“Sou uma mulher de fé, uma mulher preta, periférica, filha de uma mulher de oração e de um pai pregador pentecostal, periférico. Venho de uma família que sempre teve a fé como elemento fundante. Na minha casa, todo mundo sempre orou muito, sempre houve cultos em família. A fé sempre esteve na nossa mesa”, é assim que Lídia Maria de Lima, mulher evangélica, pastora, teóloga e pesquisadora define sua caminhada religiosa.
Lídia Maria, 44, nasceu em Cotia — município localizado na região sudoeste da região metropolitana de São Paulo —, atualmente vive em Itaquaquecetuba e passou a maior parte de sua infância frequentando a Igreja Pentecostal Brasil Para Cristo, indo aos cultos até cerca dos seus 10 anos de idade e dividindo seu tempo entre a Assembleia de Deus e Brasil Para Cristo. Aos 11, passou a frequentar as reuniões da Igreja Metodista, onde participava dos cultos tradicionais, mas também de encontros e outras reuniões que misturavam religiosidade e atividades sociais.
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“Na Igreja Metodista, havia uma outra proposta muito mais voltada para o evangelho social, e partir daí eu me encanto com essa igreja e fico por lá, onde aprendo nesta comunidade a exercer a minha fé, mas também com os olhos voltados para as questões sociais e para a militância junto ao povo preto que sempre foi importante para mim”, compartilha.

A partir daí, ela também conheceu a perspectiva ecumenista — movimento que busca aproximar as diferentes igrejas e doutrinas cristãs — e passou a circular entre outros movimentos e grupos religiosos. Já o contato mais profundo com religiões de matriz africana aconteceu durante o mestrado, ao discutir o trânsito religioso de protestantes ligados a essas tradições.
Crescimento da Igreja e ausência do Estado
Essa diversidade de cosmovisões, para ela, é onde mora a beleza do sagrado. “A religião muitas vezes acaba por ocupar espaços onde o Estado não responde. A gente costuma procurar pela igreja, pelos templos, etc., para suprir essas lacunas deixadas pelo Estado”, diz Lídia ao mencionar a crescente expansão de comunidades, especialmente, evangélicas nas periferias.
Os dados preliminares do Censo 2022 indicam que os evangélicos no Brasil têm forte presença em populações historicamente associadas às periferias e às camadas mais vulneráveis da sociedade.
A maioria dos evangélicos se declara parda (49,1%) ou preta (12,0%), correspondendo a mais de 61% do total do grupo, enquanto entre os brancos o percentual é menor (23,5%). Em termos de nível de instrução, 14,4% possuem ensino superior completo, predominando aqueles com ensino médio completo ou superior incompleto (35,2%).
Questionar como pensar evangelho sem olhar a dimensão social é algo que Lídia costuma ver como impossível de desassociar. “O verdadeiro evangelho, é pautado pelo anúncio das boas-novas, da comunhão e da partilha”, fala.
“Durante um tempo se fez a crítica de ‘pequenas igrejas, grandes negócios’. Hoje vejo que essa vertente ainda existe, junto ao crescimento do fundamentalismo e da disputa por poder e território. Mas, por outro lado, há igrejas que desenvolvem trabalhos bonitos e importantes nas periferias, cuidando das necessidades do povo”, coloca Lídia.
“Buscar no sobrenatural respostas para questões que a ciência, a arte ou a vida não conseguem resolver é algo profundamente humano. Ao mesmo tempo, a sociedade e os atores políticos aprenderam a usar a fé como instrumento de poder e garantia de votos. ”
Lídia MAria de lima, pastora, teóloga e pesquisadora.
Segundo ela, para as pessoas negras e periféricas, o direito à fé também passa por reconhecer sua história, identidade e memória. “Sempre que pensamos na população negra, no movimento negro no Brasil, e na participação do povo evangélico, dizem que a população negra nega suas origens [quando não opta por religiões de matriz africana], pois o cristianismo esteve ligado à escravidão. É verdade que a religião protestante alinhou-se, historicamente, ao processo escravagista, mas também houve abolicionistas .”
Historicamente, a posição das igrejas evangélicas (protestantes missionárias e de imigração) no Brasil foi marcada pela omissão e, muitas vezes, pela conivência com a escravidão. Diferente da Igreja Católica, que teve um papel central na justificação e gestão do sistema escravagista durante o período colonial, as denominações evangélicas chegaram mais tarde, quando o sistema já estava estabelecido no país, mas, em geral, não se opuseram ativamente a essa estrutura.
Luiz Gama; André Rebouças; José do Patrocínio; e Francisco Glicério são alguns exemplos de expoentes figuras negras abolicionistas no Brasil. Embora não haja registros consistentes de que fossem protestantes, dialogaram com ideias e redes influenciadas pelo protestantismo, que buscava romper com a estrutura racista vigente.
“É legítimo que a população negra escolha sua religião, ressignificando Cristo, como Cristo preto, nazareno, periférico, revolucionário, em processo de libertação e firmamento. Essa liberdade religiosa é necessária e possível, e que a gente possa dialogar, respeitando nossa negritude, que nos une na busca por liberdade, dignidade e justiça, independentemente se eu bato tambor ou leio a Bíblia”, diz.
Lídia conta que, em determinados momentos, enquanto cientista da religião, já se viu desiludida com a vida, com a política e sentiu na pele a misoginia e o racismo. “Desisto então de ser pastora institucionalizada, entrego minhas credenciais como um sinal de desesperança diante de uma igreja misógina e racista. Mas recupero minha fé e esperança quando encontro, na caminhada, mulheres que seguem me dizendo: ‘estou orando por você’.”
Ao longo destes anos como pastora, ela promoveu rodas de conversa com outras mulheres para dialogar sobre violência doméstica nos espaços religiosos. Além disso, acompanhou jovens, especialmente LGBTs, para refletir sobre sexualidade e identidade dentro das igrejas.
As experiências de Lídia reforçaram a importância de caminhar coletivamente. Ela entende Cristo e o Espírito Santo como vento, feminino, transformador e restaurador.
“Minha fé está na rotina, no encontro com outras mulheres, com a juventude, na educação dos meus filhos, de outras crianças que se aproximam de mim, e também naquela oração que faço para me manter de pé enquanto mãe solo de duas crianças num processo de divórcio.”
Lídia MARIA DE Lima, pastora, teóloga e pesquisadora.
Espiritualidade por meio do Candomblé
Assim como Lídia, Danny Farias, 41, moradora de Diadema, município do ABC Paulista, encontrou pelo caminho mulheres de força e sabedoria que a inspiraram naturalmente a seguir seu caminho espiritual. Uma delas, sua avó, Dona Ditosa, que deixou inúmeros ensinamentos carregados de bênçãos, como conta.
“A fé me acompanha desde muito nova. Minha avó foi quem me ensinou o que era ter fé. Eu rezava o rosário, o terço, sempre ao lado dela. Mas, naquela época, ainda não entendia o que era de fato espiritualidade. Foi só quando entrei para o Candomblé que compreendi essa diferença: ser uma pessoa espiritualizada é muito mais do que ser apenas uma pessoa religiosa.”
Danny Farias, é candomblecista, praticante do culto tradicional Yorùbá e moradora de Diadema (ABCD), na região metropolitana de São Paulo
Danny faz parte de um grupo religioso que também cresceu no Brasil nos últimos anos. Umbanda, Candomblé e outras religiões afro-brasileiras também tiveram um aumento no número de adeptos, de acordo com dados do Censo 2022. Embora esse número parta de uma base pequena, a proporção saltou de 0,3% em 2010 para 1,0% em 2022.
Danny cresceu em um lar catolico e diz que a espiritualidade é ser boa com as pessoas. “É entender que a vida espiritual exige entrega, renúncia, e, mesmo assim, permanecer firme no propósito de crescer e evoluir espiritualmente”, complementa.
Ela diz que, quando a fé não se traduz em ações práticas, é como uma fé vazia. “Nessa minha caminhada, aprendi que fé sem ação não existe”. Para ela, é preciso rezar, mas também agir e mudar.
“Em Ifá, acreditamos que a mudança de comportamento é o caminho para uma vida melhor, para um caráter mais forte, para evolução espiritual. Se eu tenho fé, mas continuo sendo uma pessoa ruim, minha vida não muda e eu também não evoluo espiritualmente”, compartilha.
Um olhar para a vida que contemple todas as pessoas, também faz parte das lições que adquiriu. “O Candomblé chegou no meu caminho depois de alguns acontecimentos mediúnicos que começaram a tirar minha paz. Foi ali que senti o chamado. Meu pai carnal é também meu sacerdote, e foi com ele que eu fui conversar quando percebi que minha vida precisava mudar; eu estava desempregada havia mais de dois anos, me sentindo perdida”, conta.
Sua trajetória na religião começou em março de 2008, quando fez seu primeiro ‘Ebori’, um ritual dedicado à iniciação religiosa no Candomblé. “O processo de iniciação foi incrivelmente lindo e cheio de paz. É um momento de muita organização, como se fosse um casamento mesmo: preparei meu enxoval, afinal, eu seria uma Iyawo, a ‘noiva do segredo’”, divide sobre o ritual em que raspa a cabeça e fica recolhida no quarto de santo por 11 dias, em contato apenas com sua mãe e família espiritual.
Ela costuma dizer que nasceu de novo em 27 de maio de 2010. Foi nesse dia que Oxum e Oxóssi, seus Orixás de cabeça, apontaram o caminho e ela decidiu escutar.
A iniciação foi como um divisor de águas em sua vida. Ela conta que aprendeu a dançar, cantar e a rezar para seus Orixás, sua relação com o pai ganhou novos laços, os vínculos com amigos e familiares se tornaram mais leves, e sua reatividade deu espaço para a escuta e a calma.
O convívio em comunidade, ao longo de 15 anos, gerou um amadurecimento e um novo jeito de se relacionar com as diferenças. O respeito às opiniões alheias, segundo ela, passou a guiar seu cotidiano, mas a mudança mais profunda foi outra: sua vontade de viver voltou.
“Minha fé, espiritualidade e vivência dentro do Candomblé me ensinaram a ser melhor comigo e com o mundo. E isso é o que eu levo pra minha vida, todos os dias”, diz.
Mais tarde, a chegada da maternidade trouxe novos contornos à sua vida. “Quando engravidei do Arthur e me vi sendo mãe solo, confesso que não era o que eu tinha sonhado pra mim, mas eu sabia, no fundo, que meu Orixá me sustentaria”.
Danny conta que seu nome, a partir da iniciação, é Osunfunke, que significa ‘Oxum trouxe essa criança pra eu cuidar’. “Em 2023, quando engravidei, tive certeza de que Oxum estava me olhando, me protegendo e me dando essa missão. O Arthur, assim como eu, também é filho de Oxum, e todos os dias eu sinto esse afeto, essa proteção sobre nós dois”, relata emocionada.
Nesse caminho, para ela, educar o filho consciente das suas raízes é um compromisso inegociável. “É de extrema importância que o Arthur cresça com essa conexão com o sagrado de forma lúdica, leve, espontânea. Quero que ele conheça, viva e, quando tiver discernimento, escolha o caminho dele, assim como eu fiz um dia”, conta.
Ela reafirma que caminhos diferentes podem conduzir a um mesmo horizonte espiritual. “Cada território, cada comunidade, cada família tem sua forma de se relacionar com o sagrado e acredito que todas essas formas são válidas quando partem do amor, do respeito e da busca por evolução”, coloca.
“Acredito que o mais importante é que cada pessoa tenha liberdade de se conectar com o sagrado do jeito que faz sentido pra ela, sem medo, sem imposição. E que isso aconteça, principalmente, nos territórios periféricos, onde muitas vezes a fé é o que sustenta e fortalece as pessoas em meio a tantas dificuldades”.
Danny Farias, é candomblecista, praticante do culto tradicional Yorùbá e moradora de Diadema (ABCD), na região metropolitana de São Paulo
Natureza como guia espiritual
Eluane Santos, entendeu desde cedo que a natureza era sua mestra e seu templo. Longe dos padrões religiosos, ela diz que prefere seguir seu próprio caminho, mas respeita todas as formas de crença e as diferentes maneiras de ser e existir no mundo.
“Percebi cedo, aos 13 anos, que não cabia nos moldes das religiões que me cercavam. Entendi que era muito mais sobre minha aparência externa, do que do interno. Foi um processo árduo, mas a natureza sempre me acolheu”, diz.
“Quando toco a mão na terra ou abraço uma árvore, as pontas dos meus dedos começam a vibrar, e percebo que a espiritualidade acontece na natureza, mas não só. Acontece porque eu sou terra, água, fogo, silêncio; eu sou a natureza, faço parte dessa teia incrível. Essa é a forma de relação: ser, porque somos, somos natureza”, ressalta.
“Nasci em território indígena – Maxacalis, em Minas Gerais -, e meu primeiro altar em contato com o templo, foi dentro da Mata Atlântica. Perdi meu pai muito cedo, aos cinco anos de idade, e subia nas árvores para falar com ele”
Eluane é moradora de Grajaú, na zona sul de são paulo, educadora ambiental e se considera universalista
Universalista é quem adota uma visão ampla do mundo e defende a preservação da relação entre todos os seres humanos, acima de diferenças culturais, religiosas ou geográficas. Para ela, que ama explorar o mundo através de suas viagens, conhecer novos roteiros é como um rito que alimenta seu espírito. “Em toda viagem, com muita humildade, me conecto muito com a fauna e a flora do local, com os saberes, com os sabores, com as pessoas”, detalha.
Em um mundo cercado de intolerância, a mineira, moradora do Grajaú, distrito da zona sul de São Paulo, acredita que os fanatismos impedem a conexão com a espiritualidade.
“Eu vejo cada caminho como um rio que percorre o mesmo ar. O conflito nasce quando um rio acha que tem mais importância do que outro. Mas um olhar universalista compreende que cada um tem seu valor e carrega sua sabedoria”, afirma.
“Quando escuto, acolho. Quando respeito, abraço a diversidade. As árvores são diferentes entre si, e é essa diversidade que as mantém vivas. Assim também deveria ser entre nós, como um organismo vivo [como seres humanos]”, frisa.
Eluane conta que a presença do que se refere como ‘forças maiores’ se manifestam em sua vida a cada amanhecer. Seja no silêncio antes do nascer do sol, na passagem de uma borboleta ou no aroma do ambiente ou a cada risada ou gargalhada com uma pessoa querida.
“Acredito que o caminho é reconhecer que a humanidade floresce quando aprendemos a valorizar a natureza, a nos relacionar melhor com o ambiente, seja interno ou externo, e a compreender que vivemos o mesmo sopro, pertencemos à mesma vida e nossa caminhada é coletiva”, finaliza.













