Reportagem

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias

Iniciativas têm moedas próprias e serviços de crédito com juros que vão de 0,75 a 1% ao mês
Edição:
Ronaldo Matos

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Enquanto os bancos tradicionais dificultam o acesso ao crédito para pequenos empreendedores e pessoas de baixa renda no Brasil, os bancos comunitários Palmas, localizado na periferia de Fortaleza, e Paulo Freire, localizado na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, estão reduzindo taxas, criando moedas digitais, facilitando acesso ao crédito e fortalecendo empreendedores locais.

Uma das pessoas impactadas por essas instituições financeiras comunitárias é Márcia Rodrigues, 52, moradora do bairro Jangurussu, em Fortaleza, que se tornou empreendedora do ramo de alimentos com o apoio do banco Palmas, instituição financeira comunitária, após conseguir acesso ao crédito necessário para iniciar e expandir o empreendimento “Bolo Bolo”.

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Ela conhece o banco Palmas desde os anos 2000, quando trabalhava como coordenadora em uma creche comunitária, que também era um centro de nutrição. Nessa época, Márcia não recebia nem um salário-mínimo e para complementar a renda ela começou a aprender a cozinhar.

Com o apoio de cursos oferecidos gratuitamente pelo Banco Palmas, ela conseguiu estruturar um novo ramo de atuação profissional, passando a fazer tortas de frango, bolos e salgados para vender na porta de casa.

“O dinheiro para fazer isso era tão pouco. O que entrava a gente tinha que comprar [os ingredientes] novamente, e essas coisas não têm um retorno a curto prazo, porque você tem que investir. Aí eu pensei: ‘vou procurar o banco Palmas para ver se consigo fazer um empréstimo’.” relembra a empreendedora.

Ela conseguiu esse empréstimo para investir no empreendimento. “Eu cheguei a fazer [empréstimo de] até R$ 5.000. Então, [o negócio] deu uma guinada, porque eu pude fazer bastante coisa com esse valor. Eu fui comprando os equipamentos”, aponta a empreendedora.

Emanuel Kayro de Souza Costa, funcionário da Bolo Bolo. (foto: arquivo pessoal)

Márcia menciona que ela solicitava o crédito, empregava o dinheiro arrecadado, e o que ela conseguia de retorno era usado para pagar o empréstimo, o lucro servia para continuar os trabalhos. Com o tempo, ela abriu uma lanchonete e contratou três funcionários, gerando renda e trabalho na região.

Moeda própria e tarifas mais baixas

Segundo Joaquim Melo, criador do Banco Palmas, a instituição financeira comunitária é a primeira no Brasil. A iniciativa tem uma atuação inovadora por lançar o E-dinheiro, primeira moeda digital brasileira criada com o objetivo de promover inclusão econômica de pessoas de baixa renda, como a dona Márcia, criando uma plataforma digital para operar a moeda com juros mais baixos no acesso ao crédito e outros serviços bancários, em relação aos bancos tradicionais.

Ao criar essa estratégia, o banco foi desenvolvendo uma série de processos que vão na contramão da cultura de instituições financeiras tradicionais, que se baseiam em taxar praticamente todos os serviços utilizados pelos consumidores.

“As taxas de juros são menores, a análise do crédito é mais rápida, não é obrigado ter cadastro limpo, tem acompanhamento e tu vai ter estratégia de comercialização [no caso dos empreendedores]. No banco tradicional o crédito serve para ele [o banqueiro] ganhar dinheiro. No banco comunitário o crédito é uma estratégia de desenvolvimento do território, ou seja, a gente empresta dinheiro para o bairro crescer”

Joaquim Melo, fundador do Banco Palmas e criador da E-dinheiro.

O fundador do Banco Palmas explica que embora cada banco comunitário tenha autonomia para decidir uma taxa de juros, há um protocolo que estabelece que seja cobrado “uma taxa de no máximo até 1%, para poder ficar abaixo do que é praticado no mercado”. Ele explica que essa taxa de juros está estabelecida com base na Lei da Usura 22.626, de 7 de abril de 1933.

Enquanto os bancos comunitários adotam a taxa de juros de 1% ao mês para fornecimento de crédito pessoal, os principais bancos comerciais brasileiros têm uma taxa média de 7,94% ao mês, segundo estudo mensal do Procon- SP, divulgado no mês de fevereiro de 2024.

Neste contexto, Márcia, a empreendedora de Fortaleza, ressalta: “não tenho mais conta em banco comercial”. Ela justifica essa mudança de cultura com o exemplo de sua mãe. “Todo mês na conta da minha mãe vem R$ 60 descontado só da taxa de manutenção, mesmo recebendo um benefício pelo INSS. Isso é um absurdo para um trabalhador.”

Ela conta que na plataforma E-dinheiro esse tipo de taxa não existe e menciona as diferenças nas cobranças de taxas entre os diferentes tipos de bancos.

“Eles não me cobram nenhum tostão. A única coisa que eles cobram é R$ 1 pelo pagamento de boleto de até R$1.000, e acima [desse valor] é R$ 2.”,

Márcia Rodrigues é empreendedora e cliente do banco comunitário Palmas.

Atualmente, a dona do “Bolo Bolo” não precisa mais pegar crédito para investir em seu negócio, mas continua utilizando o banco comunitário para fazer as demais operações bancárias. “Eu recebo o E-dinheiro no meu negócio e eu também pago as minhas contas com eles no banco Palmas, compro em outros comércios do bairro também, porque é uma mão lavando a outra”, comenta a empreendedora.

Bancos comunitários combatem desigualdade de acesso ao crédito nas periferias
Márcia em seu empreendimento “Bolo bolo” localizado no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. (foto: arquivo pessoal)

No Brasil, a E-dinheiro é a primeira e por enquanto a única moeda social digital. Dos 152 bancos comunitários que existem no país, 98 são cadastrados na plataforma. Para aderir ao uso dessa moeda é necessário que o banco comunitário esteja localizado no mesmo bairro ou município da pessoa interessada em abrir uma conta, pois o uso da moeda social é destinado ao território.

Segundo o criador do banco Palmas, todo lucro gerado no banco comunitário é investido no próprio território. Essa é outra regra que tem que ser cumprida por todos os bancos dessa rede. Um exemplo desse investimento é o curso de culinária que a Márcia fez, e é desse jeito que o desenvolvimento social ocorre.

Banco Paulo Freire

Na Cidade Tiradentes, distrito da zona leste de São Paulo, o banco Paulo Freire também usa o E-dinheiro, como uma ferramenta para viabilizar a inclusão econômica de moradores da região, proporcionando que mesmo as pessoas endividadas, desempregadas, com o nome listado no serviço de proteção ao crédito (SPC), de baixa renda consigam acessar o crédito, para empreender ou consumir em comércios locais. 

“Elas conseguem pegar o crédito sim. Mesmo aquela família que a gente sabe que tem mais dificuldade de pagar, a gente parcela [a devolução] em mais vezes, e procura ser bem acessível”, conta Maria das Dores Ferreira, 52, que é mais conhecida como Dora no território, e que além de pedagoga, é gerente do banco Paulo Freire. 

Dora enfatiza que diferente das demais instituições financeiras, nos bancos comunitários é possível obter crédito, mesmo quando a pessoa não está com a condição financeira ideal.

De modo geral, os pré-requisitos e os benefícios de acesso ao crédito se igualam tanto para o empreendedor como para o morador que procura o banco comunitário, conforme diz Joaquim. “O acompanhamento, o aconselhamento, o controle de inadimplência, prazo maior para você poder pagar, tanto serve para um como para o outro”, pontua.

No banco Paulo Freire, a avaliação para liberação de crédito é feita pelos associados que estão na gestão do banco. “A gente vê o quanto a pessoa recebe, o quanto que ela gasta e tenta ajudar ela a ter o controle da própria renda. Tem vezes que a pessoa nem precisa pegar um empréstimo, porque ela só não está sabendo usar direito o dinheiro que tem. Em outros momentos, a gente empresta e acompanha”, comenta Dora sobre o processo de empréstimo.

A gerente do banco menciona que a confiança e a relação de proximidade com as pessoas é um ponto crucial para que a concessão e a devolução do crédito ocorram. “Quando a família não consegue pagar no prazo estipulado, a gente vai conversar com ela e estende, por exemplo, se tem que pagar em três meses, ela paga em seis o empréstimo. Assim a pessoa consegue ter o dinheirinho dela e consegue devolver pra gente.”

Os bancos comunitários têm uma renegociação de dívida mais flexível, que leva em consideração as condições sociais e financeiras das pessoas. “No Brasil, no começo de 2023 estava em 45% a inadimplência, ou seja, quase cinco de cada 10 pessoas não conseguiam pagar suas dívidas [no banco comercial]. No banco comunitário, a gente fala de 2%, ou seja, menos de uma pessoa por cada 10.”, aponta Hamilton Rocha, coordenador e articulador da Rede Paulista de Bancos Comunitários.

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