Através da poesia, Midria Pereira busca construir narrativas que dialoguem com sua identidade e reivindica o direito de acessar todos os espaços a que tem direito.
A partir da convicção de que todas as pessoas podem ser agentes transformadores, Midria da Silva Pereira, 23, que é nascida e criada no bairro Recanto Verde do Sol, no distrito de Iguatemi, na zona leste de São Paulo, se considera uma trabalhadora da palavra, tendo essa como sua ferramenta de mudança e transformação social.
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Além de poeta, Midria também é cientista social e atua diretamente com outros jovens. O contato com a literatura aconteceu ainda no ensino fundamental, ao participar do projeto Círculos de Leitura, onde teve a possibilidade de discutir suas leituras de forma coletiva e assim também começou a escrever.
“Meu primeiro poema foi sobre amor, era uma coisa tipo assim: ‘será que um dia, eu vou sonhar e iremos nos encontrar para então dançar, a noite do luar’, era uma coisa assim tudo com ar”, relembra a poeta.
Cidade linda?
Pra quem?
Porque enquanto o cartão postal continuar a ser a Avenida Burguesa
Paulista, o resto da cidade vai continuar sendo sempre o resto
O relegado, o deixado de lado, a borda, a horda, a várzea
A periferia
Inclusive amo a minha quebrada
Salve São Mateus, salve Recanto!Trecho da poesia Paulistana Periférica de Midria Pereira.
Já no ensino médio, a poeta conheceu o Sarau do Vale que acontecia no seu bairro, e foi nesse momento que sua relação com a poesia também mudou. “Foi esse espaço de eu entender que tinha gente viva escrevendo, gente que era parecida comigo, de ouvir falar da Carolina Maria de Jesus, de Cora Coralina”, conta Midria.
Direito à cidade
A atuação da poeta tem ligação direta com o direito à cidade. Ela conta que a partir do momento que ingressou no ensino superior, sua relação com a cidade mudou. O que passou a refletir diretamente nas suas criações. “Quando você começa a fazer esse percurso todo dia e fica tanto tempo no transporte, a cidade muda”, afirma a poeta que realizava um trajeto de quatro horas no período da graduação.
“Até então minha relação com a cidade estava muito circunscrita ao meu bairro, aquela parte da zona leste: São Mateus, Jardim Iguatemi, Cidade Tiradentes. Era ir até o Carrão para fazer um cursinho no sábado, no Aricanduva para ir no shopping, e no Parque do Carmo pelo Sesc e o parque”, conta Midria.
Eu quero que as distâncias dessa cidade sejam encurtadas
e que a mobilidade não restrinja mais nossos caminhos de vida
Mas isso não significa que eu queira chegar mais rápido até o centro
Eu quero um fura-fila pra cultura e pra todas as vias de desenvolvimento
bem ali perto de mim, na quebrada
Na zl, na zs, na zo, na zn
Que toda periferia seja reconhecida em sua pluralidade
Na sua gama de interminável de possibilidadesPoema da Midria Pereira.
Através desse processo de acessar a cidade, Midria aponta que se conectou com diversos movimentos que lutam pelo direito de ir e vir, e passou a se aproximar de movimentos como o Passe Livre São Paulo.
“O direito à cidade é tudo. Embora eu conseguisse ter uma vida ok só estando no meu bairro, quando começo a sair dos meus distritos minhas redes se expandem. Com isso a possibilidade de projeção daquilo que estou fazendo”
conta a poeta que também passa a recitar em slams pela cidade.
“Chego a participar do ZAP! Slam e depois ir recitar na televisão no programa Manos e Minas, e isso acontece por questões de rede que estão em determinados lugares e em outros não”, afirma Midria sobre estar em espaços que não foram projetados para corpos como o seu, mas que através da sua poesia tem se tornado possível.
Possibilidades de existência
Antes de participar do sarau no seu território, as poesias de Midria tinham um tom mais contemplativo sobre a vida. A partir do contato com o sarau, passou a refletir sobre si “tentando construir uma narrativa que me coubesse”, conta.
“Tem uma poesia que eu escrevi que termina: ‘A sociedade querendo ou não, vou usar meu cabelo assim ponto final da questão’. Era uma afirmação, e no sarau as pessoas ouvindo e valorizando aquilo, criava outra realidade, que tudo bem eu ter meu cabelo natural e não preciso passar por nenhum tipo de violência por conta disso”, compartilha.
A poeta ainda descobriu novas versões do racismo e da sua própria existência também no processo de circular pela cidade e no ensino superior. A partir disso, Midria publicou dois livros onde fala sobre ‘a menina que nasceu sem cor’.
“Eu precisava construir alguma coisa que refletisse a minha experiência [que] era essa do não lugar. Quando eu escrevo ‘a menina que nasceu sem cor’, que hoje é meus dois livros publicados, não é só colocar que eu sou negra e ponto, é uma forma de fazer toda reconstrução da minha identidade”, diz Midria.
Com a possibilidade de acessar novos espaços, junto com dois amigos, Nuno e Ygor, a poeta criou o Slam Usperifa. Inicialmente era uma forma de recepcionar os calouros do curso de ciências sociais da USP, mas em pouco tempo passou a reunir poetas de vários territórios, onde muitos entraram pela primeira vez na universidade recitando sobre seus corpos.
A poeta ainda busca unir sua arte com as palavras à sua atuação enquanto cientista social, e assim reafirmar os poetas como profissionais em um campo importante de atuação.
“Fiz duas pesquisas sobre slam, uma primeira estudando a trajetória de profissionalização de poetas negras do slam em São Paulo. É muito importante registrar isso e estou transformando essa pesquisa em um documentário para ter registrado. Porque é isso, a minha avó não vai ler as 100 páginas de relatório, mas se tiver um filme, um vídeo, ela vai conseguir entender”
Midria Pereira.
É nessa associação entre suas diversas formas de atuação que a poeta une esforços para colocar a poesia e o trabalho de poetas em evidência. Sua próxima produção será sobre poetas negras surdas dentro do slam, evidenciando o corpo dentro da poesia.
“O mundo entrega muitos marcadores em relação à raça, gênero, sexualidade, classe, e a gente sempre tem que ir criando nossa história, nosso ponto de vista”, finaliza a poeta.