Reportagem

Capoeira angola: prática é apontada como ferramenta de aprendizagem na primeira infância

A partir da vivência com a capoeira, crianças e especialistas contam como a prática contribui nos processos de aprendizagem e o brincar na primeira infância.
Edição:
Evelyn Vilhena

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“Quem te ensinou a nadar? Foi o marinheiro. Foi o peixinho do mar”. No embalo da canção “Peixinhos do Mar”, que a Amora, de 5 anos, ao cantar junto de sua mãe, Micheline Farias, demonstra o que a capoeira significa para ela. Desde 2022, Taiane Vitória, que prefere ser chamada de Amora, pratica capoeira, “porque dá para fazer estrelinha”, explica a pequena ao contar sobre seu movimento favorito. 

Embora tenha começado aos 4 anos, Amora já tinha contato com a capoeira. “[Ela] cresceu dentro de um espaço de arte e cultura, e a capoeira é algo que já acontecia dentro desse espaço. Então, desde pequenininha [quando] ela estava engatinhando eu tenho foto dela enquanto o [mestre] Renato fazia as aulas [de capoeira] com as crianças maiores”, conta Micheline Farias, 49, mãe da Amora. 

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A família mora no bairro Jardim Colégio, no distrito do Capão Redondo, na zona Sul de São Paulo, e as aulas da Amora acontecem no Núcleo de Acolhimento e Valorização da Educação (NAVE), no bairro Jardim Maracá, no mesmo distrito, com o mestre Renato Nato.

“Quando eu chego, me sento ali na roda. O professor manda a gente pôr o tatame e aí a gente faz estrelinha, ponte, bananeira, martelo”, compartilha Amora. Entre os movimentos da atividade, Amora conta que deseja aprender a fazer bananeira sem colocar a cabeça no chão, apenas com os braços apoiados e com os pés para cima.

Quando o assunto é instrumento, ela diz que o berimbau é o seu favorito e que aprendeu a tocar nas aulas de capoeira. Entre os amigos que fez nas rodas, ela cita o Lorenzo Miguel e a Camila, e diz que para além de brincar, “a gente precisa fazer tudo o que o professor faz primeiro”. 

Através das vivências na capoeira que envolve o contato com instrumentos, brincadeiras e cantigas, Amora diz que também aprende sobre a história do povo negro durante as atividades. “Ele [o mestre Renato] põe filme pra gente assistir de homem preto e fala como é ser preto”, conta.  

Entre os reflexos da prática, Kamila Gomes, iniciada na Capoeira Angola desde 1999, e integrante do Instituto de Capoeira Angola Alagbedé (ICAA), destaca que o trabalho da capoeira também é uma estratégia política. “Uma maneira da gente formar pessoas empoderadas dentro do processo de luta antirracista para que eles também façam seus desdobramentos e isso começa na primeira infância”.

“A primeira infância é o momento do brincar. A criança chega ao mundo e vai aprender através da brincadeira. A gente consegue brincar muito através da capoeira. Tem ferramentas e tecnologias dentro [desse] universo onde a gente consegue criar brincadeiras e momentos de ludicidade.”

Kamila Gomes, iniciada na Capoeira Angola desde 1999, que também é treinela, habilitada para dar aula de capoeira angola e guardiã do saber tradicional.

O brincar e a ludicidade são os principais elementos que conectam a primeira infância e a capoeira. As possibilidades de desenvolvimento para crianças de até 6 anos são muitas. Desde a construção de valores à consciência corporal, como destaca Kamila Gomes e Ricardo de Souza, que atuam com pesquisa e educação infantil a partir das práticas da capoeira angola.

“Capoeira é filosofia de vida, ela tem essa perspectiva de transformar o ser humano para que descubra o que ele é. A capoeira não ensina de fora para dentro, ela faz com que a pessoa externalize o que ela é”, pontua Kamila, que ressalta, conforme o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), sobre a origem Bantu da prática, vinda do continente Africano, e que trabalha com o pensar, o sentir e o fazer.

Desenvolvimento motor, cognitivo, psicológico, consciência corporal, percepção de espacialidade, de tempo e de musicalidade são aspectos despertados através do brincar, que junto do aprendizado sobre ancestralidade e a história do povo negro também se conecta com os benefícios que a capoeira angola proporciona para crianças. Principalmente na faixa etária até os 6 anos, fase em que é formado 90% das conexões cerebrais dos seres humanos, conforme mostra o levantamento feito pela plataforma Primeira Infância Primeiro, realizada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.

Professora na Universidade Estadual do Tocantins (Unitins), doutoranda e pesquisadora sobre a Capoeira Angola e o Candomblé Congo-Angola na construção de uma educação pluriversal, Kamila menciona os mestres Valmir Damasceno, Moraes, Cobra Mansa, mestra Janja, Fu-Kiau e a Makota Valdina ao citar a capoeira na perspectiva da primeira infância e a relação com a comunidade.

“Dentro da relação comunitária na capoeira, na comunidade de terreiro, tem uma função muito importante que é de adultos cuidarem das crianças. Pensando nessa relação de ancestralidade, solidariedade, circularidade, esses valores civilizatórios afro-brasileiros”, explica a pesquisadora.

Essa é a proposta do projeto Kinsa Kindezi, criado pela Kamila em homenagem a Makota Valdina, onde Kinsa significa cuidar e Kindezi, termo criado pelo filósofo congolês Fu-Kiau, seria a arte de educar. Através da capoeira, a iniciativa ensina sobre os valores africanos, com intuito de construir estratégias para ações antirracistas.

A relação com as crianças e famílias periféricas

Iniciativas independentes fundadas por agentes culturais nos territórios, são formas de aproximar as práticas da capoeira às crianças. Como é o caso do coletivo Quebrando a Cabaça e Espalhando Sementes, criado em 2015, pelo arte-educador Ricardo de Souza, conhecido como Ricardo Pépe, que atua com a capoeira angola voltada para a primeira infância. 

“Quando a gente trabalha a capoeira na primeira infância, a gente coloca que o responsável tem que estar junto [e] traz essa socialização”, menciona o arte-educador. Os projetos do coletivo incentivam a participação familiar como elemento fundamental para o aprendizado da capoeira pelas crianças. 

Embora o arte-educador aponte sobre a importância da participação dos pais nas aulas, ele também reconhece que, nas periferias, por necessidade, as famílias geralmente têm outras prioridades, além de ressaltar que muitas dessas famílias são matriarcais e de mães solo. “Os responsáveis estão muito corridos com seus trabalhos. O nosso trabalho é trazer eles [para] junto”, pontua.

As atividades do Quebrando a Cabaça e Espalhando Sementes acontecem de forma itinerante pelos territórios, mas Ricardo também atua regularmente nos Centros para Crianças e Adolescentes (CCAs) e nos Centros Educacionais Unificados. “São os lugares em que eu trabalho com mais crianças pretas”, comenta o arte-educador, que é morador do bairro Parque Pinheiros, na cidade de Taboão da Serra, em São Paulo.

É em um desses espaços que Ricardo realiza atividades, que o João dos Santos, de 6 anos, pratica capoeira angola desde 2023, no CEU Carrão / Tatuapé – Carolina Maria de Jesus, em São Paulo, junto ao arte-educador. Os pais de João, Juliana Solimeo, 36, e Hamilton Santos, 46, são professores, e colocaram o João na capoeira para que desde pequeno pudesse entender sua identidade. A família mora no bairro Penha de França, no distrito Penha, localizado na zona leste de São Paulo.

“Nós somos um casal interracial, então em que lugar o João vai se encontrar? Ele [tem que] ter claro que a declaração dele ser preto é uma declaração política [e] de resistência. E a capoeira [aproxima] da ancestralidade, da história, da raiz do povo preto escravizado no Brasil, [e isso] acaba fazendo com que ele se conecte com essa raiz negra”, comenta Hamilton, pai de João.

Foi através da Juliana, que admira e pesquisa sobre capoeira, que a família conheceu a vertente. “A capoeira Angola [é] mais lenta, tem a tradição [e] a história, a parte que mais me interessa. Porque infelizmente o Brasil ainda é muito racista e eu encontro na capoeira um espaço que transforma isso”, diz Juliana, mãe de João.

Hamilton conta que atualmente não tem se dedicado à prática, mas desde pequeno convive com a Capoeira Regional por influência do irmão. Por um tempo, já adulto, se envolveu com a capoeira angola. A pesquisadora Kamila afirma que crianças que permanecem na capoeira, geralmente, são aquelas que os cuidadores têm algum vínculo com a questão racial, ou quando tem algum responsável que já conhece a sua importância.

João, de 6 anos, já imagina o futuro a partir das aulas. “Quando eu crescer e tiver do tamanho do meu pai eu vou querer fazer capoeira”, comenta. Ele também conta que brinca muito nas atividades. “O que eu mais presto atenção é pular corda”. 

Além disso, o jogo do reloginho, brincadeira em que o professor gira uma corda no chão e as crianças tentam pular, também é uma das atividades favoritas dele. “[O dia mais legal na capoeira] foi quando o professor fez o reloginho pela primeira vez”, diz João.

Na área da musicalidade, João canta e toca durante as aulas. Seu instrumento favorito é o berimbau, mas ele diz que também gosta do agogô. “Cantando eu não sei tocar, mas comigo só tocando aí eu sei”, diz João, ao contar que deseja aprender a tocar enquanto canta.

Políticas públicas

Segundo Kamila, uma estratégia utilizada para que a capoeira chegue até as crianças das periferias é atuar nas escolas, pois a falta de lugares fixos para a prática é um fator que dificulta a realização das aulas com a primeira infância.

“Eu percebo que quando a gente tem espaços de capoeira estáveis, os pais sentem mais segurança de se relacionar com essa comunidade da capoeira, porque se torna um lugar de referência, [isso] exige um trabalho mais consistente de anos”, destaca Kamila.

Ricardo aponta que o acesso à capoeira para as crianças que vivem nas periferias é uma questão de política pública. Assim como Kamila, que comenta sobre a falta de incentivo e recurso público para os professores da modalidade e a valorização dos mestres.

“[A capoeira nas periferias] é acessível desde que você tenha um mestre que consiga fazer esse trabalho lá dentro, tem mestres que fazem, mas é um trabalho bem difícil trazer a periferia para dentro da capoeira”, comenta o arte-educador.

João encerra a conversa cantando que “na capoeira tem que ter sal, tem que ter tempero”, uma canção do Mestre Liminha. E além de tempero, Kamila e Ricardo pontuam que a capoeira também tem que ter políticas públicas para chegar até as crianças das periferias e garantir o que lhes é de direito, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como o acesso à educação, ao lazer, à cultura, à convivência comunitária, direitos que podem ser alcançados através da capoeira.

Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem A Primeira Infância como Pauta Prioritária, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital, e a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal.

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