Trancistas formam novas gerações de cuidados ancestrais

Edição:
Ronaldo Matos

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Além de possibilitar a conexão e reencontro com as raízes e conhecimentos ancestrais afro-brasileiros, a prática do trançar tem fortalecido financeiramente muitos profissionais moradores das periferias, se firmando como uma tecnologia social.

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De uma ação de resistência a um gesto de afeto, o ato de trançar o cabelo tem sido ressignificado e possibilitado oportunidades de fortalecimento financeiro para inúmeras trancistas que estão formando novas gerações de cuidados com o cabelo e se reconectando com esse saber ancestral.

Entre essas trancistas que têm passado seus conhecimentos a outras pessoas, fortalecendo a si mesmas e também outras mulheres, está a Monalisa Braga, 36, moradora do Parque Santo Antônio, no distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo. Ela é trancista há mais de dez anos e já formou em torno de 80 pessoas desde que começou a oferecer cursos de tranças.

Monalisa já trabalhou em uma rede de fast food e em uma loja de eletrodomésticos, mas conta que sempre trançou cabelos e já fazia isso como uma fonte de renda desde os seus 12 anos de idade, contribuindo na renda dos pais.

Seu primeiro contato com a trança começou no cabelo da sua irmã mais nova, e com o passar do tempo usou clipes de rap como referência principal nas suas primeiras tranças. Hoje seus atendimentos e os cursos que ministra se tornaram a sua única fonte de renda.

“Eu comecei com uma empresa familiar em parceria com meu irmão que é barbeiro, nossos clientes eram uma boa mistura de clientes locais e pessoas que vinham de toda parte da cidade de São Paulo”, compartilha Monalisa, que antes da abertura do salão com seu irmão, em 2012, já atendia em sua casa, mas foi a partir de 2015, que passou a oferecer cursos para outras mulheres.

“No início, há uns 7 anos atrás não me trazia renda alguma. Hoje ainda dou bolsas para as alunas e as aulas são ministradas junto com as alunas pagantes. E ninguém sabe quem é bolsista ou não. Hoje tenho uma renda dos cursos”

conta a profissional, que além de do curso pago, oferece bolsas de estudo.

Uma das aulas ministrada pela trancista Monalisa Braga

A trancista já ministrou o curso para pessoas que vieram de longe para aprender, como Ceará, Alagoas, Minas Gerais, interior de São Paulo, Rio de Janeiro e Baixada Santista. Ela também já foi a outros estados ministrar workshops.

“Não faço ideia de quantas pessoas fizeram o curso comigo até hoje, mas no grupo de suporte do ano passado até hoje temos em torno de 80 pessoas. Entre alunas e ex-alunas que já concluíram o curso. A grande maioria já tem seu próprio negócio. Tem algumas trancistas até famosas da internet que iniciaram no meu curso”, afirma.

Ela também conta que sente uma grande procura pelas tranças por pessoas que estão passando pela transição capilar.

“Agora está em alta a transição capilar, e para passarem por esse momento usam tranças para se sentirem bem e não sofrerem tanto nesse processo que mexe demais com a autoestima”, relata ela, que também conta que um dos públicos que mais procuram pelo seu curso são mães solo, mulheres pretas e periféricas.

Tecnologia social

Para Lúcia Udemezue e Denna Souza, do Manifesto Crespo, coletivo de arte-educação formado por mulheres negras que dialogam sobre identidades, gênero e práticas antirracistas, a trança é uma modalidade do campo da estética dos cabelos, e é uma oportunidade de geração de renda que cresce cada vez mais.

“Surge também como possibilidade para outras mulheres que precisam prover seus filhos e necessitam de dinheiro, a trança como geração de renda pode ser sugerida também em contextos que observamos a importância de autonomia financeira para sair de situações de violências e outras vulnerabilidades”, avaliam as pesquisadoras e arte-educadoras que fazem parte do Manifesto Crespo junto com Nina Vieira.

“A trança é uma tecnologia social artística ancestral”. É dessa forma que Lúcia Udemezue e Denna Souza, do Manifesto Crespo, contextualizam sobre esse saber. Elas reforçam o caráter de comunicação, de linguagem, sentidos, significados e difusão desse saber ancestral.

As pesquisadoras avaliam positivamente as possibilidades criadas a partir dessa expressão ancestral. 

“É muito bacana ver que esses saberes estão sendo repassados e com criatividade cada pessoa pode criar oportunidades de crescimento pessoal e profissional.”

analisam as pesquisadoras Lúcia Udemezue,  Denna Souza e  Nina Vieira do Manifesto Crespo.

E foi vislumbrando um crescimento pessoal e autonomia financeira que a Williny Washington, 24, moradora de Lajeado, bairro de Guaianases, zona leste de São Paulo, buscou em 2020, um curso de tranças.

Williny trabalhava com auditoria e saiu da área no começo da pandemia, em 2020. Atualmente sua única fonte de renda é a partir das tranças, profissão que exerce há em média 7 meses, e que iniciou logo após ter feito um curso com uma trancista. 

Ela conta que ficou sabendo do curso de tranças pelo instagram, ministrado por uma profissional de Artur Alvim. Fez o curso em maio de 2020 e ao término do curso começou a atuar na área.

“Já era uma vontade antiga minha, e no começo da pandemia descobri a gravidez e decidi sair desse ramo por ter muito contato com público e sempre estar viajando. No curso da Carla [trancista] vi a oportunidade de trabalhar pra mim mesma e assim me sentir mais segura por não precisar viajar”, relata Williny.

A maioria de suas clientes são do bairro onde mora, divulga seu trabalho em busca de clientes através da internet e produzindo conteúdo para ganhar visibilidade. Para ela, a trança carrega símbolos: “Um ato de resistência, negritude e estilo e cada vez mais ganhando espaço entre nós”, compartilha.

Uma das atuações do coletivo Manifesto Crespo se dá através de oficinas de tranças, onde destacam a importância de se observar o diálogo geracional que a técnica e o ato de trançar podem transmitir enquanto legado, comunicação e até reconstrução de identidade.

“Trata-se de um saber também passado entre as gerações (por exemplo, mães e filhos), a criança quando vai sendo trançada pelo membro da família é investida de afeto na construção do penteado, pois este vai sendo adornado com miçangas, fibras, fitas e/ou lãs coloridas que fazem mais do que enfeitar a cabeça, mas também de fortalecer o ori, o corpo de afeto, porque o afeto vai sendo representado também na produção do trançado”, analisa o coletivo de arte-educação.

Essa é uma das formas que Alessandra Silva, 30, moradora de Itapecerica da Serra, região metropolitana de São Paulo, enxerga o ato de trançar.

“Eu sempre acreditei que era sim um saber ancestral, um dom passado para aqueles que teriam a sensibilidade de cuidar de algo tão valioso que é nosso Ori, e sempre me senti muito honrada por isso”

afirma Alessandra Silva.

Alessandra conta que justamente por isso demorou para começar a trabalhar na área, “pois sempre tive como grande responsabilidade e durante muito tempo não me achava pronta”, compartilha.

Alessandra Silva trabalha com tranças desde 2017.

Alessandra trabalhava em uma padaria e ficou desempregada, assim começou na área no final de 2017, tendo como primeiras clientes suas conhecidas, também do território. Seu primeiro contato com a trança aconteceu sendo trançada pela sua tia.

“Foi daí que comecei a observar minha tia que decidi aprender e olhando ela fui pegando o jeito, e ela me permitia cuidar do cabelo de minhas primas, onde quase todos os dias eu ia tentando fazer uma trança diferente”, comenta.

A trancista conta que seu maior público é da quebrada e desde que começou na área, a trança tem sido sua única fonte de renda. Segundo ela, no começo foi complicado até alcançar uma clientela e a confiança do público: “Mas eu estava decidida a ter minha independência financeira, e em questão de tempo, mais ou menos um ano, notei que realmente muita coisa havia mudado”, conta.

Durante o período da pandemia, sua renda mudou, mas ela analisa o cenário e o perfil do seu principal público dentro dessa mudança.

“Teve uma redução, porém nada tão absurdo. São prioridades né, a situação não estava favorável, e como a maior parte de minhas clientes são da quebrada, é algo que dá super pra entender, por muitas vezes abrimos mão de algo para poder ter outro”, afirma a profissional.

“Nessa poética de trançados acabamos por salientar os penteados que nos conectam aos nossos ancestrais que utilizam as tranças também para enfeitar-se ou comunicar algo”

apontam as integrantes do Manifesto Crespo.

Alessandra ainda não abriu turmas para oferecer cursos, mas entre os anos de 2018 e 2020, passou seus conhecimentos como profissional da área para fortalecer outras mulheres da quebrada.

“Em uma conversa com uma colega, ela me falou que gostava muito de tranças e tal, e que tinha pedido umas dicas pra uma outra colega, porém essa mesma não estava na disposição de passar informações básicas, foi onde por um impulso eu falei: ‘Ah se quiser eu posso te ensinar o pouco que sei’, e perguntei pra ela se podíamos nos encontrar um dia pra eu já ir passando umas dicas”, conta Alessandra, que passou alguns materiais e técnicas para a colega.

Ela conta que desde então a colega vem trabalhando na área e sempre que precisa, oferece suporte. “Fico muito feliz por ver a evolução dela na área, e hoje não é a única renda dela, porém durante a pandemia foi o que manteve ela com sua família”, afirma a trancista.

“Eu sempre quis ter esse suporte de alguém, mas eu nunca tive, então acho muito importante ter alguém que acredite na gente e nos incentive a melhorar e correr atrás”

compartilha Alessandra.

A trancista já deu suporte a quatro mulheres, sempre tentando contribuir com o que sabe e fortalecê-las: “Tem quatro pretas pra quem eu dou suporte, de quando pensam em fazer algo que nunca fizeram me chamam e eu passo como e as melhores formas de se trabalhar”, diz.

Ela conta que duas delas não estavam trabalhando, pois devido a pandemia foram dispensadas. “Uma delas trabalhava e procurou por querer poder ter uma renda extra e com o tempo poder ficar só nas tranças, a outra é pra poder aprender a cuidar dos cabelos de suas quatro filhas”, compartilha.

Oferecer cursos é algo que está nos planos de Alessandra, como parte de projetos que ela pretende colocar em prática. “O que me impossibilita no momento é que sou muito fiel ao que sinto, assim como começar a trançar, só dei o passo quando me senti pronta, no momento ainda não sinto que eu conseguiria realmente passar tudo o que é preciso e fora a estrutura, que no momento estou planejando meu espaço”, coloca a profissional. 

“A trança, ela é sim transformadora, porque ela permite que eu transforme a minha realidade a partir deste outro lugar, pensando como geração de renda”

afirmam as especialistas do coletivo Manifesto Crespo.

A partir de saberes passados de geração para geração,  o ato de ensinar, partilhar e fortalecer a si e a outros por meio dessa tecnologia social, muitas possibilidades têm sido criadas e conexões têm sido feitas através dessa tecnologia usada como estratégia de resistência até hoje.

“A trança também é uma linguagem e como tal, se comunica. E é essa comunicação que vai registrando e datando por meio das estilizações dos trançados a nossa história e ilustrando o nosso processo de re-existência”, apontam as pesquisadoras do Manifesto Crespo.

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