“Eu fui cria da Uneafro”, diz Débora Dias, co-vereadora formada pela rede de cursinhos

Na terceira entrevista da série trajetória política, a co-vereadora Débora Dias relembra as primeiras ações políticas que ela se envolveu aos 12 anos dentro de um ponto de cultura e destaca a importância da Uneafro Brasil para a formação política da juventude periférica. 

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Cria da Uneafro Brasil, Débora Dias, 22, se elegeu como co-vereadora na cidade de São Paulo, pelo mandato coletivo Quilombo Periférico. Ela é educadora popular no núcleo Ilda Martins, um dos pólos da rede cursinhos que prepara o morador da quebrada para acessar o ensino superior, organizado pela Uneafro, na região da Fazenda da Juta, zona leste de São Paulo.

Além da atuação junto ao movimento de educação popular, a jovem estuda ciências sociais pela UNIFESP, e é integrante do Projeto Agente Popular de Saúde na zona leste da cidade.

A co-vereadora é moradora da Fazenda da Juta, mas nasceu no Parque São Rafael, bairro vizinho na zona leste da cidade, onde ela foi criada por duas mulheres que a incentivaram dentro de seus planos e sonhos de vida.

“Nasci no parque São Rafael, fui criada pela minha mãe e pela minha avó, que foi uma mulher de axé que adotou a minha mãe já adolescente, que acolheu ela junto da minha irmã mais velha, e fui criada por essas duas mulheres dentro de uma casa de axé no parque São Rafael, muito simples né, minha mãe é empregada doméstica, a minha avó também foi empregada doméstica, mas elas sempre me criaram com valores muito acolhedores, com respeito a eu ter a liberdade de sonhar o que eu queria ser, o sonho foi algo permitido que essas duas mulheres me ajudaram a tecer”, conta Débora.

Embora jovem, a educadora popular e co-vereadora valoriza o fato de o sobrenome ‘Dias’, como um legado da força e ancestralidade da sua família. “Eu gosto de ser chamada como Débora Dias, porque Dias é o sobrenome que a minha mãe carregou da minha avó, que eu nem conheci, então isso me faz ter um pouco dela em mim mesmo sem a conhecer, isso é um desafio até que eu quero muito fazer na minha vida, descobrir mais coisas dessa minha avó consangüínea, porque a minha mãe foi adotada, eu gosto de afirmar coisas como eu sou Débora, preta, favelada e sapatão”, ressalta.

Violências Subjetivas

Dias começou a desenvolver seu olhar político quando entrou no seu primeiro emprego, no qual ela atuou como orientadora socioeducativa em um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) no território da Fazenda Da Juta.

“Quando eu entrei naquele espaço para mim foi fundamental compreender as nuances que eu conhecia como moradora da quebrada. Quando você está dentro de um dos pequenos aparelhos da instituição pública que faz atendimento com as crianças e adolescentes, você começa a ter uma visão das ausências mais subjetivas daquele território, porque aquilo que é objetivo eu já tinha visto antes, que é a falta em alguns lugares de saneamento básico, como esgoto a céu aberto, precariedade no atendimento público de diversas instâncias como saúde, educação e assistência social, todas essas coisas a gente consegue ver um pouquinho a olho nu, mas tem as subjetividades, as violências que é instaurada nos corpos e nas corpas da juventude em que eu tava naquela condição de educadora, então eu sempre digo que existe uma Débora que a Débora antes do CCA e a Débora depois”, explica.

Através desta experiência política, definida por ela, Débora afirma que conseguiu enxergar o que não conseguia ver antes. A graduanda de Ciências Sociais foi estudante do cursinho popular da Uneafro, no núcleo Rosa Parks que funciona dentro do CEU São Rafael.

Após entrar na faculdade, ela retorna ao núcleo do cursinho popular como voluntária e depois se torna coordenadora do núcleo que ajuda a fundar no território da Fazenda da Juta, o núcleo Ilda Martins de Souza desde 2019. “Eu fui cria na Uneafro Brasil, fui estudante desse cursinho que funcionava lá no Parque São Rafael”, relembra.

Divida entre o trabalho, estudos e a atuação no projeto de educação popular, Débora destaca a importância de ter um espaço de educação população no meio da quebrada. “Eu trabalhava na assistência social e era voluntária no núcleo de educação popular que eu estudei vivenciando todos os processos desse território, a gente acredita que nesse território também seria importante ter um núcleo lá no meio da quebrada. E é isso, eu entro no cursinho como aluna, de aluna eu ingresso na universidade, eu viro educadora e de educadora me tornei coordenadora, e dessa coordenação a gente começa a visualizar que aquele território que eu trabalhava também necessitava de outro núcleo dentro da quebrada e passo a fazer parte da coordenação geral desse núcleo da Uneafro.”

Débora Dias no ato para o não fechamento do P.A do Hospital Vila Alpina (Foto: Wellington Amorim)

“Quando a gente nasce preta, favelada e querendo entender as condições de pessoa LGBT, a gente começa a perceber o espaço que está a nossa volta”

Débora Dias

Dias faz uma análise do que aconteceu em sua trajetória quando ela começou a perceber que parte da construção social dos moradores das periferias tem como base o racismo, machismo, e é colonial. “Quando a gente nasce preta, favelada e querendo entender as condições de pessoa LGBT, a gente começa a perceber que o espaço que está a nossa volta não faz muito sentido, e aí depois a gente descobre porque ele é um espaço que é construído a partir de uma estrutura racista, lgbtqia+fóbica e machista com um pensamento e uma construção colonial, então você percebe que você não consegue fluir com as ideias que estão a sua volta, e aí a gente percebe as narrativas quando a gente é criança, as nossas corpas sendo diferenciadas no espaço escolar, o que acontece com a juventude negra dentro do espaço escolar, não é que evade, é que ela é expulsa pelo racismo”.

Débora usa muito a expressão ‘Corpas’ porque acredita na importância de desconstruir o imaginário da sociedade sobre questões de gênero e sexualidade que são invisibilidades ou deturpadas, para não se tornarem assuntos comuns no cotidiano dos moradores das periferias e favelas.

A co-vereadora faz uma linha do tempo sobre sua trajetória em movimentos culturais e conta os pontos mais importantes que a fizeram chegar dentro desse mandato coletivo hoje. “Tem um lugar pra mim que é muito específico: eu tinha uma bolsa em uma escola particular onde eu fazia aula de dança, e aí eu chegava da escola e ensinava tudo o que eu aprendia para as minhas amigas, e eu ficava me perguntando por que elas também não podiam fazer dança né?”, questiona ela, afirmando que acho essa foi à primeira motivação que a levou ser voluntária em um ponto de cultura do bairro quanto tinha apenas 12 anos.

Ela acreditava que as meninas do seu bairro também tinham o direito de aprender a dançar balé, assim como ela usufruía de uma bolsa de estudos na escola particular. Essa compreensão acabou aproximando Débora ainda na adolescência da discussão do direito a cultura na quebrada.

“Foi meu primeiro contato mais direto com uma construção política para eu me aproximar de um espaço que tinha essa configuração de luta, com uma política pública da cultura, que são os Pontos de Cultura, então foi esse meu primeiro contato, depois disso aí fui organizar o grêmio da escola e ser presidenta e participar do parlamento jovem”, relembra.

Ela acredita que antes de chegar à Câmara Municipal da maior cidade do país, esse processo foi vivenciado ainda na sua adolescência. “Hoje a gente está aqui nessa casa, mas quando eu tinha 13 ou 14 anos, estive nessa casa como vereadora jovem criando projeto de lei e debatendo, então foi uma experiência muito importante, e é importante dizer que nas duas edições que eu participei eu era a única menina negra, então essas coisas me marcam e demarcam que espaços a minha corpa pode ocupar, e como ela causava estranhamento quando eu estava aqui, então teve essas linhas que me levaram a estar nos espaços políticos”, argumenta.

Já contamos aqui, mas e importante relembrar que Débora tem 22 anos, com isso, a sua trajetória de estudante de escola pública atravessou momentos marcantes dos últimos 10 anos, como por exemplo, a luta dos estudantes por melhorias na rede pública de educação em 2016.

“Todo esse processo durante o ensino médio é importante para dizer que em 2016, quando estavam acontecendo as ocupações nas escolas eu estava no terceiro ano do ensino médio. A minha escola não ocupou, mas eu estive em outras escolas ajudando as escolas vizinhas a ocupar, e isso foi um fervo um gás muito grande também na nossa juventude, enfim, eu tive a felicidade de viver essas experiências nas lutas e depois ingressar nesse movimento que eu tenho muito orgulho de construir que é a Uneafro Brasil, como aluna, coordenadora, construir as coisas na quebrada a partir desse movimento”, diz a co-vereadora.

Política x Política Institucional 

A futura cientista social faz questão de deixar bem claro o seu entendimento sobre o fazer política no seu cotidiano. “Eu acho que não há nada que a gente faça que não seja um ato político, tomar escolhas são processos políticos que estão enraizados na estrutura social que a gente vivencia, toda experiência que a gente vivencia no nosso dia a dia de escolhas são processos políticos, que envolvem tanto o campo da nossa objetividade de lidar no dia a dia, quanto da nossa subjetividade”, define a co-vereadora, dando um exemplo sobre como o afeto pode ser um ato político revolucionário na vida das pessoas.

“Quando eu escolho que vou comprar em uma Fast Fashion ou que eu vou comprar de uma artesã, estou fazendo uma escolha política, ou seja, não tenha nada, nada que não seja uma escolha política”, explica.

Ela explica que a política institucional está ligada às instituições que organizam as normas e regras da sociedade e dá exemplos de como a escola é uma das possibilidades de vivenciar a política institucional no cotidiano do morador da quebrada.

“A escola é um espaço de construção de política institucional, assim como outros espaços que estão no nosso dia dia, só que a gente não faz essa diferenciação e muita das vezes a gente tem uma construção social que tem até muita repulsa com a palavra política, sem entender que tudo que a gente faz é política, no campo da objetividade ou subjetividade”, afirma.

Segundo a co-vereadora, construir outra política institucional é uma forma de entender como surgem as políticas públicas e cita novamente a importância da escola nesse processo. “No âmbito escolar, nas matérias que a gente faz como história, sociologia e filosofia, a gente começa a entender um pouco mais sobre como essas instituições se constituem.”

A partir da importância de fazer escolhas e sentir os impactos que o voto causa no cotidiano das pessoas, Débora avalia os cidadãos brasileiros que não valorizam o direito de votar precisam experimentar uma mudança de imaginário sobre esse poder político e popular.

“Tem um trecho da poesia do Sérgio Vaz que ele fala algo como o voto ser a única vez que a gente é o patrão, é muito importante a gente dizer isso porque a gente constrói no processo político que a gente vivenciou de tensões políticas desde o processo colonial que o povo não é quem decide, o povo ele sempre vai ser massa de manobra, isso é uma construção do imaginário muito superficial, mas na verdade é que se as pessoas soubessem o quanto ela está dentro desse processo, participando efetivamente com o seu voto, ele pode ser decisivo para muitas coisas”, reflete. 

“É uma esperança coletiva pensar outro tipo de fazer política”

Débora Dias

Formada por Elaine Mineiro, Alex Barcelos, Débora Dias, Júlio César, Erick Ovelha e Samara Sosthenes, a mandata coletiva Quilombo Periférico ocupa hoje um gabinete na Câmara Municipal de São Paulo. Nas eleições municipais de 2020, a chapa filiada ao PSOL foi eleita com 22.742 votos. A campanha foi centrada em defender direitos e criar políticas públicas à base da educação popular e da cultura periférica.

“Coordenando cursinho, mobilizando meus companheiros e a juventude ali do território, e isso foi um chamado de tarefa política do movimento, o movimento que indica meu nome para compor essa construção incrível que hoje a gente chama de Quilombo Periférico. Essa construção ela não veio de agora, ela vem de um processo também do companheiro Douglas Belchior e de outros representantes do movimento negro, que sempre estiveram aí na disputa dessa política institucional, e aí para o ano de 2020 pensou-se em uma nova configuração dessa disputa política”, relembra ela, contando sobre o processo de construção e consolidação da candidatura coletiva impulsionado pelo movimento negro e periférico de São Paulo.

A mandada coletiva Quilombo Periférico contou com a participação política da Uneafro Brasil, Bloco do Beco, Agência Solano Trindade, Maloka Socialista, Movimento Cultural das Periferias e Jongo dos Guaianazes.

“O Quilombo Periférico se dispôs a construir um mandato que é coletivo não por ter seis pessoas, mas ele é coletivo porque é o movimento que constrói, para pensar a política institucional, lembrando sempre que o povo preto têm um projeto político para esse país, um projeto político de vida, e eu acho que o Quilombo Periférico tem muito esse lugar de ser um mandato que se coloca à disposição de ser mandado, mas também de continuar sendo movimento, fazer essas trocas na sua integralidades mesmo, de construir e somar juntos, então acho que essa construção coletiva que vai muito além de nós seis, ela representa esses tantos movimentos que ajudaram a construir essa candidatura e que hoje constroem esse mandato”, afirma.

Débora também releva seu sentimento de ser uma co-vereadora periférica, sapatão com apenas 22 anos. “É uma baita responsabilidade para uma pessoa que tem 22 anos, às vezes vem neste lugar do meu deus isso é muito real, isso é muito sério, e isso é muito importante e tem haver com a vida de muitas pessoas, no nosso caso mais de 22 mil pessoas que acreditaram nesse projeto político e votou para que o Quilombo Periférico e os movimentos que a gente representa pudesse construir na cidade, é uma grande responsabilidade mesmo”, reconhece.

Outro sentimento manifestado pelo co-vereadora é a sensação indescritível de ter ganhado dentro da cidade de São Paulo e de poder levar as demandas da sua quebrada para dentro da Câmara Municipal. “Então eu não sei dizer o que possa ser de fato esse sentimento de vitória, mas é um sentimento de esperança, acredito que é muito mais esperança de pensar que estamos caminhando junto com as nossas quebradas, isso é uma vitória coletiva, é uma esperança coletiva de pensar um outro tipo de fazer política.” 

Mandata Coletiva Quilombo Periférico (Foto: Wellington Amorim)

“Eu espero também ser uma corpa e uma construtora de políticas públicas que também faz desse lugar um espaço pra outras mulheres negras, outras meninas e meninos pretinhos das nossas quebradas”

Débora Dias

Uma das missões da co-vereadora é tecer outras possibilidades de futuro para as crianças da quebrada, para isso, ela deposita suas motivações na sua ancestralidade familiar. “Eu também sou uma mulher preta, como diz periférica, filha de uma mãe empregada doméstica e de uma avó que tinha sido empregada doméstica, né, e é muito louco dizer isso porque eu sou a primeira na minha família a ingressar no ensino superior e a única que não teve que trabalhar com serviços de limpeza, então vamos pensar nas gerações da minha avó, minha mãe e o que eu tenho notícia da minha bisavó, todas elas foram mulheres que trabalharam com serviço de limpeza e não conseguiram chegar nem na quarta série”, revela Débora, citando suas motivações pessoais e políticas para “ser uma corpa e uma construtora desse coletivo de políticas públicas que também faz desse lugar pra outras mulheres negras, outras meninas e meninos pretinhos das nossas quebradas.”

A cientista social destaca a importância de eleger pessoas que tenham planos políticos e discussões políticas alinhadas com essas identidades. “Eu acho que tem uma coisa que é muito importante dizer, é que assim: não basta só nós elegermos pessoas pretas, pessoas indígenas, lgbtqia +. Essas pessoas precisam estar alinhadas a um projeto político de vida para essas corpas, porque a gente tem experiências de pessoas pretas, pessoas lgbtqia+, pessoas indígenas que estão dentro do processo da política institucional e não estão alinhadas com as pautas de necessidade que esses grupos precisam”, argumenta ela.

Segundo Débora, o projeto político precisa ser decolonial e anti-racista. “Olhando o processo da classe trabalhadora, das mulheres, mulheres negras especificamente, mulheres indígenas, enfim, das mulheres trans, acho que a gente tem que tomar um pouco de cuidado, as representações são importantíssimas, isso muda muita coisa, muda o corpo, muda as tensões que se criam nesse ambiente da construção da política institucional, mas essas representações elas não podem estar vazias, só utilizando esse nome de ‘preta’ ou ‘de quebrada’ ou etc., ela tem que ser uma representação que de fato tenha preposições de um projeto político de vida para esses grupos”, enfatiza.

Ela finaliza a entrevista destacando as expectativas de ações dentro da Câmera Municipal. “Trabalhar esse momento que a gente está adentrando ao espaço, esse é o momento de conhecer cada nuance dessa casa, conhecer os processos normativos, voltar aos nossos planos e construções políticas que vem de muitos anos né, a gente tem 300 anos aí para poder de algum modo recuperar, a gente não vai fazer tudo de uma vez, mas a gente tem como centralidade olhar para cada especificidade dessa cidade pensando nessas questões de centralização do orçamento, pensando em questões que protejam as nossas comunidades periféricas que incentive a cultura do povo preto, periférico, economia solidária. A gente começa sabendo que tem muita demanda, muito trabalho para ser feito, e aí a gente está na disposição de poder somar em cada uma das lutas que a gente se dispôs a construir dentro dos movimentos que a gente participa e que a gente acompanha”, conclui. 

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