Ana Sanches Baptista, pesquisadora de desigualdades socioambientais e questões de raça, afirma que para discutir racismo ambiental é necessário escutar quem mais sofre suas consequências.
Casa alagada, escassez de água e de saneamento, são só alguns exemplos de como o racismo ambiental está presente nas periferias muito antes de se tornar um tema amplamente falado nas rodas de debate. Moradores de periferias, negros e indígenas são algumas das populações que entendem e vivenciam na prática esse contexto social, que nos territórios marginalizados não é apenas uma análise, mas sim uma realidade.
Atenta aos impactos sociais desse cenário no cotidiano da população negra e periférica, a integrante da Rede Quilombação, coletivo do movimento negro em São Paulo, Ana Sanches, pesquisa as desigualdades socioambientais e questões de raça, a partir da ótica do racismo ambiental. A doutoranda em Mudança Social e Participação Política pauta a sua atuação a partir da necessidade de ouvir as comunidades de terreiro e as mais diversas etnias.
Em entrevista ao Desenrola, a pesquisadora aponta que é fundamental dar lugar para o povo dizer o que e quais são as reais necessidades e pautas que o representa, e a partir disso começar a construir propostas. Confira a entrevista completa com a pesquisadora.
Desenrola – O que é racismo ambiental no contexto das periferias?
Ana Sanches – É a água que não chega ou que chega em má qualidade e em pouca quantidade. É a casa alagando e desabando. É o esgoto a céu aberto. A falta de energia. É o lixo nos becos e nas vielas, é o ar, alimento e solo contaminado. É o despejo de famílias e destruição dos barracos sob a acusação de ilegalidade. É a ausência do Estado que não leva infraestrutura adequada para as quebradas ocupadas por população negra, indígena, pobre e é também a ausência desses grupos vulnerabilizados nos espaços de poder.
Desenrola – E o que é justiça climática também no contexto periférico?
Ana Sanches – É repensar o planejamento urbano de forma justa, popular e inclusiva, para que as pessoas tenham moradia digna, com água na torneira em e qualidade suficiente. É garantir segurança e dignidade da vida humana na produção e fornecimento de energia elétrica (pensando que a produção de energia ainda é fundamentalmente poluidora por conta da fonte de combustíveis fósseis), e que o fornecimento inadequado de energia ou sua ausência coloca a população em situação de risco. É também garantir a participação e poder da população nos espaços de decisão.
Desenrola – Você acredita que essas discussões e análises chegam até as periferias e seus moradores? Se sim, como? Se não, porquê?
Ana Sanches – Não chegam em todo lugar, há muitas periferias no mundo e no Brasil. A verdade é que o povo preto sabe que tem algo errado e sente, literalmente na pele, que há algo errado. Algo injusto que não bate, sabe?
Há saberes populares ainda pouco validados, principalmente no meio acadêmico e entre intelectuais brancos. Sempre digo que há mais de 500 anos nós e nossos ancestrais já sabíamos que vivíamos em uma situação dolorosa e violenta, porém, os conceitos como racismo e racismo ambiental ainda não haviam sido criados.
O que eu quero dizer é que precisamos saber ouvir os discursos que são construídos nas quebradas, pois o povão pode não estar falando uma linguagem técnica e conceitual, mas sabe, e muito bem, na prática, o que é o racismo ambiental. Sabe inclusive como melhorar seu território. Creio que os acadêmicos privilegiados da branquitude é que tem que aprender a ouvir o dialeto e os gritos de socorro e não chegar impondo o que é ou não um debate importante.
Desenrola – Como o racismo ambiental está afetando nesse momento homens, mulheres, crianças negras que dependem de recursos naturais do meio ambiente para sobreviver?
Ana Sanches – Às mudanças climáticas, os efeitos dos eventos extremos e as problemáticas de degradação ambiental já estão afetando algumas populações.
Por exemplo, pense na população ribeirinha, indígena, caiçara e ou quilombola que dependia de pescar no Rio Doce? Ou que entende em sua religiosidade o Rio como um ser, um Deus, algo sagrado? É uma violência material, que afeta a dignidade dessas populações de variadas formas. Em suas possibilidades de práticas religiosas e espirituais, em suas formas de alimentação e sua própria manifestação cultural e de vida.
Pessoas urbanizadas que não tem essa relação de dependência direta (pra comer e cultuar) e afetiva com os rios, não são afetadas da mesma forma.
Desenrola – Existe uma relação do setor privado com as mudanças climáticas? Se sim, como isso se dá?
Ana Sanches – Depende de qual setor privado estamos falando. Há grandes corporações e grandes empresas, algumas até de capital misto, na qual a ideia do lucro é a que prevalece. Eu diria que há uma grande relação entre capitalismo e mudanças climáticas, no sentido que não há sustentabilidade nessa lógica capitalista, na qual a exploração de recursos naturais e de pessoas é o que o mantém de pé.
Essa ideia do maior lucro possível, com menor gasto e que despreza a vida humana, mas principalmente daqueles considerados “não dignos ou descartáveis”, ou seja, as vidas negras e indígenas, é exatamente o nosso problema. É o racismo que sustenta o capitalismo e foi o que o tornou tão forte.
Claro que precisamos olhar com cuidado, pois há recortes de gênero aqui que também são importantes, afinal, se olharmos para mulheres negras, veremos a base da pirâmide.
Desenrola – Qual a importância de relacionar justiça climática, justiça racial e justiça territorial? Na prática, o que isso representa?
Ana Sanches – Pensando que a base das desigualdades na sociedade é uma desigualdade racial, de gênero e de classe, não temos como separar a justiça ambiental/climática do que pensamos como justiça e direitos humanos em uma sociedade.
O entendimento de dignidade e de humanidade que possuímos, é exatamente a que permite às desigualdades raciais, sociais e ambientais que vivemos. Portanto, quando falamos que não há democracia, enquanto houver racismo e machismo, é nesse sentido. Para haver qualquer tipo de justiça, é preciso antes de tudo enfrentar o que estrutura as injustiças e no nosso caso brasileiro, o racismo é a primeira coisa que precisa começar a ser combatida.
Este conteúdo foi produzido no âmbito do projeto Planeta Território, uma iniciativa da Território da Notícia com apoio do Instituto Clima e Sociedade para fomentar e distribuir informação de qualidade sobre a emergência climática, o contexto eleitoral e o impacto na população periférica por meio de totens digitais em estabelecimentos comerciais das periferias de São Paulo