Esse texto está preso na minha garganta desde outubro de 2025. Por vezes eu tentei escrevê-lo e as palavras certas não vinham e, sendo sincera, nem sei se essas palavras que escrevo agora, são as melhores para levantar um debate tão delicado.
Esse é um texto que poderia falar sobre o espetáculo que é ver meninas jogando bola no país do futebol, mas é um texto sobre a violência de gênero e como ela vem sendo naturalizada entre os meninos.
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Oyana [nome fictício para proteger a identidade da menor], uma menina de 11 anos, mandou mensagem para sua professora de futebol na noite de domingo do Dia das Crianças, informando que havia sido agredida fisicamente por três meninos com idades de 5, 7 e 11 anos. Relatou que, ao driblar um dos garotos, apanhou, levou chute nas pernas e soco nas costas e agora estava tão triste que tinha vontade de desistir do futebol. A situação ocorreu na rua onde a menina mora.
Na semana seguinte, a menina explicou que não era a primeira vez que apanhava dos meninos, informou que eles sempre a agridem, disse ainda que eles fazem parte de uma escolinha de futebol do bairro e treinam semanalmente.
Essa semana, Oyana informou que estava gostando de um dos meninos que a agrediu, disse que ele a procurou e pediu desculpas e que ele também gostava dela. Oyana disse que decidiu perdoá-lo já que ele prometeu nunca mais fazer isso de novo.
Ontem, Oyana me mandou mensagem, disse que um dos meninos – o mais novo – furou sua bola de futebol… é a segunda vez só este ano.
A violência sofrida por Oyana não é um caso isolado. Todos os dias as meninas periféricas enfrentam desafios para ocupar espaços de lazer, diversão e esporte em seus bairros e escolas. Não são raros os relatos de meninas falando sobre a dificuldade para usar a quadra poliesportiva e jogar futsal na escola, ou denunciando que ao irem para a rua jogar bola, os meninos dizem que o lugar de meninas é lavando louça ou em casa cuidando dos irmãos.
Como psicóloga e educadora, é triste observar que os meninos pequenos já estão aprendendo e incorporando esse comportamento de empurrar as meninas para fora de qualquer espaço de convivência que eles ocupam, reproduzindo uma lógica machista adulta.
Oyana, menina negra de 11 anos de idade, foi agredida fisicamente pelo menino que disse gostar dela, esse mesmo menino pediu desculpas, prometeu nunca mais bater nela. Qualquer semelhança com muitos casos de violência contra a mulher não é mera coincidência.
Nós, meninas e mulheres, aprendemos desde pequenas, que nosso papel é perdoar as agressões vindas de quem diz gostar de nós, aprendemos a suportar a dor e comprar novos objetos porque os nossos foram quebrados num momento em que o outro não suportou nossas habilidades.
Enquanto isso, meninos e homens aprendem, desde pequenos, que agredir é uma forma de lidar com frustrações, que meninas e mulheres não podem ser boas ou melhores que eles em algum campo da vida. Aprendem que a rua é deles e a cozinha é nossa.
E quem ensina tudo isso?
Nós!
Você, eu, outras mulheres, outros homens…
Enquanto de um lado nós, mulheres periféricas, temos fortalecido o debate sobre respeito e autocuidado junto às meninas, fico me perguntando o que os homens têm feito no diálogo/trabalho com os meninos? Enquanto meninas aprendem sobre a história de luta das atletas do futebol e organização pelo direito de jogar bola, o que os meninos têm aprendido?
Enquanto falamos com meninas sobre a existência Fanta, Sissi, Cristiane, Martha e Formiga, para que elas não conheçam apenas jogadores homens, me questiono se os meninos também têm sido incentivados à se inspirarem em jogadoras que lutaram e lutam pelo direito de jogar futebol?
O que se vê hoje, na maioria das vezes nas escolinhas privadas de futebol masculino, nas iniciativas sociais em campos de várzea para meninos, ou no futebol de domingo que o pai leva seu filho para participar é a perpetuação do desejo de formar meninos atletas, mas no que diz respeito à valorização do futebol feminino, ainda se mantém o silêncio dos homens.
