Os cantos de exaltação dos territórios e de seus moradores apontam para vitórias passadas e presentes sem esquecer as mazelas que nos são impostas e a necessidade de futuros nossos.
Não é de hoje que a poesia conhecida como épica ou erudita, narra a história de alguns povos contando como suas glórias superam suas desventuras. Assim acontece com a Ilíada e a Odisseia de Homero, escritas pelo autor com base na tradição oral grega narrando as histórias de Ulisses e seus companheiros gregos na Guerra de Tróia e no retorno do “herói” à Atenas como símbolo da suposta “inteligência superior” desse povo.
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Foi assim com “Os Lusíadas”, de Luís Vaz de Camões que, no século XVI, procurava eternizar em forma de exaltação a violenta expansão e colonização portuguesa em África e Ásia, que já ocorria há dois séculos e que estava chegando à América.
Essas são as histórias que – quando a estrutura precária de nosso sistema público de educação permite ou é superada – conhecemos nas aulas de literatura, história e em adaptações cinematográficas. Histórias que transformam violência e dominação em experiências de glórias de um povo. Que são usadas à exaustão para nos convencer da falsa superioridade branca e europeia da tal da “civilização”.
Importante dizer que até bem pouco tempo não ouvíamos falar dos Griots e de sua capacidade de narrar as histórias de diversos povos africanos.
Esses cantos à civilização, palavra que vem de civitas (que significa cidadão, em latim, aqueles que viviam em cidades) serviam para celebrar cidades que eram como os países que temos hoje. Nas cidades/municípios brasileiros, são inúmeros os exemplos das epopeias locais. Paulo Eiró, poeta romântico da segunda metade do século XIX, cantava as paisagens e sobrados de “sua” Santo Amaro natal (antiga cidade e hoje distrito de São Paulo) com grande nostalgia.
Arlindo Cruz, referência do samba, recentemente falecido, também o fez cantando o subúrbio de Madureira, no Rio de Janeiro. Aqui em São Paulo, além de sambistas e rappers que cantaram territórios negros, de favelas e periferias, temos poetas que colocam nossa realidade em outro patamar, provando a sua dignidade de serem cantadas, estudadas e incensadas pelo mundo – que o diga Sérgio Vaz, hoje musealizado em exposição do Museu das Favelas.
A civitas periférica não é considerada cidade e nem civilizada pelos “donos dela” (que se acham civilizados e civilizadores…). No entanto, para nós, ela tem sentimento, cor, inteligência, venturas e desventuras. Temos nossos griots e nossos épicos que nos dizem o tempo todo que somos parte da cidade e temos as rédeas de nosso futuro.
Danylo Paulo, precocemente falecido em agosto do ano passado, aos 34 anos de idade, é uma dessas figuras. Além de poeta, era produtor cultural, fanzinero e grafiteiro, sendo um dos fundadores do Sarau do Vale em 2015, coletivo que atua como Casa de Cultura Popular do Jardim Iguatemi, distrito que não possui esse equipamento pela prefeitura.
“Memórias de Um São” é uma de suas obras primas. Um épico sim. Inspirado na enciclopédia da cultura periférica e popular de São Mateus, produzida por Amanda Freire e Priscila Machado durante a articulação do Fórum de Cultura de São Mateus em 2015.
Neste texto o heroísmo é de São Mateus, e São Mateus são seus moradores, cidadãos-criadores do seu lugar.
Cidade ainda fronteira, com suas novas ocupações surgindo. Cidade rapper, cidade graffiti, cidade teatro. Cidade violência policial e urbana. Cidade que produz conhecimento que melhora nossa visão de mundo, de nossas opções, mas sem incentivo para chegar onde deveria. Franja onde o cheiro do Aterro Sanitário, o São João, fustiga nossas narinas.
Lugar onde reina a poesia, com Sarau do Vale, Seu Camilo, Urbanista Concreto, Slam São Mateus e suas jovens poetas, apesar de todas as amarguras. Romantismo, glória? Não. Temos aqui o épico pé no chão, que pega o busão lotado e parado na avenida, mas quer o transporte vazio, confortável e rápido. Que sofre com o aterro, mas quer os parques. Que foge do tiro e sonha com a paz. Que celebra sua cultura, seus produtores, mas lamenta o subfinanciamento. Não tem como não lembrar que essa era a essência do Danylo. Amor por São Mateus sim, cego jamais.
Quando chegamos à zona sul, distrito do M’Boi Mirim, Jardim Ibirapuera, terra do sanfoneiro Escurinho do Acordeon, da líder comunitária e professora Tia Maria e de um Bloco do Beco que toma a Salgueiro do Campo, principal rua do bairro, todos os anos nos carnavais, colocamo-nos a escutar a poetisa e moradora Jenyffer Nascimento (uma das maiores escritoras e arte-educadoras desse país, vale ressaltar) ironizando poeticamente a identidade implementada pela burocracia do Estado que apaga as mulheres negras e periféricas.

Que as trata, e os demais moradores das quebradas, como número de RG, CPF, foto, documento, estatística sem passado, presente ou futuro, destinados a produzir riqueza para outros. Sem vida criativa no seu bairro. Esse canto dos supostos anônimos, sem importância, mas com muito brilho no olhar é o fio que conduz o minidocumentário Identidade Quebrada, produzido em 2023 por jovens do curso de audiovisual do IbiraLab, braço audiovisual do Bloco do Beco, articulado pelo cineasta e poeta Daniel Fagundes, também colunista nesta casa.
Um épico gerando outro. Se Tróia tem filme, porque o poema Identidade não pode ter um também? Nele, as identidades esvaziadas pelos números e estatísticas são reveladas pela própria Jenyffer (Jê), por Antônio Luiz (Buldog), David (Mc Zô), Arnaldo (Pastel) e José Claudemir (Caburé), apelidos que revelam sua popularidade e capacidade de circulação no bairro.
Cada personagem e sua história de vida são parte dos espaços e atividades que ajudam a sustentar e transformar no Jardim Ibirapuera (poesia, bateria do Bloco do Beco, funk, futebol de várzea e bar), no bairro em construção, antes longe de tudo e hoje cada vez mais intenso, periférico e central, ventura e desventura se misturam. Construção permanente.
Enquanto os cantos coloniais celebram aquilo que para nós é desgraça de cinco séculos, nossos griots fazem o épico da autoconstrução, da sobrevivência que passa pela realização de alguns sonhos, ainda de necessárias reformas, reconstruções, expansões, revoluções.
Uma epopeia que sofre no trem, passa calor na falta de árvores, espera na fila do SUS, foge das enchentes mas já tem a ciência de passados e presentes erguidos que já conseguimos cantar e repensar coletivamente.
Vale a pena ler (e assistir), por inteiro, essas duas epopeias periféricas.
Este é um conteúdo opinativo. O Desenrola e Não Me Enrola não modifica os conteúdos de seus colaboradores colunistas.