mais conhecida por ter se disseminado pelo Ocidente. Segundo a pesquisadora, essa vertente se difere da Kemetic Yoga pelas posturas, símbolos, fundamentos, aspectos da espiritualidade e origem de ambas.

Outra prática de yoga que tem se popularizado, mas não necessariamente se tornou acessível, é a yoga encontrada nas academias, que para Merit traz um esvaziamento de aspectos existentes no yoga de base africana ou indiana.“Esse processo de embranquecimento da yoga no âmbito comercial é uma estrutura que fatura bilhões, que pauta muita saúde mental, mas é de quem para quem?”, questiona.

“Quando a gente pensa em yoga a imagem que vem à nossa mente são de pessoas brancas praticando”, menciona ao dizer que é importante a reconstrução desse imaginário com o conhecimento e retomada do Kemetic Yoga, que vai atuar tanto no fortalecimento do indivíduo, como da comunidade. “Não existe senso de comunidade sem senso de autocuidado”, finaliza.

Os meninos das quebradas e a ausência de referências masculinas em saúde

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Pedro (nome fictício) tem 16 anos de idade e nunca foi à uma consulta com urologista. Na verdade, Pedro sequer sabia de que se tratava essa especialidade antes de nossa conversa. 

O menino conta que a última vez que foi à Unidade Básica de Saúde foi na infância, numa consulta pediátrica e quem o levou foi a mãe, depois disso nunca mais “precisou ir”, pois não adoeceu.

Embora a Organização Mundial de Saúde (OMS) tenha definido a mais de 70 anos que saúde está relacionada ao bem-estar físico, mental e social, ampliando o conceito para além da ausência de doenças, muito se acredita ainda que só devemos procurar um atendimento em saúde para tratar enfermidades.

A adolescência é um período da vida em que acontecem muitas mudanças emocionais, sociais e físicas e é importante que adolescentes possam acessar equipamentos de saúde para cuidar de si e aprender sobre as alterações que tem acontecido em seus corpos.

Tenho trabalhado a mais de 14 anos com adolescentes e pessoas adultas, falando sobre a importância do cuidado à vida durante o período da puberdade, e o que observo é sempre um número alto de meninas interessadas em debater sobre autocuidado e as mudanças em seus corpos. 

O número de meninos ainda é muito baixo nos espaços de diálogo e reflexão sobre saúde, e por que isso acontece?

Eu quero arriscar uma hipótese e quero pensar junto contigo sobre isso: Acredito que os meninos têm pouca (ou nenhuma) referência masculina que aborde temas em saúde com foco nas masculinidades.

Temos bastante iniciativas de mulheres de quebrada que dialogam com adolescentes, mas muitos meninos não se sentem a vontade de falar conosco sobre suas mudanças, ou porque acreditam que não vamos entender (já que não passamos por isso), ou porque sentem vergonha de falar com mulheres sobre desejo, sexualidade e medos.

Os meninos precisam dos homens, sobretudo os meninos de quebrada, eles precisam que homens periféricos se organizem para falar de saúde do menino e não só ser referência na música, cultura ou esportes. 

Os homens precisam aprender e desenvolver estratégias de diálogo com os meninos sobre saúde, sexualidade, corpo e adolescência. 

Fiz uma pesquisa no Portal de Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais e só este ano, são cerca de 5.537 crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. 

Então soma aí a ausência paterna e a ausência de referências positivas em cuidados à saúde do homem. O resultado é uma população de meninos que vão aprender sobre sexualidade, corpo e puberdade com os recursos que estão facilitados para eles: a pornografia.

São poucos os meninos que sabem o que é urologista, mas muitos sabem o que é tadalafila. Poucos meninos sabem como usar corretamente um preservativo, mas muitos sabem como acessar conteúdo erótico adulto.

Nós, mulheres de quebrada, temos nossas limitações no cuidado à adolescentes e homens periféricos precisam se colocar como responsáveis também pela promoção de saúde com os meninos. 

A ausência para os meninos de quebrada não é só paterna, ela é uma ausência de referências masculinas em saúde também.

Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.

Feira Literária da Zona Sul chega a 10ª edição com atividades na Praça do Campo Limpo

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“A Poética dos Caminhos – Donde Miras?” é o tema da FELIZS deste ano, que destaca uma década da feira e 20 anos do Sarau do Binho. 

Comemorando 10 anos de existência, a Feira Literária da Zona Sul (FELIZS) realiza o encerramento da edição deste ano, no próximo sábado (21), na Praça do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Entre os destaques da programação está a feira literária, que reunirá mais de 50 editoras independentes de todo o Brasil.

Suzi Soares, produtora da FELIZS, destaca que o tema deste ano remete à trajetória do Sarau do Binho, e especialmente à expedição ‘Donde Miras’, que percorria a pé longas extensões entre cidades, acampando em escolas e realizando saraus nas paradas. 

“A comemoração pretende celebrar a existência do Sarau e da FELIZS, sem deixar de pontuar os problemas que permanecem nos territórios onde o evento acontece, como o genocídio da juventude negra, o feminicídio, a transfobia, temas que percorrem as produções artísticas e a literatura produzida por nossas e nossos autores”

Suzi Soares, Produtora da FELIZS.

A 10ª edição da FELIZS também irá homenagear o “Grupo Clariô de Teatro”, coletivo que busca, através da cena e da troca com outros coletivos, discutir a arte produzida pela periferia, na periferia e para a periferia. Atualmente, o grupo está com uma campanha coletiva aberta para compra do espaço onde realizam suas atividades e onde também acontece o Sarau do Binho.

Sobre a FELIZS

A FELIZS nasceu do desejo de unir os diversos artistas e escritores da periferia da zona sul de São Paulo, com ênfase na literatura. A feira realiza ações que promovem a formação do público e incentivam o livro e a leitura, ampliando os meios de difusão e acesso cultural por meio de suas atividades literárias. Com o objetivo de valorizar a produção existente no território, que muitas vezes não tem a oportunidade de alcançar um grande público, a FELIZS articula autores e artistas periféricos com outros espaços, possibilitando apresentações e a publicação de suas obras. Até o momento, 22 títulos foram lançados pelo Selo Sarau do Binho através da feira.

SERVIÇO

Confira a programação completa

21 de setembro (sábado)
Praça do Campo Limpo (Rua Aroldo de Azevedo, 100)

FRENTE DO PALCO / PALCO

ACESSIBILIDADES: Intérprete de Libras em algumas atividades/ Monitores para acessibilidade/abafadores de ruídos/ Local reservado sinalizado/banheiros adaptados

11h – Cortejo Baque Atitude 

12h – Baile Bons Tempos Nostalgia Black

13h – Música Núcleo Caboclinhas – Rodinha da Ivone

14h às 15h30 – Conversa Literária
Pedras na caminhada – literatura, resgate e afirmação
Com Luiza Romão,  Luz Ribeiro e Cristina Judar – Mediação Jéssica Balbino 
Sinopse: Três escritores reúnem-se para colaborar na resposta às questões: qual o espaço a ser conquistado por autoras/es nos diversos gêneros da ficção? A literatura pode abrir caminho para a constatação da violência? Que mediações estéticas, éticas e políticas estão sendo propostas como forma de resistência a esta violência por parte de autoras/es de literatura?

16h teatro Lona Preta – O Concerto da Lona Preta  

17h30 às 18h50 – Sarau do Binho 20 anos

19h – Show Raquel Tobias

21h – Show MC Marechal

TENDA DAS CRIANÇAS/OFICINAS

12h às 13h30 – Oficina Boneco articulado com Rager Luan

13h30 às 15h30 – Espetáculo Figaza Show + oficina de circo com Painé Santamaria

15h30 – Contação de histórias 

Intervenções na praça Brincantes Urbanas
Praia Literária
Poesia nos Muros com Silvana Martins
Palhaçaria com André Schule e Bruno Coqueiro
Tranças criativas com Isabela Mohana
Boneco articulado com Rager Luan
Bicicloteca
Leitura Surpresa

“As crianças não estão nos lugares públicos”, afirma Beatriz Souza, educadora infantil

Durante o Festival Código da Arte, que busca transformar praças públicas em espaços de convivência, realizado em setembro, no bairro do Morro Doce, pertencente ao distrito de Anhanguera, zona noroeste de São Paulo, a professora de educação infantil Beatriz Souza, integrante do Coletivo Uirapuru, abordou a influência da cultura nas infâncias periféricas. 

Beatriz foi uma das agentes culturais que realizou oficinas com as crianças durante o evento, tendo como matéria principal o barro. Ao longo da atividade, as crianças puderam criar elementos a partir do contato com a argila. 

A educadora participa do Coletivo Uirapuru, criado em 2021, que desde então atua com pesquisas sobre arte, ancestralidade, cultura indígena e africana, e a relação entre natureza e educação. Isso através da ocupação de espaços culturais públicos e independentes nas periferias de São Paulo. 

Como surgiu o coletivo e qual objetivo?

Eu, Karina e Paloma trabalhávamos na mesma escola privada e todas nós somos da periferia. A gente pensava muito nesse lugar da infância periférica, quais espaços essas crianças ocupam e os espaços que elas não ocupam, e principalmente, políticas públicas para a infância na periferia. Surge desse incômodo que a gente percebe que não existe um lugar para as infâncias. E aí quando a gente pensa em contextos periféricos não existem muitas coisas na periferia. Então as crianças não são muito olhadas. 

Por que utilizar a argila e qual a técnica usada?

A gente tem um ciclo de oficinas e hoje escolhemos usar argila porque a gente tem pensado mais nessa relação do barro, dessa coisa da manualidade [das] crianças tendo contato com barro. O contato com a natureza de alguma forma recupera esse lugar ancestral também, porque a gente no Brasil, enquanto constituição do nosso país, tem muito forte a cultura indígena e africana, e o quanto que a gente vem perdendo esses lugares. Reafirmar essa potência para as crianças de trazer esse contato é um lugar também de buscar essa ancestralidade de alguma forma, ainda que seja um contato ali muito pequeno, sabe? Eu tenho certeza de que essas crianças vão lembrar disso em algum momento da vida delas, nesse momento do contato com argila em uma praça pública, nesse evento. Essa é uma técnica indígena, estamos nos aprofundando, como coletivo estamos buscando caminhos. E sobre as crianças fazerem o passo a passo, a cobrinha com a argila, para depois montar o objeto, o contato de como fazer, por que é importante entenderem esse processo de começo, meio e fim. Isso traz um lugar das crianças conseguirem imaginar possibilidades do que fazer com barro e fazer com a mão.

Qual o significado de participar de eventos como o Festival Código da Arte?

Acho que enquanto coletivo de três mulheres periféricas, é muito importante estar em um espaço desse, de pensar na descentralização dos espaços culturais e pensar o quanto que a periferia é potente, o quanto a gente dá conta só [por nós] de produzir e fazer cultura na nossa quebrada. E [também] de trazer os artistas locais e as crianças [que] estão nos lugares públicos. Acho que assegurar que tenham atividades e espaços pensados para a gente é um lugar de muita satisfação e orgulho de poder fazer parte.

Quais os desafios que o coletivo enfrenta?

O coletivo tem mais ou menos três anos e meio. Eu acho que um dos maiores desafios é conseguir se manter pela questão da grana. Se não somos contempladas por um edital público a gente não consegue fazer as nossas ações, porque para comprar argila, para comprar os materiais precisa de grana. E aí é muito difícil a gente conseguir tirar da nossa grana, porque trabalhamos em escola e tem as demandas da vida, e os materiais não são baratos.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.


Especialista fala sobre consumo de PANCs e segregação alimentar nas periferias

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Taioba, peixinho, dente de leão, trapoeraba zebrina, azedinha, begônia, hibiscos, cambuquira, brilhantina, açafrão, cúrcuma e ora-pro-nóbis são algumas PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais) que podem contribuir com uma alimentação saudável, de qualidade e variada, é o que aponta Sabrina Leite. Cozinheira e cientista social, Sabrina associa a utilização das PANCs aos cuidados com a saúde e pontua como a indústria alimentícia prejudica essa relação.

Moradora do bairro Vila Aurora, no distrito do Jaraguá, zona norte de São Paulo, a cozinheira aborda a alimentação como uma ferramenta de mudança social. “Trazer a utilização integral dos alimentos e de PANCs é trazer [a discussão do] direito à alimentação. [No sentido] das pessoas entenderem e reivindicarem o quão é direito delas terem acesso à uma alimentação variada que vai nutri-las, [para] que possam desfrutar de uma velhice saudável, [sem] ter doenças construídas ao longo da vida por déficit nutricional”, coloca.

Embora para algumas pessoas o termo PANC seja recente, a utilização dessas plantas atravessa gerações. Sabrina cita que, a depender do contexto, esse consumo passa a ser associado à escassez, mas ressalta a relação de proximidade desses alimentos.“Esse modo de se alimentar partia dos nossos avós”, menciona. 

Sabrina afirma que existem diferenças no modo de se alimentar se comparado ao dos nossos ancestrais por conta da introdução dos ultraprocessados. “Mas a alimentação baseada no feijão, na farinha, muitas pessoas continuam se alimentando dessa forma e isso é bom, porque são alimentos in natura. O que a gente não pode romantizar é o cerceamento da alimentação por esses alimentos. Não continua tendo uma diversidade, a pessoa está se alimentando da farinha, do feijão porque é o que ela tem para se alimentar”, diz. 

“Por exemplo, os negros escravizados sequestrados de África, que se alimentavam basicamente da farinha e do feijão, se alimentavam dessa forma porque não havia possibilidade de ter uma variedade alimentar, era fome mesmo. Eles não tinham possibilidade de fazer um roçado, de plantar outras coisas. Inclusive quando as plantações de cana [e] algodão aumentavam, a fome também aumentava, porque diminuía essa parte física de terra de plantio [do alimento]”, coloca Sabrina.

“A memória que algumas pessoas têm desse tipo de alimentação é muito dolorida, e para elas, ter a possibilidade de se alimentar de arroz, feijão e carne, sendo a carne o principal alimento dentro da refeição, é algo muito significativo. [Isso] significa que elas conseguiram melhorar de vida”.

Sabrina Leite, cozinheira e cientista social.
No Brasil, em 2023, cerca de 27,6% (21,6 milhões) de casas estavam em situação de insegurança alimentar, de acordo com a pesquisa realizada pelo IBGE em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Segundo a cientista social, a separação de quem come determinado alimento é reforçada pela construção de um imaginário sustentado e espalhado pela publicidade utilizado pela indústria alimentícia. Ela também aponta que a periferia é o público-alvo quando se trata de incentivar o consumo de alimentos ultraprocessados. 

“Até mesmo as frutas para as crianças que vêm da periferia [têm um significado]. Às vezes a criança tem vergonha de levar uma banana para a escola, porque a banana não representa o mesmo status que um biscoito recheado.”

Sabrina Leite, cozinheira e cientista social.

Sabrina ressalta que a indústria não é responsabilizada pelos danos que a alimentação ultraprocessada causa à saúde da população, tendo inclusive isenção de impostos que auxiliam na produção desses alimentos.

Embora haja esforços por políticas públicas de incentivo à alimentação saudável, principalmente através da luta popular e de organizações sociais, ela destaca que ainda há muito a ser conquistado. “Falar de políticas, cada vez mais dentro desse processo de pressionar para que essas políticas de incentivo à alimentação saudável aconteçam [e] a população esteja cada vez mais ciente de que é só a pressão social que vai fazer com que essa realidade se transforme”, coloca.

Alimento como mercadoria

Para a cozinheira, o consumo de alimentos in natura é direcionado para uma determinada classe social que pode escolher ter um estilo de vida a partir do que come. “O alimento está sendo utilizado como ferramenta de segregação e diferenciação social. Quem é que tem [tido o] direito ao alimento fitness, a fazer exercício e a comer saudável? Não é a quebrada”, afirma Sabrina.

Ela reforça que as PANCs são fontes de vitaminas, minerais, fibras e antioxidantes, e que cascas, talos, sementes, folhas, raízes, flores e caules servem como um acréscimo na alimentação. “Com elas a gente consegue fazer geleias, refogados e muitas [outras] opções”.

“A utilização integral dos alimentos pode ser feita a partir da observação e da reavaliação do que a gente enxerga como lixo. Muitas vezes a gente enxerga que só a polpa da melancia é comestível e a casca joga fora. Quando eu penso dessa forma eu não só estou jogando ingredientes, mas também jogando dinheiro fora”, comenta.

A cientista social afirma que é possível fortalecer a segurança alimentar com o incentivo ao consumo integral dos vegetais e das PANCs, mas reforça que “não tem como as pessoas ressignificarem a forma de se alimentar se não for pelo direito”, ao apontar o papel das políticas públicas nesse debate. 

Ela também coloca que em muitos casos as pessoas não alcançam o conhecimento sobre a possibilidade de consumir uma PANC ao invés de um ultraprocessado, o que também se relaciona com a perda de autonomia. 

“Não é só a questão de utilizar PANCs e a utilização de alimentos integralmente, mostrar como faz ou quando isso pode ser benéfico. Porque isso as pessoas simplesmente podem dar um Google e acessar. Mas como que a gente pode utilizar esses alimentos como ferramenta para falar de acesso à direito, falar de políticas públicas, de exploração do trabalho, de diversas informações que não chegam”, ressalta Sabrina.

Empreendedor mistura samba com yakisoba e frutos do mar para surpreender o paladar de moradores da Vila Império

Todo primeiro domingo do mês acontece o Samba de Calçada, localizado no bairro Vila Império, na zona sul de São Paulo. Nesse samba de quebrada temos o Seu José Geraldo Pereira, 55 anos, que se destaca no evento com a sua barraca customizada de yakisoba, uma mistura improvável, mas que deu muito certo. 

Diferente das proteínas que são disponibilizadas para consumo e venda nos eventos de samba como churrasco, batata frita, calabresa, feijoada, salgados fritos e assados, o yakisoba vem com uma outra proposta rendendo boas vendas e novas oportunidades para José que nos contou um pouquinho sobre sua trajetória na cozinha. 

O ponto de venda do empreendedor se destaca pela sua barraca diferenciada, construída a base de artesanatos feitos de reciclagem. Mas a verdadeira surpresa é o alimento que ele comercializa no território em que está localizado. 

Em entrevista para o Você Repórter da Periferia, ela conta que o seu objetivo é simples: mostrar para as pessoas de seu entorno que é possível se alimentar bem e de forma saudável. É essa discussão que Seu José propõe com seus pratos diversificados e majoritariamente oriundos de peixes e outros frutos do mar.

VCRP: Qual é a reação das pessoas ao chegarem no Samba da Calçada e verem uma barraca de yakisoba?

Foi a opção que me deram de fazer yakisoba e perguntaram pra mim, se eu executava eu falei “Opa, com o maior prazer”, e hoje é um sucesso no Samba da Calçada, as pessoas gostam. Uma vai falando para o outro de boca a boca e até a minha marmita que eu separo no fim da balada, eu vendo, porque sempre tem um que quer e bate o pé e acaba vendendo.

VCRP: Como foi a construção da estética diferenciada da sua barraca?

Eu comecei com um tambor que eu fiz um fogão, e começou a demanda e as pessoas queriam yakisoba. Ninguém colocou fé que eu ia criar essa barraca, eu comecei em janeiro do ano passado (2023). Comecei a pegar madeira e fazer, e quando chegou no mês de março eu falei agora eu tô preparado pro yakissoba que me deram essa oportunidade, mas a barraca muitas pessoas vêm tirar foto aqui, né? E cada hora ela vai ser diferente, da próxima vez que você vier, ela vai estar com o telhado. Ela vai estar com um gerador movido a luz solar, então a cada hora você vai ver ela diferente.

VCRP: Como é o início da sua trajetória na culinária de frutos do mar?

Eu aprendi porque um dia eu comi errado e quase morri, aí eu me joguei na comida e aprendi a fazer comida de verdade. Então eu reunia amigos em casa, e aí começava, eu fazia tudo, pegava abria o atum e fazia hambúrguer, fazia linguiça de atum e começou. Então através de amigos eles falaram: “cara você teve uma mão boa para culinária, por que que você não se joga?”. Eu falei: “vou”. Hoje eu tô na culinária.

VCRP: Como é a sua demanda de comercialização de pratos à base de frutos do mar na região?

Então os pratos de fruto do mar a demanda é mais para amigos, porque eu acho que as pessoas têm que provar todo tipo de peixe. Qualquer tipo de peixe eu faço de uma forma saudável e saborosa, você come com os olhos e assim, eu acho que a periferia tinha que comer uma moqueca de peixe com banana e saber o sabor.

VCRP: Qual a sua visão de futuro para o seu negócio?

Então eu gostaria muito de ficar na quebrada, eu precisava disso, principalmente preparar comida sem nenhum tipo de conservante químico, tem como você comer bem e saudável. Eu tenho muita proposta, mas é que eu falei no início, né? Eu quero ter essa vida, essa simplicidade de fazer comida assim, não quero crescer, eu quero fazer uma coisa natural, porque se eu crescer não vai ser natural de verdade. Eu prefiro atender pouco, e a pessoa comer bem, é isso.

Esse conteúdo foi produzido por jovens em processo de formação da 8° edição do Você Repórter da Periferia (VCRP), programa em educação midiática antirracista realizado desde 2013, pelo portal de notícias Desenrola e Não Me Enrola.