REPORTAGEM

Em 2020, a comunicação periférica fez registro histórico da pandemia

Edição:
Ronaldo Matos

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Três iniciativas de comunicação realizaram documentários e webséries com depoimentos de moradores que expõem diversas reflexões políticas e históricas sobre os impactos do coronavírus na população periférica.  

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Documentário da Periferia Em Movimento entrevistou diversos atores sociais das periferias durante a pandemia. (Foto: Aline Rodrigues)

Você já pensou em como as produções audiovisuais das quebradas tem registrado os atravessamentos das desigualdades sociais dentro das periferias em São Paulo? Em 2020, esses registros históricos foram produzidos pela produtora de jornalismo de quebrada Periferia Em Movimento, pela cineasta Nana Prudêncio e pela produtora audiovisual Fluxo Imagens.

À sua maneira, essas iniciativas estão produzindo e registrando os impactos do coronavírus nos territórios, corpos e mentes dos moradores das periferias e favelas de São Paulo. Entrevistamos três iniciativas de comunicação que produziram documentários e web-séries sobre o passado, presente,e o futuro da pandemia nas quebradas.

Com direção da cineasta Nana Prudêncio, a produtora independente Zalika Produções lançou o documentário “Pandemia do Sistema: O retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil”. O média metragem narra como as pessoas têm enfrentado a pandemia de coronavírus em diferentes regiões periféricas, retratando os efeitos da crise econômica e de saúde pública, que mostra uma clara diferença social e racial no Brasil.

A Periferia Em Movimento, produtora de jornalismo de quebrada, produziu o minidocumentário “Interrompemos a Programação?”, composto por uma série de entrevistas com personagens da quebrada que tiveram seus fazeres sociais impactados pela pandemia de coronavírus.

Já a produtora audiovisual Fluxo Imagens, apostou numa reflexão sobre o futuro da quebrada, após pandemia, para produzir a série “Cartas Para o futuro”, composta por uma série de entrevistas que relatam o olhar e a vivência dos moradores das periferias da zona sul e como eles imaginam o futuro de seus territórios após a pandemia.

“Eu sabia do coronavírus e que o bicho tava pegando, mas aí eu vi que a fome tava matando mais, a polícia estava matando mais e resolvi fazer o documentário” 

Naná Prudêncio

Naná Prudêncio é fotógrafa, videomaker e moradora do Parque Pinheiros, bairro do município de Taboão da Serra. Ela criou a Zalika Produções e em agosto de 2020, a cineasta lançou o média metragem “Pandemia do Sistema: O retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil” e comenta sobre suas motivações nesta produção.

“O média metragem surgiu quando eu comecei a acompanhar os meus companheiros, lideranças na quebrada e fui pessoalmente nas quebradas e vi que a situação era muito crítica, era mais do que coronavírus, eu não tava saindo de casa, então eu sabia que o coronavírus e que o bicho tava pegando, mas aí eu vi que a fome tava matando mais, a polícia estava matando mais, e resolvi fazer o documentário, em uma das voltas nessas ações que eu fui acompanhar aqui no Taboão”, lembra a cineasta.

Prudêncio comenta sobre a importância de fazer registros na quebrada e principalmente deste momento, criar evidências e narrativas sobre nós e nossos territórios. “A importância de registrar a pandemia dos sistema, de ter isso documentado, de agora, é mais um documento, mais uma ação que a gente tem para comprovar o quanto a desigualdade neste país é estancada, e que as pessoas da periferia elas sabiam, sabem em 2020 no meio de uma pandemia tudo o que tá acontecendo, é muito além do coronavírus, tem o lance da desigualdade, da fome, da miséria mesmo e quantas pessoas ganham grana com essa miséria”, argumenta ela.

Para a moradora de Taboão da Serra, a pandemia ajudou pessoas que ganham grana com essa miséria, mas deixou os pobres cada vez mais pobres. “Os miseráveis cada vez mais miseráveis, mais favelas nascendo, significa que a desigualdade é maior, mostrar esse histórico agora e tentar dialogar com mais pessoas sobre”..

A cineasta enfatiza a importância de escutar os moradores para garantir o protagonismo das vozes e das ideias dentro do média metragem. “Pensando nas vozes, eu quis protagonizar pessoas como mulheres da periferia que estão ali teoricamente anônimas, vivendo suas vidas, umas sustentando suas famílias sozinhas, outras não, mas sempre se virando, e eu queria mostrar para a própria periferia o quanto nós sabemos o que está acontecendo e o quanto nós naturalizamos tudo isso, naturalizou o racismo, naturalizou tudo isso, e a importância também de colocar essas mulheres em primeira pessoa e essas lideranças também em primeira pessoa, elas protagonizarem mesmo, eles falarem o que eles estão pensando, o que eles estão sentindo, o que estão vivendo, nada maquiado”, descreve.

Para Prudêncio, o poder público está ausente nas periferias, pelo fato de não ter visto nenhuma liderança comunitária sendo ajudada pelo governo. “Eu acho que o Governo né, o próprio sistema sabe que a pandemia é geral, que a pandemia não tá só no corona, há um plano de extermínio né, que eu acredito muito nesse plano, principalmente aqui na periferia, eu nasci na periferia, cresci na periferia, vivo na periferia, trabalho na periferia, eu sei que tem um plano perfeito, e esse plano dá certo, tem dado certo, as vezes dá uma escapada desse plano, ele é mundial, então o retrato, como o governo vai enxergar o documentário eu não sei, mas que ele sabe que essa pandemia é o sistema, ele sabe, ele planeja isso, ele articula e prática isso. E essa foi a treta mesmo”, opina a cineasta.

Segundo a videomaker é denunciar esse estado de abandono das periferias e favelas. “A ideia do filme é denunciar isso, mesmo que de diversas formas esse país é genocida, não precisa dar um tiro no peito do meu filho ou no meu peito para eles serem genocidas, ele pode me deixar sem emprego, me deixar sem moradia, na questão habitacional muita gente sem água que a gente fala no filme sobre a questão da água na periferia, que é bem difícil, muitas coisas que quando você tem, é vista até como privilegiadas, esse país é assim, se você tem água boa, você é privilegiado, mas não é seu direito sabe, e eu acho que vem nessa denúncia mesmo, para gente refletir e buscar alternativas sobre todas essas situações que é colocada a população preta e periférica”, finaliza.

“Nós, que lidamos como tecelões da memória coletiva, estamos construindo não só o futuro mas também o passado no presente”

Thiago Borges

A Periferia em Movimento completou 10 anos de existência atuando nas periferias de São Paulo em 2020, uma marca histórica tocada por pessoas que estão produzindo o jornalismo de quebrada, que busca a valorização e protagonismo de quem está nas frentes de luta pela garantia de direitos nas periferias.

Segundo Thiago Borges, 33, morador do Jardim dos Manacás no Grajaú e gestor de conteúdos da Periferia Em Movimento, o minidocumentário “Interrompemos a Programação?” surge com a proposta de refletir sobre esse momento, provocando um debate sobre a influência da mídia na formação da identidade de moradores e moradoras das periferias, e por outro lado, como o território e as relações sociais constituídas nele também influenciam nessa identidade.

Borges comenta que o caminho traçado pela Periferia Em Movimento foi entrevistar pessoas que estão em diferentes frentes de luta nas periferias paulistanas: contra o genocídio negro, o machismo e o racismo; que estão na resistência indígena; nas lutas LGBT, especialmente da população trans; dos direitos de pessoas vivendo com HIV; e pela ocupação da cidade em geral.

“A gente fez entrevistas com moradoras e moradores das periferias que têm uma atuação transformadora em seus territórios, e os relatos estavam confluindo para o ponto em que as narrativas periféricas geram algumas rachaduras no sistema, como se fosse um curso natural das coisas. Porém, a investigação foi interrompida em março de 2020 com a pandemia de coronavírus e necessidade de distanciamento social. A situação, que paralisou algumas ações e acelerou outras em toda a sociedade, refaz as nossas perguntas iniciais: qual é o papel da comunicação nesse momento?”, aponta o jornalista.

Em meio a esse trabalho investigativo, o jornalista ressalta como a pandemia atravessou a produção e o impacto deste momento nas mídias periféricas. “Os relatos estavam confluindo para chegarmos ao ponto de que a mídia em geral sempre teve impacto na nossa forma de ver o mundo, mas as manifestações periféricas desconstroem isso no cotidiano. O fortalecimento de mídias nas periferias ampliam as rachaduras nesse sistema imposto, como resultado de um processo que é antigo. Não é suficiente, mas tem um efeito”, avalia Borges.

Esse impacto da pandemia e do isolamento social foi sentido também na rotina de trabalho da Periferia Em Movimento. “Com a pandemia, tivemos que parar tudo como todo mundo. No início, percebemos um isolamento de fato dos sujeitos periféricos, refletindo sobre o que fazer nesse momento. No nosso caso, não foi diferente. Por outro lado, o momento se mostrou como ainda mais crucial o papel da mídia nas quebradas, da nossa dependência de acessar e distribuir informação útil e confiável para enfrentar esse momento. Então, entrevistamos novas pessoas e voltamos a entrevistar outras que já tinham falado pra colocar mais essa camada em discussão. Nós interrompemos de fato uma programação? Existe essa programação?”, questiona o comunicador.

Borges enfatiza outro ponto importante que foi abordado por Will Ferreira, ex-colaborador da Periferia Em Movimento. “O Will Ferreira apontou: ‘Não é simplesmente pegar o celular e fazer uma live. É pensar também como manter a comunicação com quem a internet não chega, não tem computador, e a gente precisa construir’. Nesse sentido, nós interrompemos de fato uma programação? Existia uma programação? Tudo isso mostra que não há uma linearidade, certo. Nós, que lidamos como tecelões da memória coletiva, estamos construindo não só o futuro mas também o passado no presente. São múltiplas camadas, algumas paralisadas aqui mas outras fluindo de forma completamente acelerada.

Outro integrante da Periferia Em Movimento, o produtor audiovisual Pedro Ariel Salvador, 19, morador do Parque São José, no Grajaú, comenta sobre a importância de registrar esse momento, para criar memória e mostrar o descaso do governo. “Desde o começo da quarentena, nós que somos da periferia pudemos ter mais certeza ainda do descaso do governo, paralelo a isso, também pudemos enxergar a importância da educação e da saúde e o quanto isso chega de maneira precária com quem vive nas margens. As quebradas estão sendo as mais afetadas durante esse período justamente pela falta de estrutura que nos é dada. São trabalhadores e trabalhadoras que precisam sair de casa para garantir o pão de cada dia, mães que precisam trabalhar e não podem deixar os filhos na escola, crianças e adolescentes que não conseguem estudar pela internet. Pessoas que tiveram o “privilégio” de trabalhar em casa, mas ao mesmo tempo não conseguem dar conta da demanda de trampo por simplesmente não ter um local adequado para se dedicar”, analisa.

Ariel faz um importante questionamento sobre a rotina do morador do quebrada que precisa ir trabalhar em meio à pandemia. “Quando saímos, corremos risco de ferir nossa saúde física, quando estamos em casa, corremos risco de ferir nossa saúde mental. Isso só mostra, mais uma vez, que no final de tudo, para quem tá no topo da pirâmide o que mais importa é o dinheiro, o capitalismo. Acho que de maneira geral, os impactos foram bem negativos, mas também consigo enxergar a potência da periferia quando a gente se junta para fazer algo, seja distribuindo cesta básica, marmita, máscaras ou álcool em gel. Isso me faz ter um fundinho de esperança e perceber que a gente tem que lutar sim, mas pra gente lutar, precisamos nos fortalecer antes”. 

“Precisamos tomar a frente das falas que se referem a nós”

Maxuel Mello

“A série, Cartas Para o Futuro, produzida pela Fluxo Imagens surge de uma inquietação do Nenê e minha, quanto às dúvidas sobre o futuro da quebrada e do nosso povo né, a galera que vemos todos os dias e que tanto nós nos identificamos né”, explica Maxuel Mello, 24, morador do Jardim Piracuama, zona sul da cidade. Ele atua como diretor de fotografia e editor na produtora audiovisual criada junto com seu irmão Marcelino Mello.

Juntamente com as inquietações e questionamentos que levaram a criação da série Cartas para o Futuro, Maxuel conta que outro fato muito triste contribuiu para a concepção do projeto: que é não existir registros de como as periferias passaram por outros momentos históricos, ou até mesmo o fato de esse registro ser muitas vezes feito a partir de um olhar branco, de um olhar de quem não vive na periferia, que coloca todo mundo que é de periferia em uma caixinha só.

“Até pouco tempo atrás pensando em tempos históricos, já se viveu outras pandemia, surtos virais e o Brasil também viveu estes surtos, e nesses tempos já existia periferia, já se existia favela, e não se tem registro disso, muito pouco se tem e quando tem é apenas estatístico, viramos números. Ter este registro hoje é garantir que não fique só nos números, que a periferia também tenha sua opinião registrada, no caso da série pensamos em trazer uma reflexão sobre o que será o pós pandemia, como estaremos né”, relata o cineasta da quebrada.

“Foi a partir disso que o Nenê e eu sentimos essa necessidade né, este incômodo, a série também surgiu em um momento de mais dúvidas, em que sabíamos menos ainda sobre o vírus, e o que ele viria a causar e tem causado. Nossa ideia não é responder como será o futuro, nem nada disso, a ideia é questionar o que cada pessoa pensa sobre o seu próprio futuro, desprendido de julgamentos”, conta o diretor de fotografia.

Maxuel enfatiza a importância de produzir a websérie e escutar dos moradores da quebrada como eles estão enxergando e pensando o futuro. “Precisamos tomar frente das falas que se referem a nós. Devemos ser protagonistas da nossa própria história e caminhada, nós que somos os especialistas em vida né, estamos vivos a quanto tempo! A gente gosta de estar vivo. Não é de hoje que se pensa o futuro, na periferia o futuro sempre foi pensado, desde o kit que o menor vai usar no baile, até a feira que a dona de casa e mãe solo planeja minuciosamente para que sobre ainda dinheiro pro gás, luz, água e as demais coisas tão necessárias para se viver. Não só como um registro ali do momento, mas também para que se possa olhar pra trás e ter algum panorama né”, explica ele.

O produtor audiovisual destaca a importância de retratar os corpos de quem vive nas quebradas, para que outros moradores se reconheçam nas histórias que eles contam. “Não se vê rostos pretos e periféricos, nem tão pouco a fala destas pessoas em posição de protagonismo, eu diria que isso vale para todos os meios de comunicação, a Internet nos dá esta possibilidade de mostrar pra mais gente a vastidão que é cada uma destas pessoas. Se ver é muito importante também, olhar alguém parecido contigo e poder ser espelho pra que outros também sejam, isso é lindo, e de novo, muito necessário, para que cada vez mais vejamos nós nos lugares inspirando outros”.

Para dar um tom realista e honesto às gravações da websérie Cartaz para o Futuro, Maxuel destaca que os personagens retratados são moradores da quebrada e foram entrevistados em sua rotina cotidiana. “Retratamos as pessoas do nosso dia a dia, amigos ou não, que topem conversar conosco, e é muito isso, é uma troca de idéia, às vezes chega a ser terapêutico, já ouvimos de algumas pessoas que conversar com a gente a fez bem, tirou a cabeça de um monte de notícia que acaba bombardeando todo dia, que já não se tem uma conversa daquelas de sentar na calçada com os amigos e nem ver o tempo passar. Quase que um suspiro, pra subir na arena de novo e voltar pra batalhar. Nós não direcionamos a fala, o que importa é o que aquela pessoa pensa da forma mais honesta, acho que está honestidade enriquece ainda mais cada um dos episódios”, finaliza. 

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