Através da arte do fanzine, o educador social Roger Beats, aborda diversas temáticas de luta e resistência da população periférica. Além de proporcionar vivências de recorte, montagem e colagem em fanzines para crianças e adolescentes, através desta linguagem artística e comunicativa, eles descobrem novas possibilidades de enxergar e estar no mundo.
A arte e a ligação com o universo do fanzine chegaram à vida de Rogério Souza, conhecido como Roger Beats de forma natural. O artista é morador do Jardim Ângela, região sul da cidade. Hoje, ele vive entre o extremo da zona sul e a Ocupação Cultural Ouvidor 63, espaço comunitário de cultura localizado no centro velho de São Paulo, um dos locais onde ele realiza oficinas de fanzine.
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O fanzine é uma publicação impressa composta por textos autorais ou não, recorte de jornais, revistas, livros e imagens diversas que tem a função de explorar temáticas a partir da imaginação de quem o produz.
Além de fanzineiro, o artista é educador social, e se considera “artivista”. Roger já produzia fanzines há algum tempo, mas não entendia que eram fanzines. Para ele, eram informativos, revistinhas ou manifestos.
Por volta de 2001, o educador social e fanzineiro recorria às lan houses, e dentro do período de uma hora ele transcrevia um texto pesquisado, selecionava imagens que combinasse com o tema e imprimia. Chegando em casa, recortava, diagrama, corrigia pequenas falhas da impressão com caneta, e montava seu manifesto madrugada adentro, pois na época trabalhava e estudava. No dia seguinte, passava na copiadora e tirava cópias do material.
“Nesse período conheci uma galera do New Metal, onde as ideias coincidiram, havia uma necessidade de passar uma mensagem, informar e conscientizar a juventude sobre algo”, conta Roger, relembrando que deste encontro de propósitos surgiram também a produção de eventos culturais nas periferias da zona sul.
“Começamos a fazer eventos de Hardcore e Emocore pela sul e também, encontros de sarau na laje de casa. Durante uns oito anos propagamos a Cultura Underground através de manifestações artísticas e impressas. Eles que me falaram sobre a arte do fanzine, e como eu já fazia uns manifestos recortado e xerocado, isso como “shape” ideal na vida”, compartilha o educador.
Desde pequeno o artista sempre foi envolvido com questões culturais e sociais da região onde mora. Roger conta que possui 13 anos de carteira assinada, mas vivia sem dinheiro e angustiado. Largou o trabalho de ajudante de serviços gerais e auxiliar de serviços diversos, e foi pensar em alternativas de desenvolvimento cultural e educacional para a comunidade. Hoje considera que não trabalha, e sim que vive em missão.
“O fanzine bem no estilo ‘faça você mesmo’, veio como uma importante ferramenta que potencializa a comunicação offline e multiplica essa informação para as pessoas que atuo, as que vivem entre becos e vielas. Os últimos cinco anos, em vez de fazer fanzine sozinho como maioria dos fanzineiros fazem, comecei a proporcionar vivências de recorte, montagem e colagem em zines de uma forma simples e linguagem popular”, conta.
“Para minha surpresa, o fanzine soou como arma de expressão e transformação para muitas crianças, adolescentes e jovens da periferia.”
Os fanzines tem a intenção de informar algo que está para acontecer, ou trazer a realidade de algo que não é transmitido pela mídia tradicional. Muitas das produções do zinester, termo mundialmente conhecido para definir quem produz e propaga a arte do fanzine, têm sido construídas de forma coletiva e colaborativa.
“Isso na verdade, é visto como caso raro, pois a grande maioria do fanzineiros do Brasil atua de forma individual e introspectiva. Os objetivos e propósitos na produção coletiva, têm sido de atuar no inconsciente dos participantes sobre determinado assunto ou tema. Os encontros de Crias de Zines também têm o propósito de dar voz e protagonismo aqueles que são como invisíveis na sociedade”, relata o educador.
Para Roger, o fanzine é uma arte introspectiva e intimista. Os temas são exclusivos de cada ‘zineiro’, reflete seu momento e olhar para o mundo em sua volta. Nas ações culturais e sociais nas quais ele leva os encontros “Fanzinando Idéias”, oficina de fanzines que ele desenvolveu uma metodologia própria, o educador percebe a necessidade local e qual a informação crítica será analisada pelos participantes.
“Geralmente sou convidado por lideranças, instituições e coletivos para atuar através de temas sazonais. Maio: família, abuso e tráfico infantil, julho: Estatuto da Criança e Adolescente, novembro: empoderamento negro, etc. Ou temas urgentes e necessários para determinado público ou período”, explica.
O artista e educador social conta que a cada ano tem que se readaptar ao contexto periférico. “Analisar as mudanças da tendência jovem, suas músicas, gírias, points, e picos que a galera frequenta. O diálogo pelo fanzine acontece por uma linguagem simples e direta ao dia-a-dia de cada público que visitamos, seja do reggae, do funk, do rock, do sarau, do samba ao rap, do futebol, das minas e monas, da luta por moradia, políticas públicas ou aquela praça com índice de drogadição”, conta Roger, que hoje tem em média 60 temas diferentes de fanzine no acervo do Sarau Comics Edition, coletivo cultural no qual o educador desenvolve suas ações de arte-educação.
Fanzine como instrumento de formação cultural e política
O zineiro considera que o fanzine também funciona como ferramenta de fortalecimento de lutas, e oferece possibilidades de mudanças. “Você nunca mais será o mesmo depois que fazer um fanzine. Eu mesmo sou prova viva disso; sem o fanzine na minha vida, talvez nunca tivesse acessado os lugares e as pessoas que conheci. O fanzine por si só, já é uma arma de revolução, tipo a voz das minorias. Juntar a fome com a vontade de comer, ou seja, saber que você pode utilizar revista, recorte, letra, desenho, poesia, rima e juntar tudo num pedaço de papel. Falar o que bem querer da forma que quiser sobre determinado assunto”.
“Ser o próprio escritor e ilustrador de uma publicação independente, isso é transformador!”
Anos atrás, Roger ajudava na organização de eventos de música, teatro e dança, para expor seus fanzines, mas percebia que as pessoas em sua maioria não interagiam.
“Frequentei encontros de Animes, Expo Fanzines, Fanzinadas e Feiras de Publicações, contudo, não me sentia à vontade. Então, fui pras ruas, para o gueto. Para lugares que não existia ‘Faneditor’ e nunca ouviram falar de fanzines. Troca de fanzines, mangueio e escambos. Com o tempo, passei ensinar, porque quem ensina aprende mais. Se quer ganhar dinheiro não vire fanzineiro! Fanzine está mais ligado á valores do que a preços. A circulação acontece de diversas maneiras e te leva para muitos lugares”, compartilha.
Continuar se conectando com outras pessoas através da sua arte no período da pandemia têm sido reconfortante para o artista, que conta como tem sido essa relação nesse momento onde grande parte das conexões tem se dado de forma online.
“Interessante é que boa parte das pessoas que conecta comigo e com as artes em fanzines virtualmente, nunca tiveram em mãos um artefato impresso do Sarau e talvez de outros fanzines. E boa parte das pessoas que levo a vivência de fazer um zine, não tem acesso à internet, ou acessam de vez em outra. Como dialogar com os dois públicos? Nasce assim, uma nova forma de fanzinar, comunicar uma mensagem. Despertar ao público virtual a sensação do que é fanzine”, analisa Roger.
Quase todos os fanzines do educador social estão digitalizados e salvos em mídia externa. Roger pensa em possibilidades para a sua missão de vida com os zines e para facilitar e expandir sua mensagem e arte para mais pessoas: curtas de vídeo, preparar oficinas EAD, abrir Art Labs de fanzines, editora e livraria, além de desenhar uma primeira exposição.
“Tendo certa noção das tendências tecnológicas e das novas formas de comunicar. Sabendo que o YouTube será o novo Facebook da galera, três ou quatro anos atrás comecei a investir num canal para fanzines como forma de expressão, pois os vídeos que ensinam fazer fanzine são de youtubers e não fanzineiros. Com o boom da pandemia, muitos zineiros migraram para as plataformas e isso fez mover as águas que eu já estava nadando. Abriu um leque para novas conexões”.
Primeira Copa América de Fanzine
Em 2020, o artista representou o Brasil na primeira Copa América de Fanzine que aconteceu de forma online durante os meses de junho e julho. “Foi surreal! Confesso que ainda não estou acreditando, sério mesmo. Além das Feiras de Fanzines que são uma verdadeira competição de vendas, nunca participei de nada igual”, conta.
Foi através de uma mensagem da revista El Otro Parche de Bogotá, informando que iriam organizar uma Copa América de Fanzines, que o zineiro recebeu o convite para participar da competição junto com outros artistas da América Latina. Roger convidou outros zineiros brasileiros, e após uma competição entre os artistas do Brasil, passou a disputar com participantes de outros países, que antes também realizaram o mesmo processo de classificação em cada país.
“Em Junho, começou a disputa de fanzine X fanzine de cada país, com voto virtual, quem tivesse maior número ganhava. No andar da carruagem, com picos de ansiedades ora dificuldades, em fazer a galera votar até mesmo aquela que se diz fanzineira, chegamos ao 4° lugar. O mais interessante, que quem patrocinou a competição foi o Consulado do Brasil em Bucaramanga na Colômbia. Recebi mensagens do Cônsul dizendo que todos do Consulado estavam votando e torcendo para o Brasil. Achei isso formidável.”
A possibilidade de uma segunda edição do torneio á algo que está no radar de Roger. “Tivemos uma Live com os quatro finalistas da Copa, junto com a correspondente da Organização e também do Consulado. A Intenção é preparar a 2° Copa América del Fanzines e pensar num Centro Latino-Americano do Fanzine, algo assim do tipo. Ah! O prêmio final será a cópias de todos os Fanzines participantes da Copa; Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Argentina, Venezuela, entre outros, que, para um bom fanzineiro é maravilhoso demais”.
Para participar da competição, o zineiro escolheu o fanzine “Voz que Clama No deserto”, que já passou de mil impressões e está em português brasileiro e espanhol. Ao longo da competição, ele descobriu que seria o mesmo fanzine até o final, e não um por competição. “Senão, teria enviado logo, o top das galáxias! Entretanto este fanzine de bolso “Voz que Clama No deserto” tem um quê de profético”.
O zineiro conta da importância do zine escolhido para a Copa: “Ele foi criado depois de uma grande ruptura entre os integrantes do Sarau Comics. Este foi o primeiro Zine que fiz quando parti em carreira solo. Quando entrei na Acepusp – Associação Cultural de Educadores e Pesquisadores da Universidade de São Paulo -, quando entendi o que é Direita e Esquerda. Ele é a ponte da minha travessia do fanzine como forma de expressão para o fanzine de arte como forma de protesto”, compartilha.
Entre as oficinas de recorte, montagem e colagem que realiza por diversos cantos da cidade, até as novas descobertas que a arte do fanzine trouxe para Roger, a participação na Copa América foi mais uma oportunidade de troca, crescimento e aprendizado.
“Trouxe aquela alegria de mostrar a garra do Brasil, aquela determinação que todo brasileiro tem em competir. O que faltou mesmo foi envolvimento da galera. De acreditar e dá um voto de valor. Sou muito grato por toda esta vivência, mais uma que o fanzine pregou em mim”, finaliza o artista que segue tendo a arte como sua missão.