Entrevista

Território e tradição: articuladores culturais falam sobre presença do maracatu nas periferias de São Paulo

Vitor da Trindade, Elis Trindade e Luciana Félix comentam a ligação do maracatu de baque virado, originário de Pernambuco, com as periferias de São Paulo.
Edição:
Evelyn Vilhena

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“Maracatu não é só batuque, tem vários outros saberes ancestrais. A dança, a espiritualidade, as cantigas, as roupas, o penteado”. Essa é uma das formas que Luciana Félix, regente de maracatu e parte do movimento desde 2011, explica sobre os fundamentos dessa, que segundo ela, vai além de uma manifestação cultural ou entretenimento, que é parte de uma identidade cultural. “Maracatu é alegria, é processo de cura, de libertação, é família”, afirma Luciana. 

Luciana Felix é regente do grupo Caracaxá desde 2019 (foto: Maria Clara Guiral)

Segundo a regente, o território é um elemento fundamental quando se trata da origem e consolidação do maracatu nas periferias de São Paulo, e conexão com grupos tradicionais que têm origem no estado de Pernambuco, chamados de Nações de Maracatu. “Batuque, corte, território e ancestralidade são os quatro elementos que têm que estar junto [para ser uma] Nação de Maracatu”, explica Luciana, que também é arte-educadora, multiartista e produtora cultural. 

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Registrado como Patrimônio Cultural do Brasil pelo IPHAN desde 2014, em 2024, foi validada a lei que cria o Dia Nacional do Maracatu, em 1º de agosto. A data que já era comemorada em Pernambuco, agora passa a ser celebrada em todo o país. 

“O maracatu em São Paulo começa com as Irmãs Ibeji entre 1940 e 1950, e tem um reinício quando o meu vô [Solano Trindade] chega do Rio de Janeiro, em 1960, e vem para Embu das Artes”, conta Vitor da Trindade. Ele é músico, Ogan Alabê Omoloyê, presidente e diretor artístico do Teatro Popular Solano Trindade (TPST), que tem como origem o Teatro Popular Brasileiro formado, em 1950, por Solano Trindade, Margarida Trindade e Edison Carneiro.

Vitor da Trindade e Elis Trindade. (foto: arquivo pessoal)

“Atuante agora em São Paulo, nós somos os mais velhos”, aponta Elis Trindade ao se referir ao maracatu Nação Kambinda, que faz parte das manifestações culturais que acontecem no TPST. Bailarina e professora de danças afro-brasileiras contemporâneas, Elis é coreógrafa e coordenadora cultural do Teatro Popular Solano Trindade. Ela e Vitor moram no bairro Jardim Silvia, na cidade de Embu das Artes, território que também está localizado o TPST.

Conhecido como poeta do povo, Solano Trindade era de Pernambuco, escritor, pintor, ator, teatrólogo, cineasta e militante do Movimento Negro. Junto com Margarida Trindade, que era coreógrafa e terapeuta ocupacional, passaram os seus saberes sobre manifestações culturais adiante, conforme explica Elis e Vitor.

Solano Trindade. (foto: arquivo pessoal)
Margarida Trindade. (foto: arquivo pessoal)

“Em 1974, meu vô falece e minha mãe retoma a ideia do maracatu [que] se espalha [também] na periferia”, conta Vitor ao se referir a Raquel Trindade, que além de sua mãe, era artista plástica, pesquisadora, folclorista e coreógrafa. “Eu adolescente acompanhava minha mãe. [Coloca] aí 50 anos para trás ela já ensinando maracatu, fazendo a dança nas escolas, falando com os professores, nos bairros, nas comunidades, nos centros comunitários”, relembra.

Raquel Trindade à frente do maracatu Nação Kambinda. (foto: arquivo pessoal)

Entre o final da década de 90 e o início dos anos 2000, foi quando o maracatu se propagou de modo mais consolidado em São Paulo. Luciana cita o músico e percussionista Eder Rocha, como um dos precursores ao trazer e difundir o ensino da parte sonora do maracatu. Ela aponta três tipos de maracatu: “maracatu de baque solto [também conhecido como maracatu rural], o maracatu cearense e o maracatu de baque virado, é esse que a gente brinca bastante aqui em São Paulo”.

“Da Vila Madalena é que foi para periferia, não saiu da periferia para a Vila Madalena. Ele [também] sai daqui [do TPST], a gente espalha pela cidade inteira. O Eder se assenta na Vila Madalena e o maracatu, a partir [daí] se tornou uma grande moda em São Paulo”, conta Vitor.

“Pessoas com maior poder aquisitivo, na hora que Eder chega na Vila Madalena e apresenta o maracatu, vão para Pernambuco aproveitar o carnaval, consomem da tecnologia de lá, trazem [para SP], mas não falam que aprenderam lá”.

Elis Trindade, coreógrafa e coordenadora cultural do Teatro Popular Solano Trindade

Nesse contexto, Elis comenta que com o tempo os mestres e grupos de maracatus de Pernambuco passaram a exigir que seus saberes fossem referenciados. 

“A gente nunca exigiu obrigatoriedade [de ser referenciado]. A gente sempre devolveu ao povo em forma de arte igual Solano Trindade falava, ‘pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte’. Só que esse povo que aprende, que consome da nossa tecnologia, leva e vende para todo mundo e não fala que aprendeu com a gente”, afirma Elis sobre um dos motivos de não conseguir apontar quantos grupos surgiram a partir do TPST.

Elis Trindade é bailarina, professora de danças afro-brasileiras contemporâneas e coordenadora cultural do TPST. (foto: Weslley Tadeu)

Em São Paulo, enquanto ensino de percussão, Luciana diz que o maracatu se dissemina a partir de grupos de estudos realizados e liderado principalmente por pessoas brancas, no centro da cidade. “Antes era difícil a gente chegar [nos ensaios de maracatu], sair de um território pra ir pra USP [ou] pra Vila Madalena. [Ao] chegar lá as pessoas pretas eram poucas, porque era difícil chegar [e] se sentir aceito. A gente foi quebrando isso, fazendo as nossas próprias movimentações”, coloca Luciana sobre os locais que os grupos de maracatu se reuniam para ensaiar. 

“Não existia uma manutenção das pessoas pretas nesses espaços”, comenta Luciana ao citar alguns dos motivos desse cenário, como a distância, valor para locomoção e alimentação. “Inclusive, eu saía da zona leste, morava na Cohab II e ia pra lá”, relembra. Atualmente a regente mora no bairro Penha de França, no distrito da Penha, na zona leste de São Paulo.

Agentes culturais que viviam nas periferias e conseguiam frequentar esses espaços no centro, com o tempo, levaram essa cultura para os próprios territórios e formaram outros grupos, o que contribuiu para expandir a presença do maracatu nas periferias da cidade, segundo Luciana. “As pessoas querem estar no seu território e muitas vezes [formavam outros grupos] por divergências também”.

Território e tradição
Ensaio de maracatu do grupo Caracaxá na Vila Guilhermina, zona leste de  São Paulo. (foto: Diego Menezes)

Entre muitos exemplos, Luciana cita o Caracaxá, grupo fundado na USP, em 2003, e que alguns dos integrantes deram origem a outros grupos de maracatu que estão em bairros descentralizados, como o Ouro do Congo, no Campo Limpo, o Arrastão do Beco, em Santo Amaro e o Mucambos de Raiz Nagô, no Jabaquara. 

“Com esse desmembramento, a gente que é periférico começa a assumir mais o papel tanto de liderança, quanto de batuqueiros”, afirma a regente sobre grupos que vão sendo criados nas periferias, além dos que surgiram no centro e migram para esses territórios. Esse é o caso do Caracaxá, grupo que Luciana é regente desde 2019, e que atualmente está no bairro Vila Guilhermina, na zona leste de São Paulo.

Identidade

Os grupos de maracatu, tradicionalmente em Pernambuco, estão localizados nas periferias do estado, segundo Luciana. “Uma nação de maracatu [sempre] vai estar numa comunidade, independente das pessoas virem de outros bairros, o grosso é daquele território”, comenta.

Acolhimento é outro fator que Luciana menciona como determinante para que um grupo de maracatu de São Paulo consiga permanecer em um território. Ela afirma que não é em todo local que o maracatu é bem-vindo, pois há preconceitos por se tratar de uma cultura de matriz africana. A presença da comunidade evangélica e a especulação imobiliária fazem parte dos contextos das periferias, no qual, Luciana aponta uma intolerância com relação ao maracatu.

Apresentação de maracatu do grupo Caracaxá. (foto: Maria Clara Guiral)

“A polícia oprimia o maracatu, tinha que pedir autorização para tocar na rua. E se tocava maracatu para os terreiros poderem fazer seus trabalhos, porque a polícia não podia ouvir o barulho do Candomblé que era proibido”, aponta a regente sobre o maracatu enquanto estratégia de resistência cultural.

“O que eu vejo da recepção dos territórios é que cada vez mais a gente está perdendo espaço”. No entanto, também há quem acolha os grupos, “a comunidade quando ela abraça é muito bom porque as pessoas saem na janela para tirar foto, bater palma, sai com um sorriso no portão”, relata.  

A manifestação cultural, segundo Luciana, também é um lugar de fortalecimento para crianças e jovens nas periferias. Atualmente, ela ensina percussão de maracatu para crianças de 7 a 14 anos, na Casa de Cultura Raízes, no município de Ferraz de Vasconcelos, no CEU Arthur Alvim e no CEU Tiquatira, que fica na comunidade do Chaparral.

Luciana Felix ministrando oficina de percussão no Projeto Vivências, realizada na Casa de Cultura Raízes. (foto: arquivo pessoal)

Para a educadora, o impacto que essa cultura, assim como outras de matriz africana, gera na vida de crianças negras que vivem em territórios periféricos está diretamente ligado à construção de identidade e autoestima. “O empoderamento de se entender como uma pessoa periférica, gostar de ser periférico, valorizar o território, se sentir bonito, se entender como negro e afro-brasileiro, de entender o cabelo, a [própria] beleza, a roupa, a dança, ser aplaudida”, comenta. 

A descentralização dos grupos de maracatus que se ramificaram para as periferias, é apontado por Luciana como um avanço, pois os grupos passam a se tornar mais diversos com relação a raça e gênero. “Nos tornamos protagonistas da nossa própria história”, menciona ao falar das mudanças.

Mas também pontua que o combate ao machismo, racismo e homofobia, mesmo dentro desses espaços culturais, assim como na sociedade, é algo contínuo. Nesse sentido, ela fala da necessidade de ter mais pessoas negras em cargos de lideranças nos grupos culturais, principalmente quando se trata de cultura negra e afro-diaspórica. “Não é sobre tirar lugar, é sobre fazer junto”, ressalta ao pontuar sobre pessoas brancas que lideram grupos de maracatu e que querem ser aliadas da causa antirracista. 

“O que a gente tem que fazer é retomar a direção das nossas estruturas culturais [e] sociais. Nós temos que voltar para as religiões afro descendentes, temos que voltar da universidade para a periferia. O maracatu pertence à periferia, o maracatu é a periferia”, finaliza Vitor da Trindade. 

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