“Afeto pra mim é presença”: moradores de diferentes territórios compartilham suas perspectivas sobre a construção do amor 

Diferentes gerações relatam sobre a mudança na compreensão do que significa amor e como o tempo, à rotina e o esquecimento atravessam essas construções de forma individual e nas suas relações.
Edição:
Evelyn Vilhena

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“No meio do caos, o afeto tem sido o meu acalento”, é assim que Thays Gonçalves Menezes, 26, tem percebido o lugar do afeto na sua vida. Moradora de Guaianases, município de São Paulo, para ela, o amor está no cuidado cotidiano, nos vínculos com amigos, família e caminha junto com a liberdade. 

“Afeto é uma delícia e eu adoro ser afetado por ele. Mas afeto e amor precisam de liberdade. Se vira prisão, deixa de ser afeto, de ser amor. Acho que carinho, amor e cuidado precisam andar junto com liberdade. A liberdade de ser quem eu quiser. E quem quiser estar comigo e me dar carinho, esteja ao meu lado. Quem não quiser, pode ir”, compartilha.

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Thays relaciona esse entendimento de como vivencia o amor à sua infância e as dinâmicas sociais em que cresceu. “Meus pais não me colocaram em caixinhas. Mas dentro do nosso contexto social, eu vivia numa prisão. Quando saí de casa, aos 18 anos, comecei a explorar a jovem mulher que há em mim.”

“Mesmo crescendo num ambiente de extrema violência e desigualdade, pois viemos de comunidades muito pobres, entendi que a violência pessoal era reflexo de uma violência social. Às vezes me pergunto como consegui ter tanto amor para dar, mesmo tendo crescido nesse cenário. Acho que isso veio da minha mãe: esse olhar mais amoroso para a vida”. Thays Gonçalves, 26, moradora de Guaianases.

A moradora da Zona Leste relaciona o afeto também na perspectiva do senso de comunidade. “Na região onde eu morava, eu criava projetos artísticos com apenas 13 anos. Queria fazer algum trabalho social. Já questionava, por exemplo, por que não havia uma quadra para a molecada jogar.”

Viajar, ler, ouvir música, ficar em silêncio sem fazer nada, são algumas formas que Thays encontra de cultivar o autoamor. “Escrevo para compreender minhas emoções, o que vivo, o que quero para o futuro. Quando estou com quem amo, gosto de um café da tarde. Essa é a forma de afeto mais gostosa. Comer um bolinho, tomar um café e conversar. Adoro fazer isso com minha mãe, dona Ivone”, conta.

Ao mencionar sobre a construção do sentimento com outras pessoas, ela conta que já se casou duas vezes e que ao longo de suas relações passou a se questionar sobre os padrões afetivos impostos às mulheres, especialmente nas periferias. 

“Quando estamos bem com a gente, temos autoestima e energia para retribuir o afeto e o amor de forma mais natural. Não com uma busca desesperada por receber de volta” – Thays Gonçalves, 26, moradora de Guaianases.

“Mesmo sendo muito gostoso dar e receber afeto em várias relações, eu diria: se ame mais e seja mais afetuosa com você. Porque, quando a gente se encontra e se cuida de verdade, não sai buscando migalhas para suprir o que falta. Fiz isso por muito tempo. Ainda estou nessa caminhada, tentando focar mais em mim, tenho muito que aprender, mas diria isso [de] ser afetuosa com você mesma. Cuide de você, da sua mente, estude, cuide do corpo, de tudo”, compartilha.

Amor enquanto ação

“Me lembro, na infância, que eu amava quando minhas irmãs deitavam no meu colo [para] ficar horas mexendo nos cabelos grandes e crespo delas. Isso é uma referência que eu sempre tenho de afeto”, relembra Onika Soares, 35, ao contar que cresceu em uma família que demonstrava amor através de ações, o que influenciou na sua forma de expressar o sentimento. 

Moradora do bairro República, Onika cresceu junto de cinco irmãos e conta como percebia essa construção no seu cotidiano. “Lá em casa a minha mãe nunca foi muito afetiva, de fazer carinho, de falar muitas coisas. Mas ela sempre foi muito afetiva em ações. Então, fazia uma comida que a gente gostava. Sempre fazia alguma coisa pra agradar a gente, no sentido de ato de serviço mesmo”, compartilha.

Onika relaciona essa demonstração, a partir do seu contexto familiar, ao território e as dificuldades de famílias periféricas em manter uma presença emocional diante de inúmeras demandas cotidianas e exigências do trabalho, por exemplo, que muitas vezes impossibilita a presença física.

“Eu acredito que afeto pode ser uma palavra, pode ser uma ação, pode ser a forma como alguém te trata. Acho que existem várias coisas que podem representar o afeto, porém que vão em direção a você se sentir querido e valorizado. Além disso, admiração. [Pois] faz com que uma pessoa queira fazer coisas que façam você se sentir bem”, diz.

A dançarina destaca que foi a sua transição de gênero, iniciada aos 25 anos, um dos seus maiores atos de amor próprio. “Eu acho que, como qualquer pessoa negra ou criança negra que vivenciou o Brasil de antes, eu tinha minhas questões com o cabelo, houve momentos onde eu questionei o amor, minha estética… desde a adolescência, ali pelos 16 anos, eu já pensava em transicionar, só que sempre deixei isso em segundo plano, por conta da minha família. Minha família é extremamente conservadora. Fui deixando a minha vontade de lado durante quase 10 anos, até finalmente, começar a minha transição.”

“E quando eu comecei, vi que tudo estava fazendo sentido mesmo, sabe? Que, realmente, era aquilo que eu precisava colocar no mundo… Acho que esse foi o maior ato de amor que eu tive por mim. […] pessoas trans, geralmente, não vão ser desejadas, família nenhuma pensa que quer ter um filho ou filha trans. Então, no fim das contas, a nossa família não colocou a gente no mundo, né? Ela colocou outra pessoa, e esperam uma outra coisa. É uma expectativa. Uma idealização”, continua.

Assim como Thays, para Onika, amor e posse são coisas que não podem andar juntas. “Acho que o afeto, ele pode ser uma coisa profunda, mas pode ser também uma coisa mais superficial. Porque às vezes a gente tem afeto pelos nossos colegas de trabalho, por uma pessoa que não é tão próxima. No geral, ele vai nessa direção de fazer, de ser alguma ação que demonstre um apreço, um carinho, um cuidado.”

“A não-monogamia me ensinou muito sobre afeto e liberdade. Me mostrou que amar mais de uma pessoa não diminui o amor por ninguém. Que estar com alguém por escolha e não por obrigação ou exclusividade é muito mais potente. Mesmo sentindo ciúmes às vezes, e mesmo que a não-monogamia não tenha me [isentado] de algumas questões, ainda acho que ela me contempla.” Onika Soares, 35, poledancer, professora de dança e articuladora no Coletivo Travas da Sul.

Sobre os amores que a sustenta, menciona a arte como uma de suas bases. “Como artista e pessoa curiosa, estou sempre buscando conhecimento e me politizando. Esse olhar investigativo se estende para o campo afetivo também, fazendo a gente questionar o que sente e se reconstruir. Acredito que a arte ajuda a desconstruir o romantismo tóxico e a idealização nas relações, porque ela está sempre questionando normas e padrões, e isso leva a gente a se repensar internamente também”, afirma.

Amor como partilha

“Nós nos conhecemos olhando um para o outro, dando um sorriso, dizendo que a coisa estava bem boa e que podia ficar bem melhor. Eu morava em Exu, no Pernambuco, e ele também, mas Francisco veio do Ceará”, conta Expedita Maria de Morais, 89, enquanto ajeita Francisco Germano de Morais, 85, no sofá da sala.  Moradores do Jd Arco-Íris, município de Diadema, São Paulo, o casal divide a vida há quase sete décadas.

Ela conta que três dias após se conhecerem, começaram a namorar. “Foi rápido, mas esse nosso amor vem de longe. Bem longe”, compartilha Expedita, que gosta de conversar, diferente de Francisco que é mais calado e inquieto, por conta do avanço do Alzheimer. 

Com a trilha sonora de Luiz Gonzaga, artista que embalou a juventude do casal, tocando baixinho na rádio em Pernambuco, Dona Expedita compartilha que tudo começou com um sonho quase inexplicável. “Antes da gente se ver pela primeira vez, eu já tinha visto ele num sonho meu. Cheguei a ver ele todinho. No sonho vi que estava sentado, depois escrevendo e o resto já não me lembro mais”, relembra.

A aposentada conta que durante esse sonho, Francisco lhe entregou um bilhete e depois desapareceu. “Eu cheguei a sonhar ainda mais três vezes. Depois dessa terceira vez eu encontrei com ele e lembrei: é o rapaz do sonho. Dali pensei na gente ficar junto a vida inteira. Eu conheci a família dele no mesmo dia”. Pouco mais de um ano depois, o casal se casou, ainda em Pernambuco.

“Quando se ama assim, de verdade, o amor não termina, ele é o mesmo, mas a gente tem que ter paciência” – Dona Expedita Maria de Morais, 89, dona de casa, aposentada e moradora do Jd Arco-Íris, município de Diadema, São Paulo.

Respeito, admiração, presença, dedicação, cuidado e paciência são algumas características que Expedita cita na construção do amor quando pensado na perspectiva da relação com o outro. “Agora ele está nesse estado, doente, mas eu gosto dele, eu ainda o amo. Eu e ele vamos continuar até o fim da vida. Não sei quem vai primeiro, se é eu ou se é ele, mas enquanto eu não partir, enquanto Deus não me levar, nós estamos juntos”, conta.

Dona Expedita, assim como muitas mulheres que são a base do seu núcleo familiar, se preocupa com as dificuldades de todos ao seu redor e entende que existem diferentes formas, ritmos e configurações de afetos. Ela ressalta que toda ternura aparente de um casamento, por si só, não isenta das dores reais que existem. Isso inclui lidar com a rotina, com o envelhecer e as mudanças que o tempo provoca.

“Amo Francisco, mas [confesso] que quando ele começou [a piorar do Alzheimer], eu senti medo sim. Até hoje sinto. Ainda hoje sinto que é pesado pra gente estar aqui vivendo essa vida assim [com ele dependendo de mim e de outras pessoas]. A gente ainda está junto, mas não podemos estar só nós dois juntos como era no tempo que começamos [a nossa história]”, reflete Expedita sobre a influência do tempo e do Alzheimer nas construções de afeto enquanto casal. 

Com 65 anos de relação, ela compartilha sobre as mudanças ao longo dos anos. “Aquele tempo da gente novo, nem se compara como é agora com a idade que temos, mas ainda assim a gente tem aquele prazer de estar os dois velhinhos juntos. De todo jeito, eu queria que ele pudesse andar, ficar bem para os dois juntinhos andar, dar um beijos, sair pra passear, nem que fosse aqui pela rua mesmo, só nós dois, porque era tão bom”, conta com tom de saudade.

Escolha diária

Foi a partir de uma amizade em comum que se deu o encontro entre Gisele Vicente, 30, e Andressa Andrade, 30. Moradoras do Jardim Santo Antônio, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, que entendem o amor como uma escolha diária, mesmo diante dos desafios.

Entre um dia e outro, é no cuidado e no esforço de manter o vínculo que se reencontram. “Eu tenho feito esse trabalho de me auto analisar para não deixar o estresse cotidiano afetar a pessoa que eu estou. Porque, no fundo, ela não tem culpa. Ela é o meu lar. É a pessoa que eu tenho que trazer o afeto, ou buscar conforto. E não descarregar o estresse”, conta Andressa.

“A vida é de altos e baixos. Todo dia temos o hábito de falar como cada uma está se sentindo, dividir. Sou aquela pessoa mais de acolher, escuto, às vezes a gente só abre um vinho. Dessa forma, não deixamos com que o que pesa na relação faça a gente desistir. A rotina é puxada, [mas pra ela ser boa], ela precisa ser suave”, diz Gisele Vicente, 30, gerente operacional, moradora do Jd Santo Antônio, Capão Redondo, zona sul de São Paulo.

Juntas há um ano, a rotina e demandas do dia são questões que atravessam a construção desse laço, diz Andressa.“Duas horas e meia num transporte público lotado, as pessoas já estão tendo seu dia exaustivo e todo mundo vira meio egoísta nesse transporte. Você já chega em casa cansado, mal-humorado. Mas tenho feito um esforço de me observar mais, para não deixar o estresse do dia a dia afetar quem eu sou. Porque, no fim das contas, a pessoa que está comigo não tem culpa disso.”

Apesar das dificuldades, Andressa reforça que seguem escolhendo estar juntas e que para ela, o amor não é tudo. “Tem gente que se ama e não consegue ficar junto. Mesmo assim, o amor é um ponto de partida. Às vezes, duas pessoas estão juntas mesmo que tudo ao redor diga que não vai dar certo. Mas se ainda existe amor, existe uma chance”, reflete.

“Com certeza eu acho que falar [sobre afeto nas periferias] é revolucionário. Pensando como a Gisele de 15 anos, eu queria ter visto mais casais aqui [na periferia], queria ter partilhado essa vivência com pessoas próximas da nossa região, para as ter também como inspiração, referência”, coloca Gisele, que ressalta sobre a importância de falar sobre afeto na perspectiva de pessoas LGBTQIAPN+.

“No geral, quando existiam duas mulheres demonstrando afeto nas ruas, era um grande problema. É disso que estou falando, quando digo que não via [outras pessoas LGBT+]. Hoje a gente poder estar aqui e falar sobre isso é muito bom”, destaca.

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