Na segunda entrevista da série trajetória política, Anabela Gonçalves conta sua história dentro dos movimentos sociais do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, e como essa vivência contribuiu para a sua primeira participação em uma eleição municipal, por meio de uma candidatura coletiva.
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Em 2020, a socióloga Anabela Gonçalves, moradora do Jardim Ibirapuera, zona sul de São Paulo Paulo, participou da candidatura coletiva ‘Mais Direito à Cidade’, chapa formada por Nabil Bonduki, Beto Custódio, Evaniza Rodrigues, Gil Marçal, Iracema Araújo e Rayssa Cortez, pessoas que atravessam de forma direta ou indireta a sua atuação política nos territórios periféricos da cidade.
Em busca de ocupar um gabinete na Câmara Municipal de São Paulo, o grupo chegou a atingir mais 16 mil votos, mas não conseguiu se eleger para o legislativo municipal.
Com base no atual momento de crise econômica, social e política no qual os moradores das periferias vivem em seu cotidiano, Anabela enfatiza que essa condição impulsiona a presença e faz uma pressão para que lideranças comunitárias ocupem espaços de decisão dentro da câmara dos deputados e vereadores, como uma forma de garantia de direitos da população.
“Eu nunca pensei em me candidatar, na verdade isso foi uma pressão comunitária”
Anabela Gonçalves
“Eu nunca pensei em me candidatar antes, isso nunca passou pela minha cabeça, na verdade isso foi uma pressão comunitária, uma coisa super nova. Eu recebi o convite do Nabil Bonduki para compor a chapa coletiva como representação feminista e periférica, e a ideia amadurece como uma possibilidade de construir uma ponte entre a política e a casa das pessoas, aí eu aceitei porque a gente vive em um momento político muito complicado e o atual presidente pressionou as lideranças das periferias a se candidatar politicamente na ideia de garantir alguns direitos, dentro da câmera dos vereadores e da câmera dos deputados, tentando de alguma forma ter alguma garantia de direitos”, afirma.
Anabela entende que há duas formas de vivenciar e fazer política em nossas vidas. Nessa linha de compreensão, ela define o voto como uma escolha ideológica e cultural sobre a organização política que queremos para a sociedade.
“Existe duas formas de política para mim: a política que move a sociedade que é como a gente dorme, como a gente come, como a gente lê, o que a gente lê, como a gente transa, como a gente casa, tudo isso é política né, é uma forma política de atuação, como é a nossa vida econômica; e existe quem organiza para que isso funcione, que supostamente seriam os órgãos públicos e a política brasileira. Votar significa escolher uma linha ideológica de como eu quero que essa cultura funcione dentro do país, e eu quero que a cultura que existe hoje permaneça ou se eu quero uma mudança cultural, uma transformação cultural do meu país”, explica.
Para a socióloga, uma das questões que mais a incomoda na política institucional é a pouca participação de mulheres negras, indígenas e periféricas dentro da política institucional, e como isso é uma potência para o vício político. “É assim que funciona a estrutura que está aí, seja ruim, seja boa, ela tá contaminada porque também existe uma baixa participação popular, ter mulheres negras, mulheres indígenas, a população que mais sofre com o desgoverno, com a falta da ação política institucional, é uma tentativa de fazer com que esse sistema funcione de uma forma melhor”.
Ela cita a importância de lutar por uma reforma política que represente as demandas e os interesses do povo. “Hoje temos um poder judiciário corrupto que estremece qualquer estrutura política porque sã eles quem de verdade deveria regulamentar e olhar o quanto isso está sendo feito e realizado conforme a lei ou não”, aponta ela.
Outro problema pontuado por Anabela é o cenário do vício político, da não rotatividade democrática, problemas que poderiam ser solucionados com mais participação popular e a mudança de perspectiva da população. “Cada vez mais o sistema brasileiro é mais viciado, os políticos ficam e se aposentam na política e isso promove um atraso no desenvolvimento brasileiro, no que diz respeito ao sistema cultural, do que a gente quer que transforme, é importante que candidatos mais jovens ou com outras ideias, outros sistemas circulem dentro do sistema administrativo político”, diz.
“Colocar mulheres na política é importante, se isso não acontece o sistema democrático é falho”
Anabela Gonçalves
Anabela faz uma análise da quantidade de mulheres, negras, indígenas e periféricas no Brasil em relação à quantidade que estão dentro da política institucional, e fala sobre a importância de ocupar esse espaço como uma forma de garantia de direitos que atendam toda a população. “Olha eu costumo dizer que no Brasil a maioria das mulheres são indígenas e negras, o número de mulheres brancas é muito reduzido em relação à população negra na cidade, então na verdade quando a gente elege mulheres negras e indígenas a gente consegue com que esses grupos sociais garantam seus direitos dentro da cidade, sendo maioria, porque não somos minoria, sendo maioria a gente consegue direitos para todos e todas”, analisa.
Anabela acredita que a inserção de mulheres negras e indígenas na política é uma maneira de combater o racismo e o machismo na democracia. “Colocar mulheres na legislatura política é importante por que é um direito da mulher ter participação política, e se isso não acontece significa que o sistema democrático é falho, não está funcionando, ele continua sendo racista, machista, preconceituoso, então pra dizer que o Brasil avança no que diz respeito a igualdade racial, igualdade de gênero, o primeiro lugar que tem que dar exemplo são os órgãos políticos e os setores públicos né, enquanto a gente não conseguir olhar para o setor público e ver um maior número de mulheres dentro da política significa que nosso país está muito distante de ser um país que alcançou a igualdade racial ou a de gênero”.
Movimento social orgânico
Atuando como presidenta da organização social Bloco do Beco, a socióloga Anabela Gonçalves, 39, moradora do Jardim Ibirapuera, um dos bairros que formam o distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, acumula um histórico de vida dedicado ao desenvolvimento e execução de projetos e programas sociais que possam melhorar a qualidade de vida e o acesso à cultura dos moradores das periferias.
O Bloco do Beco é uma Associação Cultural que atua desde 2002 no Jardim Ibirapuera. A relação de Anabela com a organização na qual ela é presidenta começou dentro da folia dos blocos de rua, e se prolongou para formações socioculturais.
“Minha relação com o Bloco do Beco começou pelo carnaval né, eu vinha nos blocos de carnaval e participava das ações sociais que eles promoviam aqui no Jardim Ibirapuera, e aí com o tempo nós fomos se aproximando e eu recebi o convite da organização para fazer formações dentro de um projeto que estava iniciando, que era o Bloquinho de Brincar, um espaço de infância dentro da favela da Erundina, depois o bloco me convidou para acompanhar um projeto de formação para jovens do Maracatu, com formação política, cultural, social e musical na área do Maracatu que foi uma forma de instrumentalizar o grupo de Maracatu que já tinha no bloco”, relembra a socióloga, afirmando que no final de 2019 foi convidada para ser presidenta do Bloco do Beco.
A educadora popular faz questão de registrar a importância histórica do Bloco do Beco e sua admiração pela organização que já tem quase 20 anos de atuação na zona sul de São Paulo. “O Bloco do Beco é uma organização que eu admiro muito, porque ela tem sua essência ainda no que a gente chama e reconhece como movimento social orgânico né, que está dentro da comunidade, é feito por quem está dentro da comunidade e é feito pra ela né, e a gente chama isso de movimento social orgânico. Ela nasce dos próprios moradores da comunidade”, avalia.
As raízes culturais de Anabela foram construídas em boa parte pelos vínculos sociais construídos pela sua trajetória de vida nos bairros do Jardim Ibirapuera e Jardim Monte Azul, territórios onde ela cresceu e continua morando até hoje. Antes de se candidatar pela primeira vez para ocupar um espaço de atuação na política institucional, sua trajetória política revela uma série de encontros com o fazer cultural e social nos movimentos sociais orgânicos das periferias.
Desde os 13 anos de idade, Gonçalves afirma que já se envolvia com iniciativas no meio político e cultural. “Com 13 anos eu tinha um grupo de teatro que se chamava Submundo de Teatro e um dos integrantes era o Gil Marçal, ele começou a fazer aula de piano com o professor Ralf Rickli, que tinha ideias de transformação social muito forte e eu comecei a fazer aula de voz com ele, e ele era uma pessoa muito engajada na formação política, social e cultural. A gente fez dessa convivência uma organização social que se chamava ‘Organização Sociocultural Tropis’, tropis é a quilha do barco, a madeira que dá a direção ao barco, com essa ideia de poder orientar e poder dar direção às ações e projetos dos jovens, mas possibilitando para eles a autonomia de navegar”, relembra.
Segundo a socióloga, a Associação Tropis foi formando-a politicamente e a tornou uma educadora, debatedora da política e ativista social. Em 1999, ano no qual ela estava chegando ao final do ensino médio, esta vivência colaborou para atuar profissionalmente em outras organizações.
Além do Bloco do Beco, a socióloga atuou no Instituto Sou da Paz, Projeto Guri, Fundação Julita, Ação Comunitária, Casa de Cultura do Campo Limpo e na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo com a análise de programação cultural.
A identidade como formação política
8mAnabela faz uma análise da sua identidade e expressão étnica, pontuando a miscigenação no Brasil e as dificuldades de se fazer um debate das etnias brasileiras. “eu sou uma mulher afro-índigena, é uma identidade, eu falo negraindigena, eu sou uma mulher de traços indígenas e negros, miscigenada da periferia, que reconhece nas duas etnias referências políticas e sociais que foram fundamentais para o fortalecimento da minha identidade, claro que eu vou falar que lá por 95, isso não era tão claro como bandeira como se tornou em 2000, isso se tornou mais forte principalmente por minha atuação ser muito forte como mulheres feministas”, conta ela.
Outro componente importante para a construção da identidade da socióloga foi a vivência com o feminismo nas periferias. “Pensar a atuação das mulheres e o feminismo na periferia me trouxe esse lugar, mas essa é uma discussão muito profunda, porque discutir o lugar da miscigenação é muito difícil no Brasil, ou você é negro, ou você é indígena, essa composição de uma mulher negra e indígena, é a ideia de que a minha miscigenação, o meu lugar de parda, é um lugar que recorre a duas grandes etnias brasileiras que formaram essa população, esse povo, e que tem raízes culturais muito fortes, de luta e que isso me inspirou para as lutas, para militância, para pro ativismo social”, explica.
Em sua trajetória Anabela sempre teve sua atuação e estudo de campo voltado ao território periférico dentro das organizações e movimentos sociais por onde atuou e se formou. “Eu nasci na periferia, sempre morei na favela, antes da favela, quando era muito pequena morava em cortiço, fui para favela Monte Azul, vivi minha vida lá, desde os meus dois anos de idade, morei a minha vida na beira do córrego, até ele ser canalizado, minha casa continua no mesmo lugar, então minhas referências sociais são as periferias”, destaca.
Ela conta que só saiu do território para estudar no centro da cidade. “Eu saí da periferia e fui para o centro para estudar durante um período da minha vida, para fazer a faculdade de sociologia na FESP, nesse período trabalhava na Secretaria de Cultura do Estado como analista de programação, mas para sustentar também esse processo de estudo. Quando terminei a faculdade, voltei para periferia, morando no Jardim São Luís, onde estão minhas referências, e é minha área de atuação propriamente dita que é a lutar né pela melhoria de condições aqui na periferia.”
A socióloga finaliza trazendo a importância de se lembrar das mulheres que vieram antes dela, de se tomar como referências essas vivências e heranças para sua trajetória política. “Uma das questões étnicas que eu carrego comigo nessa trajetória é que eu valorizo muito a trajetória das da minha mãe, da minha vó, que são lá de Vitória da Conquista, na Bahia, que é de onde vem minha herança materna né, matriarcal. Eu valorizo muito essas questões que estruturam a minha vida né, para pensar ações importantes e a cultura é uma das coisas que sempre foi o fio de costura, foi assim que eu parei no Bloco do Beco né, eu nasci da cultura, eu vim do teatro, era uma adolescente que fazia teatro no Centro da Juventude, me envolvi no movimento social e foi me levando para outras ações, para outros estudos, para aperfeiçoar essa atuação dentro da periferia, sempre com uma ideia de que a cultura é sim um fio provedor de transformação, e que nós atores, pessoas periféricas somos as principais ferramentas de transformação de tudo isso,” conclui.