Com uma trajetória de vida marcada por dores e muitas conquistas, ela conta como algumas mulheres apoiaram e marcaram sua juventude e a experiência de ser mãe.
Rita de Cássia, 42, nasceu e passou boa parte da sua infância no Rio Pequeno, distrito da zona oeste de São Paulo, mas ao longo dos anos morou em alguns bairros, como no Jardim das Rosas, no Capão Redondo. Aos 17 anos, com a chegada da primeira filha e do casamento, se mudou para Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, onde mora atualmente. Já foi ajudante de serviços gerais, vendedora, operadora e fiscal de caixa, e hoje é supervisora de atendimento em uma empresa de comercialização de aparelhos eletrônicos.
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Na sua infância morou com sua mãe e seus seis irmãos. Rita se lembra que onde morava, ainda no Rio Pequeno, a princípio era um terreno grande de sua vó, com vários barracos, um deles era o da sua mãe. Cresceu junto com muitos primos e tios que moravam no mesmo quintal, e afirma que foi uma infância boa, e o que mais se lembra são as partes legais.
“Me marcou bastante, foi uma infância bem gostosa, porque eu fui criada com todos os meus primos, tias, todos morando na mesma rua, no mesmo quintal. Então foi o que mais me marcou, as brincadeiras com meus primos”
Ela conta também que em alguns finais de semana sua família se reunia para ouvir música, dançar, tomar uma bebida e enquanto isso aproveitava a rua com seus primos: “A gente criança tinha a liberdade de poder brincar na rua nessa época enquanto eles ficavam se divertindo lá na sala, a gente tava correndo na rua, brincando de pega-pega, de pula-pula, de esconde-esconde. Às vezes a gente entrava lá no meio da sala também para dançar junto com eles”, recorda.
Mesmo guardando para si as partes boas da infância, ela conta que também tem uma parte de dificuldade nesse período, onde sua mãe precisava cuidar de sete filhos praticamente sozinha.
“Eu me lembro que me marcou muito também quando a gente às vezes não tinha um pão para comer de manhã cedo, e aí minha mãe fazia um bolinho de farinha com água e sal para gente poder comer de manhã. Quando às vezes ela ia nas padarias pedir pão amanhecido pra gente poder ter um pão para comer de manhã cedo. Quando ela ia no Ceasa pegar lá o resto da feira pra gente poder ter uma verdura pra poder comer”, compartilha Rita citando os momentos bons e ruins que teve na sua infância, e reforça que guarda para si as partes boas.
Já na adolescência, Rita passou um período morando com a avó, e uma de suas memórias da juventude é da época dos bailes e da galera que andava junto e saía aos finais de semana. Ela conta que trabalhou e estudou muito, e teve uma adolescência boa, onde conseguiu aproveitar muito, mesmo casando e tendo engravidado cedo.
“Eu não podia ir muito [aos bailes], era um pouco proibido, eu só podia ir se meus irmãos mais velhos fossem, senão eu não poderia ir. E aí pra poder sair às vezes, aos domingos para curtir um pouquinho do baile, no salão, a princípio eu mentia para minha vó. Eu dizia que ia para o shopping, mas na verdade eu ia para o salão para poder aproveitar um pouco, porque eu era um pouco presa, nem tanto pela minha vó, mais pelo meu pai que era muito machista, tinha uma mente muito fechada e era muito rígido”, conta Rita.
Ela relembra que nessa época, por volta de 1992, tinham grupos que faziam disputa de dança nos bailes, e se reuniam para treinar os passinhos para o baile. “Tinham aquelas competições de vários grupos. O pessoal comprava a roupa parecida, era meio que uniforme para se destacarem, mostrar que cada um era de um grupo diferente. Era muito gostoso”, lembra Rita.
Assim como muitos jovens, principalmente das periferias da cidade, na sua adolescência, Rita trabalhava, estudava e em parte da sua juventude passou a se dedicar ao atletismo.
Seu primeiro emprego foi aos 11 anos em uma loja de artesanato perto do local onde morava. “A minha mãe ainda morava no Rio Pequeno, e aí ela era sozinha praticamente para criar sete filhos, e aí ela tinha arrumado um emprego para mim do lado de casa, que era um localzinho que tinham alguns hippies que faziam artesanatos, e aí ela arrumou pra mim poder limpar mesmo. Varrer, lavar banheiro e aí aos pouquinhos eles foram me ensinando a fazer alguns artesanatos para ajudar também”, conta.
Depois disso Rita seguiu trabalhando em uma papelaria, passou por uma empresa que fabricava fita cassete e continuou estudando. “Nessa época também eu trabalhava de dia e estudava à noite, e aí teve um período que eu ingressei no atletismo através de uma professora minha de educação física. Isso mais ou menos quando eu tinha uns 12 ou 13 anos. Eu meio que intercalava escola, trabalho e treino”. Ela conta também que com o tempo não conseguia mais trabalhar, pois estava buscando focar no treino, então passou a estudar de manhã e treinar a tarde.
O esporte e a escola como canal de oportunidades e descobertas
Na adolescência, Rita chegou a fazer atletismo na USP, oportunidade que conseguiu através de uma professora, na escola EMEF Brasil-Japão, no Rio Pequeno, que levou os alunos para uma seleção. Rita foi uma das selecionadas nessa peneira e começou a treinar no CEPEUSP – Centro de Práticas Esportivas da USP.
Esse contato com o atletismo aconteceu por meio da professora de educação física, Fátima. “Antes de entrar na USP, essa professora de educação física, que foi muito importante para que eu ingressasse nessa área de atletismo, ela levava a gente para competir, para fazer competições interescolares. E aí ela que corria atrás de tudo, que levava a gente, mas a gente normalmente competia por São Paulo mesmo”, conta Rita, ressaltando a importância do apoio da professora nesse período.
Rita conta da vez que foram competir em Rio Claro, uma competição estadual, e nessa época estava morando com seus avós. Ela conta que os avós davam o básico e essencial e sua mãe sempre buscava levar uma muda de roupa e material escolar quando precisava.
“Fui classificada para participar desse campeonato estadual, ela [professora] que bancou a minha viagem, inclusive, eu nem tinha a roupa adequada para poder competir, porque o correto é ter roupas de esporte, uma calça de moletom no mínimo, um tênis, e eu não tinha. Eu lembro que arrumei a minha mala toda empolgada pra ir competir, mas eu não tinha a roupa adequada, e aí quando chegou lá no local, ela foi e me cedeu algumas roupas dela pra eu poder participar da competição, porque eu não tinha”, lembra Rita.
Durante três anos Rita conseguiu participar de competições e se empenhar no atletismo. Ela parou de treinar aos 16 anos, período em que sentiu bater forte a necessidade de ajudar financeiramente dentro de casa. Como não era federada pelo clube, não recebia na época o salário mínimo que era pago aos federados, recebia um auxílio para o transporte e alimentação, e suporte nos custos das viagens para competições em outras cidades.
Com o fim do patrocínio que a USP recebia de uma empresa na época, alguns atletas foram cortados, e ela estava entre eles.
“Eu tive que optar, ou continuar treinando ou sair do treino e ir trabalhar. E como eu tinha encerrado contrato na USP, eu tinha a opção de ir para outro clube para poder fazer uma peneira e começar treinar, mas aí tinha encerrado o contrato”, ela completa: “A Xerox que era uma empresa grande, que nessa época patrocinava a USP, deixou de patrocinar, e aí eles tiveram que parar o treino de algumas pessoas, cortar o contrato com algumas pessoas e eu estava no meio, mas eles incentivaram a gente a procurar outro clube, Clube Pinheiros, por exemplo, pra gente poder continuar”, conta Rita que após três anos no atletismo, deixou de treinar aos 16 anos, mas continuou estudando e voltou a trabalhar.
Cuidando de si: a criação de novos caminhos e possibilidades
Um ano após parar com o atletismo, Rita se casou e engravidou da primeira filha. Nesse período se mudou de vez para Carapicuíba, onde morou por um tempo com a mãe, Dulcineia Augusta, até construir sua casa no espaço do terreno que recebeu de sua mãe.
Após se casar e mudar de cidade, ficou quatro anos dedicado a cuidar da casa e dos filhos: “Quando eu casei que eu vim para Carapicuíba, fiquei quatro anos sem trabalhar, sem estudar, fiquei quatro anos dedicada realmente à família, aos meus filhos, marido, casa. Até que eu decidi retomar a minha vida, a minha vida de trabalho. E aí depois de quatro anos de casada, minha filha mais velha estava com 4 anos, meu filho com 3 anos e eu voltei a trabalhar”, conta Rita.
Ao voltar a trabalhar, Rita desempenhou diversas atividades, desde auxiliar de serviços gerais a fiscal de caixa. Mas foi principalmente a partir de um emprego no qual ficou durante nove anos, de 2004 a 2013, e das diversas funções e cargos que passou a ter na empresa, que sentiu a necessidade de voltar a estudar e aumentar suas possibilidades de atuação.
“Foi até isso que me incentivou a voltar a estudar, a fazer faculdade, porque a empresa dava oportunidade para crescer, mas ali você tinha que ter pelo menos o ensino médio, a faculdade para poder alcançar novos horizontes”, ela complementa:
“Foi quando eu voltei a estudar com objetivo de crescer dentro da empresa, estar em outros setores, e meu objetivo era ir para área financeira que é algo que eu gosto, até por isso que queria muito fazer ciências contábeis, mas acabei fazendo gestão financeira. Mas foi lá aonde realmente voltou meu interesse em voltar a estudar, pensando em crescer dentro da empresa”, compartilha.
“Voltar a estudar, por exemplo, foi algo que eu fiz por mim e que foi muito importante.”
Ela lembra que em 1997 ia fazer o primeiro colegial, mas acabou trancando. Chegou a iniciar o primeiro colegial, que hoje é o ensino médio, mas depois que casou foi para Carapicuíba e acabou trancando a matrícula. “Eu só fui voltar a estudar, acho que em 2010, por aí, que eu voltei, fiz o EJA, concluí o EJA e em 2013 eu entrei na faculdade. Foi algo que eu fiz por mim realmente, que foi essencial e fundamental, muito importante para mim, mesmo eu não tendo concluído a faculdade, infelizmente”.
Atualmente atuando como supervisora de atendimento, Rita conta que chegou até o último semestre de Gestão Financeira, mas precisou trancar devido a problemas de saúde. “Parei no último semestre, porque eu tive um problema na coluna, onde fiquei impossibilitada de me movimentar, não tinha condições de pegar transporte, de ir até a faculdade. Cheguei até ir na faculdade para conversar com as pessoas lá responsáveis pelo curso para ver se tinha alguma forma de finalizar, porque eu tava no finalzinho, lembro até que era mais ou menos outubro, novembro, já estava terminando o último semestre e eu queria concluir de toda forma”.
Ela acrescenta: “Não queria ter trancado sem concluir, porque eu sabia que ia ser difícil pra mim voltar, mas eles disseram que não tinha jeito realmente, que o ideal seria eu trancar e retornar depois que estivesse com a saúde restabelecida”, coloca Rita, que hoje atua como supervisora de atendimento em uma empresa de comercialização de aparelhos eletrônicos.
A importância da força, apoio e referência de outras mulheres durante sua vida
Ao longo desses anos, Rita teve algumas mulheres como referência e que também te deram apoio em diversos momentos. Desde sua mãe e sua avó, até a sua professora de educação física, e a mãe de uma amiga que a deixava dormir em sua casa quando precisava sair cedo para alguma competição de atletismo.
Sua mãe, Dulcinei Augusta, é uma das suas principais referências de mãe e mulher para ela: “A minha mãe sempre foi muito guerreira. Sozinha naquela época para criar e sustentar sete filhos, não foi fácil. Se hoje não foi fácil, naquela época foi muito menos. Mesmo assim, mesmo diante de tanta dificuldade a gente tinha ali de manhã cedo nem que fosse bolinho com farinha e com água para comer de manhã cedo, a gente tinha um pão amanhecido para comer, a gente tinha pelo menos uma fruta ali que já não estava tão boa para alguns, mas pra gente já fazia nossa felicidade. Minha mãe sempre foi muito guerreira”, compartilha Rita sobre sua mãe que faleceu em 2014.
Ela também traz sua avó como uma figura de referência: “Que também teve bastante filhos e eu passei boa parte da minha infância e da minha juventude também, então são as duas que são referências”.
Além de sua mãe e avó, outra mulher foi importante para Rita na sua juventude, foi sua professora de educação física, Fátima, na época em que estudava na EMEF Brasil-Japão. Foi a partir daí que passou a se dedicar durante um período de sua vida ao atletismo, e participou de competições em outras cidades.
Nessa mesma época do atletismo, também teve uma outra mulher que passou pela sua vida que foi um canal de apoio e acolhimento: a mãe de uma amiga, Dona Leda. Era uma período em que estava treinando no Rio Pequeno e morando em Carapicuíba. Quando precisava viajar para competir e estar às 6 horas da manhã na USP, o trajeto de Carapicuíba para chegar até a universidade era mais complicado.
“Nessa época eu tinha uma amiga chamada Luciana, que era mais ou menos bem de vida e ela tinha uma casa enorme, grandona, e aí a mãe dela deixava eu dormir lá. Eu dormia às vezes lá na sexta-feira ou no sábado, dependendo se a competição era na sexta ou sábado, e aí saía cedinho para competir”, conta Rita.
Ela completa relembrando quando saía cedo para competir e dormia na casa da mãe de uma amiga: “Essa fase eu me lembro muito bem da dona Leda que me acolhia lá quando eu precisava ir competir no final de semana e eu estava morando aqui em Carapicuíba. Ela sempre tinha lá um quartinho reservado para eu dormir, eu levantava de manhã cedo na ponta do pé pra não ter que incomodar ninguém, e aí ela já tinha deixado café da manhã prontinho pra mim. Me acolheu muito, me ajudou muito nessa fase também”, relembra Rita.
O processo de se tornar mãe
Para Rita de Cássia, ser mãe é algo que transforma, um amor indescritível. Ela conta que sempre se via sendo mãe, que era algo que sempre quis muito. Não pensava se seria mãe aos 17, aos 30 ou 40 anos, apenas imaginava que queria ser mãe.
Mas para ela, a parte que não é tão boa nesse processo, independente de ter sido mais jovem ou mais velha, é a maior responsabilidade pelos filhos que fica para a mulher: “A mulher, principalmente quando eu engravidei, quando eu tive filhos, acaba tendo que abdicar de muitas coisas. Na minha época ainda muito mais do que hoje”.
Ela afirma que alguns anos atrás, o compartilhar das responsabilidades de cuidados com os filhos era um pouco diferente: “Hoje ainda os homens são muito mais parceiros, companheiros, eles dividem a responsabilidade dos filhos, da criação, do cuidado, do ter que levantar de madrugada para trocar, de ter que levantar de madrugada para amamentar. Quando eu casei não, então eu tive que abdicar de muita coisa”, aponta Rita.
Ainda assim, a gravidez mesmo sem ter sido planejada, foi algo importante e bom, segundo ela: “Quando eu fui fazer o exame, eu fui no posto de saúde pegar o resultado, a enfermeira veio me falar o resultado, ela veio com uma cara de pesar, com uma cara de tristeza, pensando ‘nossa, uma menina tão jovem, já grávida’. Achando que eu ia cair em desespero, mas na verdade foi o oposto, eu comecei a sorrir, fiquei tão feliz, não pensei em nada, nenhuma consequência de como dizer para minha vó, ou mais do que dizer para minha vó, como dizer para o meu pai, eu só conseguia sorrir e ficar feliz”, conta Rita.
Ela também afirma que não pensou nem nas consequências, mas a descoberta a fez querer ser cada vez mais forte. “Cair e levantar cada vez mais, me dava força para poder sempre quando acontecia alguma coisa ruim, que não dava certo, passar pela dificuldade, porque você tira força de onde você não tem pelos seus filhos. Muda tudo, pelo menos para mim. Você descobre realmente o real sentido da palavra amor, o real sentido da vida, é uma coisa muito boa, apesar de não ser fácil”, reflete.
Ela afirma que sua infância, adolescência e juventude influenciaram nas decisões e escolhas que fez para sua vida e na construção de quem é hoje. “Hoje eu vejo que a pessoa que eu sou é muito resultado de tudo que eu passei na minha vida, sejam as coisas boas ou as coisas ruins. As coisas boas porque eu procurei manter e as coisas ruins que eu tirei como lição para não fazer igual, pra não repetir e ser diferente. O que eu sou hoje é muito resultado de tudo o que eu vivi”, afirma.
Para o futuro Rita já tem uma imagem do que deseja.
“Daqui alguns anos eu me imagino no meu sitiozinho, aposentada, criando minhas galinhas, cuidando da minha horta. Com os meus netinhos indo lá final de semana me perturbar.”
Mas ressalta: “Mas antes disso, eu imagino eu aqui com os meus netinhos, ainda aqui em Carapicuíba, porque vai demorar alguns anos para eu conseguir meu sítio e para me aposentar. Mas antes disso ainda me imagino aqui em casa, com a casa cheia, com meus filhos, meu genro, minha nora, meus netos. Me imagino dessa forma”, finaliza Rita.
Ser mãe sempre foi um desejo de Rita. Mesmo com as grandes mudanças que aconteceram em sua vida com a chegada de seus dois filhos, sua trajetória não se resume no capítulo em que se tornou mãe. Terminou os estudos, ingressou no ensino superior, hoje é supervisora de uma equipe, e ao longo da sua caminhada descobriu e passou por várias rotas, com perdas e grandes conquistas.
Esse perfil faz parte do conteúdo da semana do dia das mães, onde compartilhamos um pouco das histórias das mães dos integrantes da equipe do Desenrola e Não Me Enrola. Além de tantas outras coisas, Rita de Cássia é mãe da Evelyn Vilhena, jornalista e integrante da equipe do Desenrola.