“Nós, mulheres negras, estamos trazendo nossa contribuição política e criticando este modelo de sociedade que não nos contempla.” É assim que Juliana Gonçalves, jornalista e pesquisadora apresenta sobre a luta das mulheres negras por reparação e bem viver, princípio norteador da 10° edição da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo.
Fundamentado no cuidado, nos princípios de coletividade, dignidade, justiça social e respeito à vida, o conceito de bem viver surge a partir da denúncia das inúmeras violências históricas que atravessam populações marginalizadas. A filosofia, que propõe caminhos de emancipação, é baseada nos conhecimentos dos povos tradicionais, especialmente dos povos andinos e indígenas que vivem há séculos na região da Cordilheira dos Andes, em países como Peru, Bolívia, Equador, Chile, Argentina e Colômbia.
‘‘Quando marchamos, celebramos a vida, o legado e a memória do que as mulheres negras construíram e constroem neste país até hoje. Ao mesmo tempo, a gente faz a crítica, porque infelizmente esse modelo de sociedade, político e econômico, não nos contempla. É um modelo racista e sexista, que não valoriza a abundância dos saberes que existem nos territórios”
Juliana Gonçalves, jornalista, pesquisadora e integrante da Marcha das Mulheres Negras.
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Sob constantes ataques, a ativista reforça que a luta é por direitos e para que as mulheres negras possam viver com liberdade e dignidade, sobretudo, nas periferias. “A periferia é rica e está sendo massacrada com a falta de direitos básicos: escola, educação, cultura”, afirma.
A jornalista ressalta que esse massacre acontece em diferentes frentes, como a forma hostil que a Prefeitura de São Paulo trata o movimento funk. “Também estamos sendo massacradas quando a gente não consegue diminuir os números de feminicídio de mulheres negras, sobretudo num momento em que a Lei Maria da Penha [vai completar quase] 20 anos. É um grande avanço, porém, ainda não chega para as mulheres negras”, coloca.
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, divulgado na véspera do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, apontam que 1.492 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2024, sendo que 63,6% delas são mulheres negras – soma de pretas e pardas.
Nesse cenário, Juliana aponta que a construção do Bem Viver exige organização política e continuidade do que foi construído pelas que vieram antes.
“Tudo que [vivenciamos] está sendo sintetizado em nosso manifesto político, que aborda sobre o PL da Devastação, justiça climática em território urbano, etc. É o momento de apresentarmos para a sociedade tudo o que temos pensado e refletido dentro do movimento de mulheres negras. E isto não é um movimento isolado. Isso faz parte de um grande movimento nacional”, coloca a pesquisadora sobre algumas das estratégias do movimento.
No Brasil, em 2025, 18 cidades marcharam por reparação e bem viver. As mobilizações começaram no dia 19 de julho e seguiram até o dia 27. Desde a grande marcha de 2015, quando se juntaram para ocupar Brasília e reivindicar direitos, muita coisa mudou. No entanto, as conquistas não acompanharam todas as necessidades das mulheres negras.
“Ainda observamos a nossa população encabeçando os índices de pobreza, vulnerabilidade, evasão escolar, violência. Em 2015, fomos o último movimento a ocupar Brasília antes do golpe da Dilma, e já havia um acampamento pedindo a volta da ditadura. O que vivemos hoje é reflexo de algo que vem sendo [articulado] há anos”, analisa Juliana, que cita sobre momentos complexos para a população, como a pandemia da covid, que só não foi pior, porque as mulheres negras estavam organizadas nos seus territórios.


“Essa democracia que está posta não contempla as mulheres negras, não contempla a população pobre, as empregadas domésticas, mulheres que estão na prostituição, as que estão nos terreiros. O que estamos fazendo é discutir e disputar que Estado a gente quer construir e quais bases de Estado são essas”, pontua.
“A nossa principal reivindicação ainda é pelo fim da morte de nossos filhos. Ainda é o fim do genocídio da população preta. A gente avançou, mas é preciso lutar. É preciso estar na rua contra essa política de morte que ainda é viva no país. Não é possível que fiquemos tranquilos sabendo que, a cada 23 minutos, morre um jovem negro, e que o índice de mortalidade de mulheres negras também aumentou. O encarceramento é outra ferramenta de controle e de manipulação.”
Juliana Gonçalves, jornalista, pesquisadora e integrante da Marcha das Mulheres Negras.
Criar estratégias a partir do Bem Viver, é sobre pensar outras formas de sobrevivência e existência em coletivo. É o que afirma Maria José Menezes, ao pontuar que não é possível discutir cidadania, se não for pela ótica das mulheres negras.
Bióloga, ativista e uma das fundadoras da Marcha das Mulheres Negras, Maria José conta que representa uma geração de mulheres nordestinas que migraram para São Paulo em contexto de deslocamento forçado, na década de 1960, e destaca que o Estado sempre foi um articulador de violências contra a população negra.
“A luta das mulheres negras remonta à formação do que se chama de Brasil, desde o tráfico transatlântico. Nós nunca tivemos, de fato, uma cidadania real. Mesmo após o período escravagista, a população negra, sobretudo as mulheres, segue até os dias atuais enfrentando a precariedade e a violência do Estado.”
Maria José Menezes, bióloga, ativista e uma das fundadoras da Marcha das Mulheres Negras.
Em 2025, o movimento se organiza para realizar a 2° Marcha Nacional das Mulheres Negras, em Brasília, 10 anos após a primeira mobilização que marca a atuação das mulheres por justiça racial e de gênero no país.
“Em 2015, mobilizamos cerca de 50 mil mulheres para Brasília. Foi a nossa força, a nossa voz de dizer: Chega! Nós queremos moradia, cidadania, dignidade, saúde, queremos viver, pois somos o setor da sociedade que, de fato, paga os impostos e que mantém o Estado brasileiro’’ relembra Maria José.
A ativista ressalta que não é mais possível viver em um país com tantas violações. “Exigimos que os nossos direitos sejam respeitados. Exigimos ser tratadas com cidadania, exigimos moradia, exigimos o direito de permanecer em nossos territórios dizendo não ao despejo e a tantas outras opressões”. Ela reforça a importância de uma sociedade que pensa e atua a partir da coletividade.
“Somos mulheres cis, mulheres trans, bissexuais, lésbicas, mulheres com deficiência, trabalhadoras domésticas, mães, donas de casa, etc, todas lutando por algo em comum: o Bem Viver’’, finaliza.