Entrevista

Pesquisadora aponta ligação entre Kemetic Yoga e práticas ancestrais de cuidado

Merit Amon, instrutora do yoga de base africana, afirma que a prática pode contribuir no autoconhecimento do indivíduo, além de fortalecer métodos ancestrais de cuidado também em comunidade.
Edição:
Evelyn Vilhena

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Através de práticas relacionadas ao autocuidado presentes no cotidiano, Merit Amon, pesquisadora e instrutora da yoga de base africana, busca aproximar a Kemetic Yoga às pessoas pretas e periféricas. “Geralmente uma pessoa na periferia só vai se dar conta de que realmente precisa se cuidar quando adoece. O trabalho que a gente faz é trazer essa atenção para o corpo”, diz a pesquisadora.

A prática de Kemetic Yoga, segundo Merit, envolve o desenvolvimento da autonomia, que pode contribuir na prevenção de doenças, o que aponta ser necessário diante das faltas existentes no campo da saúde pública. 

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O questionamento sobre autocuidado, segundo Merit, é o princípio para o desenvolvimento da autonomia, na perspectiva de que não dá para terceirizar o próprio cuidado e esperar que alguém te salve. “São pequenas oportunidades que tem você no dia de falar assim ‘cinco minutos é meu, é tudo que eu tenho’, mas você valoriza seus cinco minutos [por saber] que é essencial para você, então é um processo de auto investigação, ele vai provocar o autoconhecimento”. Merit menciona que tentar encaixar o yoga na vida de um modo leve, para que não se torne mais uma obrigação, é um bom caminho.

A pesquisadora coloca que a prática do yoga vai além de movimentar o corpo físico. “[O yoga] vai provocar você a olhar para as suas estruturas. Como está a sua vida hoje? E como que você realmente quer? Para projetar, a gente tem que estimular a imaginação, tem que se visualizar [e] o yoga ajuda muito nesse processo”, aponta. 

“A yoga de base africana nas periferias é uma novidade, embora tenhamos na nossa memória ancestral esse caminho mapeado. Porém, de acordo com a forma que as informações são manipuladas, a gente acaba, sem perceber, ficando afastado desse conhecimento por conta da rotina, das necessidades, que ainda são as básicas de sobrevivência.”

Merit Amon, pesquisadora e instrutora de Kemetic Yoga.

A pesquidara pontua que existem dificuldades para que a prática alcance corpos negros e periféricos não apenas no âmbito de enfrentar os preconceito, por se tratar de uma prática de matriz africana que envolve espiritualidade, mas também por outras necessidades que essa população enfrenta. “Como pensar em yoga nas periferias se a gente ainda está no modo de sobrevivência?”, questiona.

“O desafio da nossa periferia é: eu enxergo, vejo que é importante, mas quando vou no mercado o orgânico é R$ 10”, exemplifica a instrutora. “A gente vê no Brasil muitos casos de hipertensão, diabetes, ansiedade”, aponta Merit ao ressaltar que essas não são demandas da yoga, e que apenas a prática não é capaz de mudar esse cenário, mas que pode auxiliar na busca por melhorias.

A instrutora conta que a Kemetic Yoga é uma prática cultural que nasceu no continente Africano, e “Kemet” se relaciona ao estudo do antigo Egito e significa “a terra preta” ou “terra dos pretos”. O método envolve as posturas, que são chamadas de progressão geométrica, respiração, meditação e contato com os fundamentos da espiritualidade africana. “A intenção é que essa prática, [para além] do tapete, possa ser levada de forma coerente para a vida”, Merit pontua. 

Ela também comenta que devido ao processo de escravização, o reconhecimento das próprias potências tem sido um processo de construção para parte da população negra. “[Assim como] reconhecer o poder de onde a gente vem e provocar essa transformação social onde a gente reside”, menciona.

Moradora do bairro Jardim São Bento Novo, que fica no distrito do Capão Redondo, zona Sul de São Paulo, Merit conta que, através do estudo, notou que experiências e práticas que faziam parte do seu cotidiano também se relacionavam com a Kemetic Yoga. “Eu nasci em uma periferia e isso chegou tardiamente para mim. Eu fui me ligar que eu já pratiquei meditação num processo que eu já estava no meio do rolê do estudo do yoga de base Africana”, conta. 

Ela relembra quando, na quarta série, a professora da escola colocava a turma sentada ao sol e passava meditações. “E aquilo foi uma coisa que marcou na minha infância. Depois eu comecei a olhar para o lado da saúde”. 

A pesquisadora também identifica essas conexões no âmbito familiar. “A minha avó é rezadeira, então a prática de cuidado dentro da minha família era muito parecida com as coisas que eu fui ler depois. Para mim a prática do Kemetic Yoga foi um processo de resgate”, afirma. Ela conta que a avó também atendia a comunidade a partir dos seus saberes, e relaciona a prática como um conhecimento de autopreservação de identidade, etnia e cultura.

“A gente cuidava também do corpo energético com os banhos. Minha avó também ajudava a comunidade, porque quando as pessoas tinham seus problemas de saúde ou problemas espirituais iam lá. [Ela] falava ‘Merit, pega aquela erva x’, eu ia lá trazia um punhado”, relembra.

Com formação iniciada pelo mestre Yirser Ra Hotep, criador do Yoga Skills Method of Kemetic Yoga, realizada pela Kasa de Maat, a pesquisadora autodidata em saúde integral, atualmente conduz a yoga de base africana de forma online e presencial em eventos pontuais. Merit indica que é possível encontrar instrutores pela internet e que, por vezes, espaços como Casas de Cultura e unidades do Sesc oferecem atividades relacionadas.

Embranquecimento e comercialização

Merit chama atenção para o contexto de embranquecimento da prática do yoga, que também se dá através da questão de classe, em que pessoas brancas viajam para adquirirem esses saberes na Índia, em mosteiros, e se apropriam disso. “Tem gente que tem esses privilégios que acha que basta vir na comunidade e falar ‘vem fazer yoga de graça’. Nada é de graça nessa vida e acaba utilizando da estética e dos corpos das pessoas que pertencem a esse território”, observa. 

“A maioria das pessoas daqui da região acordam extremamente cedo, voltam tarde, tem uma rotina pesada e quando tem filho então nem se fala. Tudo o que se tenta ter é um mínimo de paz. E aí quando eu falo que o Kemetic Yoga é uma ferramenta muito potente nesse aspecto de bem-estar.”

Merit Amon, pesquisadora e instrutora de Kemetic Yoga.

A prática de yoga indiana é mais conhecida por ter se disseminado pelo Ocidente. Segundo a pesquisadora, essa vertente se difere da Kemetic Yoga pelas posturas, símbolos, fundamentos, aspectos da espiritualidade e origem de ambas.

Outra prática de yoga que tem se popularizado, mas não necessariamente se tornou acessível, é a yoga encontrada nas academias, que para Merit traz um esvaziamento de aspectos existentes no yoga de base africana ou indiana.“Esse processo de embranquecimento da yoga no âmbito comercial é uma estrutura que fatura bilhões, que pauta muita saúde mental, mas é de quem para quem?”, questiona.

“Quando a gente pensa em yoga a imagem que vem à nossa mente são de pessoas brancas praticando”, menciona ao dizer que é importante a reconstrução desse imaginário com o conhecimento e retomada do Kemetic Yoga, que vai atuar tanto no fortalecimento do indivíduo, como da comunidade. “Não existe senso de comunidade sem senso de autocuidado”, finaliza.

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