Negócios da quebrada fortalecem setor de cervejas artesanais nas periferias

Edição:
Evelyn Vilhena

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Moradores das periferias de São Paulo criaram suas próprias cervejas e buscam fazer com que a bebida produzida artesanalmente também esteja presente e seja disseminada “da ponte pra cá”.

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No rótulo da cerveja em lata da Bola Véia também possui a representação da quebrada, assim como na embalagem em garrafa. Antes, o rótulo era apenas o logo da cerveja. Foto: Mateus Fernandes.

O mercado de cervejarias artesanais que se popularizou principalmente nas regiões centrais das cidades, é um setor que desperta o interesse de muitos moradores das quebradas, seja para consumo, produção ou comercialização.

Esse é o caso de muitos empreendedores periféricos que produzem e comercializam o produto artesanal, com iniciativas e ideias criadas a partir de diferentes contextos.

Criações inspiradas no futebol de várzea, com intuito de combater rótulos sociais ou de expandir o consumo da bebida produzida com melhores insumos, são algumas das várias motivações dos empreendedores periféricos no ramo.

Conversamos com três produtores e produtoras de cervejas artesanais da quebrada, que nos contaram sobre seus empreendimentos e atuação, confira:

Bola Véia 

Morador da Casa Verde, zona norte de São Paulo, Rogerinho Ferradura é o criador da cerveja Bola Veia. O projeto de ter uma marca de cerveja surgiu através do seu canal no YouTube, o Programa Bola Veia, onde o cervejeiro falava sobre futebol de várzea.

“Durante a gravação, o pessoal tomava cerveja e foi aí que eu tive a sacada: criar uma cerveja e não ficar fazendo propaganda gratuita de uma grande marca do comércio”

conta Rogério Gervásio, mais conhecido como Rogerinho Ferradura.

No início, a cerveja era produzida no fundo do quintal de Rogério, pois era feita uma quantidade apenas para os participantes das lives consumirem. Com o tempo, os convidados gostaram da bebida e queriam encomendar para levar pra casa, e até os espectadores se interessaram.

“Eu falei: ‘cara, tem que levar isso pra frente’. E já comecei a fazer o processo de registro, de produzir já de grande escala, de vir para uma cervejaria, foi quando me apresentaram a TRIA, aí fizemos essa parceria de começar a produzir com eles”, conta Rogerinho sobre o início da cerveja Bola Véia.

Ele ressalta que, para a produção da cerveja, utiliza um formato muito comum entre os produtores de cerveja artesanal e independentes. Alguns cervejeiros que não possuem a sua própria cervejaria, fábrica ou espaço adequado para a produção, utilizam os equipamentos e espaço de outras cervejarias já atuantes no mercado, que já produzem outras marcas.

A embalagem é um dos destaques da cerveja Bola Veia. Foto: Mateus Fernandes

Para Rogerinho, um dos diferenciais nas vendas da Bola Véia é o rótulo. O desenho, feito a mão a partir de uma parceria, busca retratar “todos os guetos, o brasilzão”, afirma.

Segundo ele, o rótulo da cerveja chamou atenção de vários locais pela internet, fazendo com que a Bola Veia chegasse a outros estados, como Brasília, Rio Grande do Sul e Paraná. 

“Ela não é cara [a cerveja], mas eu não consigo fazer o valor das grandes marcas. Só que assim, você vai tomar dez, vinte latinhas [das marcas populares], enquanto de uma boa artesanal você vai comprar cinco e vai ficar de boa, não vai ficar doidão. É aquilo: beba pouco, beba melhor”

analisa o cervejeiro.

Enquanto não abre seu próprio bar, o morador da Casa Verde realiza suas vendas através da internet, nas redes da Bola Véia, bares parceiros, e na sua própria casa, na zona norte de São Paulo, que também funciona como ponto de distribuição. O local ficou conhecido como a “Casa da Véia“.

“Os amigos mais próximos compra e toma lá [em sua casa], a gente fica tomando na calçada ou no quintal de casa. E lá dentro tem a decoração, que é onde tiro as fotos, tudo no processo pra ser um futuro bar”

finaliza Rogerinho Ferradura que tem seu quarto decorado com o tema da cerveja, espaço que também utiliza como cenário para as fotos que usa na divulgação do seu produto.

Corisca 

Criada por duas mulheres, Melissa Barbosa e sua parceira Eneide Pontes Gama, a cerveja Corisca surgiu em 2017, em Taboão da Serra, com a proposta de levar a cerveja puro malte para a periferia com um preço justo e acessível.

Segundo as fundadoras, a criação da cerveja Corisca está aliada ao combate de rótulos sociais machistas presentes na sociedade, que por muitos anos teve propagandas e seu consumo associados majoritariamente ao público masculino.

“Nos tornamos ativas nos movimentos sociais da periferia, onde pegamos amor por temas de melhor qualidade de vida para os moradores da periferia sul de São Paulo, passamos por alimentação orgânica, implantação de coleta seletiva na cidade de Taboão da Serra, descobrimos temas de educação inclusiva, economia criativa e circular, e temos nos dedicados a tornar sonhos em realidade”, conta Melissa sobre as motivações e caminhos que percorreram até a criação da cerveja Corisca.

Melissa afirma que sempre teve curiosidade de experimentar uma cerveja puro malte diferente, artesanal, porém não encontrava nenhuma à venda na sua região, achava apenas as cervejas industrializadas. 

“Eu lembro que na época, a gente pagava 30 reais em um copo de 300ml. E isso pra gente foi algo muito impactante, porque acabava que a gente não tinha a oportunidade de conhecer esse universo”

conta a cervejeira, que complementa contando que alguns anos atrás, para encontrar uma cerveja artesanal, precisava atravessar pontes e que atravessando essas pontes, encontrava mais uma barreira: os preços.

Interessadas em descobrir mais sobre esse mundo das cervejas artesanais, Melissa e Eneide se empenharam em aprender como funcionava a produção e os componentes para criar sua própria cerveja.

Nesse processo, elas constataram que ao produzir através das cooperativas, ou no mesmo formato de produção da Bola Véia, utilizando o espaço e equipamentos de outras cervejarias do mercado, o valor poderia ser barateado, pois a produção e a compra dos ingredientes são feitas em maior volume, gerando assim menos custos individuais.

Antes de se chamar “Corisca”, a cerveja criada por Melissa e Eneide se chamava “Benedita”. A mudança oficial do nome aconteceu no final de 2021, e junto realizaram a mudança no rótulo da cerveja. Foto: Gustavo Henrique.

Melissa conta que no começo tudo não passava de uma brincadeira. Elas fizeram o primeiro lote e viram que a escolha dos lúpulos e a composição feita favoreceram o sabor da cerveja. Depois desse resultado ficou mais fácil, e assim, começaram a viver da sua própria cerveja.

“Nesta peregrinação sentimos falta de uma boa cerveja a preço acessível, então nos tornamos empreendedoras da Cerveja Corisca, uma cervejaria feminista que surgiu com o objetivo de levar cerveja puro malte à preço justo para periferia de São Paulo”, afirma Melissa.

A cerveja Corisca é vendida e entregue toda semana, e via delivery de quarta a sábado, além dos pontos de venda parceiros espalhados pela cidade. 

Graja Beer 

Leandro Sequele, educador há mais de 20 anos, é o criador da cerveja Graja Beer, bebida que leva o nome do território onde foi criada, no Grajaú, zona sul de São Paulo.

Inicialmente a cerveja começou a ser pensada por um grupo de amigos, que de 2016 a 2018, pesquisaram sobre o mercado, e foi lançada oficialmente em 2018, no aniversário de São Paulo, no Centro Cultural Grajaú.

Leandro conta que uma das motivações para a criação da bebida, veio de uma percepção sobre o perfil de pessoas que consumiam a cerveja artesanal, o que acredita ser devido ao preço e a localização que normalmente se vendia o produto.

“A gente só encontrava da mesma cor, do mesmo bairro, da mesma linguagem nos serviços, na segurança, na cozinha, no atendimento. Chegou o momento que a gente falou: ‘pô, se a cerveja sempre faz parte do nosso dia a dia, por que ela tá tão distante do nosso povo? porque não a gente ter controle sobre isso?”

aponta Leandro sobre um dos questionamentos que fez ao criar a Graja Beer.

O grajauense conta que a Graja Beer também tem a proposta de “beba menos, beba melhor”, e que o conceito vai além do consumo da cerveja.

Ele relata ter consciência que a periferia tem muitos problemas históricos com bebida alcoólica e esse novo tipo de consumo também estaria atrelado a contribuir para evitar excessos. 

“Quando você começa a consumir cerveja artesanal, seja pela questão do paladar ou pelo próprio valor dela, você consome diferente, você não vai tomar vinte cervejas artesanais, você vai tomar dois, três copos e se sente satisfeito”

afirma.

Para ele, a Graja Beer não é só uma cerveja ou uma marca que busca lucro, mas um produto novo que se apresenta para as pessoas da comunidade através de uma série de linguagens, como a identidade, a arte e o senso de pertencimento.

“Quando a gente sai na mídia, a gente sai falando dos coletivos que vem dentro da Graja e ocupam, sobre a arte que tem na casa, que é um artista do Cocaia, a gente tá falando do mural que o André Bueno fez anteriormente, a gente tá falando de uma série de linguagens que fazem parte do que é o ser Graja Beer”, aponta Leandro sobre toda rede que passa a se articular e fortalecer junto com a Graja Beer. 

O rótulo da cerveja destaca o distrito do Grajaú. Foto: Mateus Fernandes.

A cerveja é vendida na sede da Graja Beer, no Graja Beer Pub, espaço inaugurado um ano após a cerveja, em 2019. A Graja Beer Pub é o local fixo de venda da bebida, mas quando fecham parcerias ou produzem em outra cervejaria, realizam a venda no espaço, conforme cada acordo, além da venda que também realizam via delivery.

A produção acontece em parceria com outras marcas e fábricas, e assim como a cerveja Bola Véia e Corisca, também utiliza a estrutura de cervejarias já atuantes no mercado. O local de produção da Graja Beer é alterado conforme as parcerias e possibilidades. 

“Se nós juntarmos quatro, cinco cervejarias e fazemos uma produção de uma base cervejeira, podemos fazer dez estilos diferentes a partir da mesma base e ter um barateamento dessa base gigantesco”

destaca Leandro, que também propõe com a Graja Beer uma produção de forma cooperativa entre os produtores de cerveja artesanal nas periferias.

Ele afirma que conforme maior o volume comprado, menor acaba sendo o preço da unidade. Por isso, para ele, criar novas formas de produzir a cerveja artesanal é uma das principais estratégias para manter viva as cervejarias independentes, principalmente as periféricas.

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