Além de enfrentar a desinformação e conscientizar familiares que já estavam desistindo de se vacinar contra a covid-19, jovem lida no cotidiano com a falta de acesso à internet de qualidade dentro de casa.
A Unidade Básica de Saúde (UBS) da Cidade Ipava está localizada no distrito do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, onde 60% dos mais de 300 mil moradores locais se autodeclaram preta ou parda, representando a maior população de afrodescendentes da cidade de São Paulo. De acordo com o Censo de 2010, a UBS atende uma extensão territorial de 10,8 quilômetros quadrados, onde residem mais de 20 mil pessoas, distribuídas em 5.900 moradias.
É neste bairro e equipamento público de saúde que toda família de Herbet Lucas,19, jovem negro e estudante da Rede de Cursinhos Populares Ubuntu, se vacinou contra a covid-19 no segundo semestre de 2021.
Segundo levantamento de dados produzido pelo Desenrola que conversou com 44 jovens moradores das periferias do Jardim Ângela, com idade entre 16 e 29 anos, no início de setembro, 64% dos entrevistados responderam que receberam fake news, via meios digitais ou boca a boca, sobre os efeitos das vacinas aplicadas na população brasileiro para combater a pandemia de covid-19.
“Minha família foi afetada de tal modo que cogitaram até não se vacinar”
Herbet Lucas,19, é morador da Cidade Ipava, bairro localizado as margens da represa Guarapiranga, zona sul de São Paulo.
O jovem Herbert foi um dos entrevistados pelo estudo. Ele conta que antes de sua mãe e seu padrasto aceitarem receber o imunizante contra a covid-19, uma batalha contra a desinformação foi travada por ele dentro de casa. “Geralmente a minha família recebe fake news em grupos de WhatsApp e até mesmo de amigos”, relata.
Após relatar como as informações falsas chegam até seus familiares, o jovem revela o impacto do consumo de fake news provocou uma hesitação em se vacinar contra a covid-19. “Minha família foi afetada de tal modo que cogitaram até não se vacinar pois alegavam ter um “chip” na vacina”, conta o estudante.
Ele considera que o fato causador da descrença na vacina tem relação direta com a ‘infodemia’. “A pandemia da desinformação afeta tanto na conscientização da população acerca da covid-19, e até mesmo na formação de opinião, seja ela política, ou de assuntos sociais”, argumenta.
Apesar das informações falsas serem passadas de boca em boca ou de grupo em grupo no WhatsApp, Hebert está atento ao formato destas notícias, por isso, ele segue pesquisando e buscando entender cada assunto através de fontes confiáveis, principalmente se for pela internet. A atitude do jovem de ajudar desmentir e explicar a inexistência do tal ‘chip’ dentro da vacina pode ter contribuído para salvar a vida dos familiares.
Coalizão contra desinformação
Atenta a importância de construir programas de educação e companhas informativas sobre o impacto da desinformação na vida da população preta, pobre e periférica, a Coaliza Pela Vida lançou em setembro um conjunto de 10 medidas para combater o avanço e o surgimento de novas variantes da covid-19 na cidade de São Paulo.
Uma das medidas previstas no pacote de ações emergências é o combate a desinformação e proliferação de fake news. O coordenador da Coalizão Pela Vida, Beto Gonçalves destaca que as redes sociais poderiam ajudar nesse processo de combate às fake news, mas tem mais atrapalhado.
“Para combater fake news a gente tem que apostar na prevenção, passar informação confiável, utilizar pessoas de grande credibilidade pra passar boas informações e fazer um debate com o Facebook, Google e o Twitter, né? Isso faz a gente questionar o próprio modelo de negócio das redes sociais que acaba abrindo campo para a desinformação”, avalia o coordenador da Coalizão Pela Vida, que também é jornalista e um dos idealizadores da iniciativa.
Outra questão ponto crítico que potencializa o aumento da desinformação no ponto de vista de Gonçalves é a limitação no acesso à internet que muitos moradores das periferias convivem no cotidiano.
“Grande parte da população não tem crédito no telefone. Sem internet, elas não têm capacidade pra conseguir consumir tanta informação”
Beto Gonçalves é jornalista e coordenador da Coalização Pela Vida.
A pesquisa TIC Domicílios 2019, publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) retrata bem o ponto de vista do coordenador da Coalização Pela Vida.
“Grande parte da população não tem crédito no telefone. Sem internet, elas não têm capacidade pra conseguir consumir tanta informação assim e nós sabemos que grande parte das pessoas vão preferir não ter um computador em casa, ela tem no máximo um celular como o pré-pago”, explica.
Na Região Metropolitana de São Paulo, 61% dos usuários de internet que residentes em áreas de baixa vulnerabilidade social acessam a rede por meio de celulares e computadores. O cenário muda completamente nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, onde 70% dos entrevistados usam somente o celular para se conectar a internet.
Para Gonçalves, o legado do acesso a internet precarizado possibilidade que o morador tenha dificuldade de consumir informação de qualidade, o aproximando ainda mais das fake news.
“Ou ela fica presa as redes sociais e não consegue navegar, o que não dá liberdade pra ela, o que limita o conhecimento, né? E nós sabemos também que uma coisa é o celular para quem tem acesso a livros, jornais e computador. Outra coisa é só ter acesso ao celular e ainda mais como pré-pago, isso limita demais”, argumenta.
Desigualdades raciais e digitais
Infelizmente, as desigualdades digitais fazem parte da vida do jovem morador da Cidade Ipava. Hebert lembra que além da sua família ser bombardeada por notícias falsas que reduziram o interesse em tomar a vacina contra a covid-19, o acesso à internet precário é outro fato que dificulta estar conectado à rede e pesquisar informações confiáveis para confrontar as notícias dos grupos de WhatsApp da família.
“Eu tenho internet em casa, mas é de baixa qualidade, também não possuo plano de internet móvel”, afirma. Segundo os Mapa das Desigualdades 2021, divulgado nesta quinta-feira (21) pela Rede Nossa São Paulo, os moradores do Jardim Ângela convivem diariamente com dificuldade de acesso à internet móvel de qualidade.
O estudo mostra que no distrito há 1,4 antenas de telefonia móvel para cada 10 mil habitantes, enquanto no Itaim Bibi, região nobre da cidade, existem 49,8 antes de telefonia móvel para o mesmo montante de moradores.
O valor recomendado pela Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações (ABRINTEL) é de uma antena de telefonia móvel para acesso à internet para cada 2.200 usuários. Esse estudo revela que o Jardim Ângela está 450% abaixo da média sugerida pela entidade setorial.
“Sempre usamos a UBS quando precisamos, porque não temos convênio”
Herbet Lucas e os membros da sua família usam constantemente a UBS Cidade Ipava.
No distrito com a maior parcela de população afrodescendente, a desigualdade digital caminha lado a lado com a ausência de políticas públicas que ameaçam o direito à vida dos moradores. A expectativa de vida do morador do Jardim Ângela é de 61,2 anos, enquanto no Alto de Pinheiros, região nobre da cidade é 80,9, uma diferença de quase 20 anos.
Em 2020, as mortes por consequência da covid-19 representaram 19,6% do total de óbitos ocorridos no distrito, um dos maiores indicadores da cidade. Além disso, para um morador do Jardim Ângela tentar acesso ao serviço público de saúde mental, ele vai aguardar em média 44 dias até sair uma consulta com um especialista.
Enquanto a desigualdades não param de crescer no distrito de afrodescentes mais populoso de São Paulo, a importância do sistema único de saúde SUS aumenta. “Sempre usamos a UBS quando precisamos, porque não temos convênio”, finaliza o jovem.
*Esta reportagem foi produzida com o apoio do Fundo de Resposta Rápida para a América Latina e o Caribe organizado pela Internews, Chicas Poderosas, Consejo de Redacción e Fundamedios. O conteúdo dos artigos aqui publicados é de responsabilidade exclusiva dos autores e não reflete necessariamente a opinião das organizações.