Reportagem

“É mais lucrativo para as empresas”, diz especialista em mobilidade urbana sobre precariedade do transporte na Grande SP

Especialista em mobilidade urbana e moradores de diferentes territórios contam como os entraves no transporte público intermunicipal impactam a vida da população.
Edição:
Evelyn Vilhena

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Superlotação, tarifas altas, espera longa, veículos em condições precárias, falta de ônibus e de integração foram alguns dos desafios apontados por passageiros que utilizam diariamente o transporte intermunicipal. Esse é o caso do Henrique Carvalho, 42, morador do bairro e distrito Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo, que depende do transporte intermunicipal, de terça a domingo, para ir trabalhar em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.

“É muito estressante por conta da confusão dos horários, você não tem certeza que horas vai passar o ônibus. Você já chega no trabalho cansado, estressado e também volta para casa cansado e estressado”, conta Henrique Carvalho, que trabalha como agente de atendimento em Guarulhos.

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A linha 499, que faz o trajeto entre o Terminal Metropolitano Cecap, em Guarulhos, até a estação da CPTM Dom Bosco, é a que Henrique utiliza e a tarifa custa R$ 6,15. Ele conta que já passou mais de 40 minutos esperando pelo transporte e a situação piora aos finais de semana e feriados. 

Fila da linha 499, no Terminal Metropolitano Cecap. (Foto: Henrique Carvalho)

“Final de semana geralmente o ônibus é de hora em hora, se eu vacilo cinco minutos eu não consigo mais pegar o ônibus. Muitas vezes eu estava indo de Uber trabalhar”, comenta o agente de atendimento. Durante um tempo, usar transporte por aplicativo para evitar chegar atrasado no trabalho se tornou hábito para Henrique. “Eu gastava R$ 200 por mês, [isso] fazia uma diferença boa [financeiramente]”, afirma. 

Ele menciona que por causa dos atrasos gerados pela espera do ônibus, chegou a alterar o horário de entrada no trabalho, mudou de unidade e tem até planos de mudar de casa para facilitar o trajeto até o trabalho.

Outra solução encontrada por Henrique para lidar com a falta de ônibus intermunicipais nos fins de semana e feriados foi fazer um trajeto mais longo, o que inclui pegar ônibus, trem, metrô e uma lotação. “Esse trajeto demora 2 horas, mas eu prefiro fazer essas duas horas me movimentando do que ficar esperando mais de duas horas sem saber se o ônibus vai passar”.

Transporte público
Os ônibus 124, da EMTU, não circulam no domingo nem no feriado. (Foto: Viviane Lima)

Aos domingos e feriados, a auxiliar de enfermagem Regiane Lopes, 48, moradora do Jardim Santo Eduardo, em Embu das Artes, região metropolitana, precisa ajustar seu trajeto até o trabalho no Butantã, pois o ônibus 124, do qual depende, não circula nesses dias.

“Nos dias em que não funciona eu vou para o Jardim Vazame, tenho que ir de carona e pego [o ônibus] 510”, compartilha Regiane. Ela conta que as frotas de ônibus são reduzidas nos finais de semana e feriados, então os ônibus demoram mais para passar.

A demora também ocorre com a linha 124 durante a semana. Priscila Martins, 34, usa esse ônibus para ir trabalhar e relata que passa entre 40 minutos a uma hora esperando pelo transporte. Ela é moradora do Jardim Taima, no Embu das Artes e já levou advertências verbais no trabalho por chegar atrasada.

A tarifa da linha 124 do transporte intermunicipal custa R$ 5,85 e não conta com integração. (Foto: Viviane Lima)

Priscila é gerente administrativa no Shopping Frei Caneca e relata que o valor da tarifa também impacta no seu cotidiano, pois além do valor do ônibus que custa R$ 5,85, na estação Vila Sônia, ela precisa pagar mais R$ 3,80 para acessar o metrô. “Fica mais caro e a empresa às vezes acaba não cobrindo todo o gasto com vale-transporte”, conta a gerente.

A linha 124 conecta o bairro Jardim Santo Eduardo, localizado na cidade de Embu das Artes, à estação Vila Sônia, na zona oeste de São Paulo, o que representa 12 km de distância. Com a aproximação do metrô houveram mudanças no trajeto desse ônibus, que antes ia até o Hospital das Clínicas, na região central de São Paulo, percorrendo uma distância de 20km. Porém, Regiane e Priscila contam que a diminuição do trajeto não gerou redução no tempo de espera dos ônibus, nem no valor da tarifa. 

Fila do ônibus 124, no terminal Vila Sônia, na zona oeste de São Paulo. (Foto: Viviane Lima)

Elas também comentam que as condições dos ônibus da linha 124 são ruins, geralmente superlotados, poucos veículos possuem ar-condicionado e alguns têm problemas de estrutura.

“Já choveu dentro do ônibus e eu tive que levantar do assento. Aliás, isso é com frequência, quando chove você tem que abrir o guarda-chuva dentro do ônibus”.

Regiane Lopes, moradora do Jardim Santo Eduardo, em Embu das Artes.

Aumento na quantidade de veículos nas linhas, melhora na infraestrutura do ônibus, mais funcionários, fiscalização efetiva, menos tempo de espera e diminuição do valor da tarifa são as sugestões de melhorias com relação ao transporte intermunicipal dadas por Henrique, Priscila e Regiane.

Direito à cidade

Ao analisar o transporte como um serviço público essencial para a população, o geógrafo Ricardo Barbosa, que é professor do Instituto das Cidades, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador da Rede Mobilidade Periferias, pontua que a mobilidade urbana deveria ser organizada de modo integrado, sendo que essa integração também precisaria acontecer com relação à tarifa, aos transportes e ao território em si, mas que isso esbarra em questões políticas por interesses locais de empresas de transporte de famílias que dominam em determinados municípios e isso faz com que não haja um interesse político de resolver essas questões.

“Há interesses políticos de se manter o transporte e a mobilidade precária do jeito que ela é, porque é mais lucrativo para as empresas”, menciona Ricardo. Ele indica que a maneira mais adequada de pensar o transporte público seria com a integração dos transportes de modo que fosse efetivamente público. O pesquisador aponta a tarifa zero como algo fundamental para pensar um modelo democrático.

“É uma questão de justiça social e cidadania no território. Garantir acessibilidade é um instrumento fundamental para que a população consiga se desenvolver na sua plenitude”

Ricardo Barbosa, professor e coordenador da Rede Mobilidade Periferias, na Unifesp.

O professor coloca que os principais prejudicados com essa situação é a população pobre, periférica e negra, as que mais dependem desse meio de locomoção. Além disso, ressalta que o acesso ao transporte público de qualidade não deve se restringir apenas ao deslocamento para que as pessoas possam trabalhar, mas que contemple outras demandas cotidianas. 

Passageiros circulando no terminal Vila Sônia. (Foto: Viviane Lima)

“É importante que as pessoas possam garantir a realização da sua vida para além do trabalho. Elas também precisam ter acesso à cultura, ao lazer e acabam não acessando essa parte importante para formação delas enquanto indivíduos”, coloca Ricardo.

A falta de integração tarifária também é um ponto de atenção que Ricardo aponta interferir de forma negativa na mobilidade das pessoas que dependem do transporte público. “Tem o Bilhete Único de São Paulo e aí tinha o [cartão] Bom, que agora é o Top e vários municípios têm o seu [próprio] cartão, isso não faz o menor sentido do ponto de vista da integração tarifária”, diz o professor, também relacionando a lógica do transporte público como um mercado para as empresas.

TOP é o atual sistema de bilhetagem utilizado nos ônibus intermunicipais. (Foto: Viviane Lima)

Ricardo alerta que o formato de tarifa zero aos domingos, em vigor desde dezembro de 2023, na cidade de São Paulo, carrega questões, como a diminuição de frota que ocorre. “Tem que ser tarifa zero com transporte adequado [e] um serviço de qualidade”, comenta.

A política de gratuidade aos domingos na capital permite que a população utilize ônibus municipais sem custo nesse dia, mas não se estende para a população que depende do transporte intermunicipal, nas regiões metropolitanas de São Paulo. 

A EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo), que é a responsável pelo transporte intermunicipal das regiões metropolitanas, é controlada pelo Governo do Estado de São Paulo e vinculada à Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos (STM), no entanto, afirmam que cabe às prefeituras locais a regulamentação do itinerário das linhas dentro de cada município, além da definição dos pontos de parada que atendem aos ônibus intermunicipais.

A linha 499 conecta o Terminal Metropolitano Cecap, em Guarulhos, à estação da CPTM Dom Bosco. (Foto: Henrique Carvalho)

A empresa também afirma que a extensão das linhas, o número de paradas e as características das vias influenciam na frequência dos ônibus. “O número de linhas metropolitanas, a quantidade de ônibus disponíveis em cada serviço, o número de viagens e o itinerário são definidas em conjunto [com] áreas da empresa, que coleta informações relacionadas à demanda de passageiros, solicitações formalizadas e ao atendimento já disponível em cada região por ligação intermunicipal”, diz a EMTU.

Sobre as tarifas, a empresa afirma que as linhas obedecem uma relação entre extensão e tarifa. Nos modos de pagamento, ressaltam que cada município tem autonomia para ter o seu próprio sistema de bilhetagem.

Com relação ao passe livre, pontuam se tratar de uma política tarifária adotada em alguns municípios da Grande São Paulo, mas que neste momento não faz parte do transporte metropolitano sobre pneus ou trilhos. Que há disponibilidade de bilhete do estudante e do professor, que garante gratuidade ou desconto, respectivamente. 

Ricardo aponta a necessidade de pensar o transporte de forma ampla, de modo que envolva uma integração tarifária efetiva, transportes mais justo e democrático que leve em conta os aspectos do território, para que assim garanta a cidadania. 

“Você não consegue resolver o problema do transporte só com uma política local [para a cidade de] São Paulo e eles [os gestores] sabem disso, só que há muitos interesses políticos e econômicos por trás das empresas de famílias que historicamente dominam o setor para manter a situação do jeito que está”, ressalta o professor.

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