Ao nos receber em sua casa, logo de início, Chirley Pankará faz questão de apresentar o ambiente em que estamos chegando, a ‘Sala da Memória’, espaço que abriga peças e obras que dialogam sobre território e memória. “[Aqui] tem peças de barro do meu núcleo familiar, peças de vários povos indígenas, e aí a gente vai se conectando com essas ancestralidades também. Isso me mantém no processo de territorialidade, que é a conexão que eu faço na cidade em situação de contexto urbano [com] o território indígena”, explica.
Chirley Pankará, 50, é pedagoga, doutoranda em antropologia, e conta que sua família é do território reconhecido como Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, em Pernambuco. “Nós fomos trabalhar em fazendas [na] zona rural [do município] de Floresta, que não é a mesma [região] das aldeias Pankará”. Ela menciona que essa migração foi a alternativa encontrada pela família para conseguir trabalho e subsistência.
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Em 1998, Chirley migrou para São Paulo pelo mesmo motivo, “vim para trabalhar como empregada doméstica”, conta. Atualmente, ela mora no bairro Jardim São Francisco, localizado no distrito de São Rafael, na zona leste de São Paulo.
“Muitos indígenas que vivem em situação de contexto urbano, vivem nas periferias. Quando eu falo periferia também estou falando de povos indígenas. É que há um pensamento distorcido de achar que o indígena está só dentro da aldeia.”
Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.
Ela identifica sua ligação com a militância e a liderança desde a infância, quando sua avó Maria Divina, conhecida como Mãe Bó, que era parteira e benzedeira, pedia ajuda na busca de ervas, e Chirley prontamente ia procurar na mata para auxiliar.
Chirley traz que sua atuação nos movimentos sociais antecede sua participação na política partidária. “Eu era ligada à política pública da luta dos movimentos sociais”, comenta. Ela conta que sua trajetória política é permeada pela escuta, oralidade e pela construção de redes.
A partir dessa perspectiva de construção conjunta, Chirley fala sobre um tipo de liderança, que se estabelece por um querer coletivo. Segundo ela, é por esse direcionamento que está como pré-candidata a vereadora de São Paulo. “Algumas pessoas, que não estão dentro do contexto indígena de coletividade, de escutas, [não entendem] quando eu digo que foram os povos indígenas que escolheram”, compartilha.
“Em São Paulo capital, por exemplo, nós temos 19.777 indígenas, apontou o IBGE. Com 19.777 [votos] não elege uma vereadora. E estamos contando que nesses 19.777 temos as crianças”, expõe Chirley ao explicar que por causa dessa quantidade de votos não seria uma boa estratégia lançar duas candidaturas ao mesmo tempo, e que é desse modo que os indígenas geralmente se organizam politicamente, sem competir entre si.
Trajetória
Em 2007, Chirley começou a cursar pedagogia como bolsista por renda. No ano seguinte, após ingressar na faculdade, passou a se conectar com outras atuações. “Eu me encontrei com os parentes indígenas [e] comecei a participar de movimentos indígenas”, diz. E de lá para cá não parou mais. “Em 2009, fui para a minha primeira viagem fora de São Paulo no sentido da militância, representando a questão indígena”, conta.
Desde então Chirley já integrou o Conselho Nacional de Mulheres Indígenas representando a educação, participou da 2° Conferência Nacional da Igualdade Racial, foi para a Rio+20, para a Conferência Global de Mulheres Indígenas em 2013, realizada no Peru, participa do ‘Acampamento Terra Livre’, entre outras movimentações.
Através dessas articulações, Chirley conheceu Edson Kayapó, que é escritor, ativista indígena e historiador. Ela a indicou para o Observatório da Educação Escolar Indígena, na PUC, onde iniciou como estudante e após o primeiro ano passou a atuar como professora, de 2009 a 2012, período que também começou o mestrado.
Em 2010, também a convite de Edson Kayapó, foi Coordenadora Geral das escolas de primeira infância do Povo Guarani, em três Centros de Educação e Cultura Indígena (CECIs), na Tenonde Porã e Krukutu, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, e no CECI Jaraguá, no Pico do Jaraguá.
“Eu fui aprovada [como] a primeira mulher indígena a entrar no doutorado em antropologia social na USP, como cotas”, aponta Chirley, que reivindica ter professores e autores indígenas como referências no curso.
Identitarismo
Chirley conta que foi apenas em 2018, que filiou-se a um partido político. Através do Emerson Guarani Nhandeva, que é professor e pesquisador, ela foi chamada para conhecer e participar da campanha da Bancada Ativista. A Pankará comenta que na ocasião ainda não conhecia como funcionavam os mandatos coletivos.
Na última reunião para definir as co-candidatas do mandato, a pedagoga foi para entender mais sobre, e ao final do encontro passou a compor a Bancada Ativista, que ganhou as eleições de 2018. “Eu fui para a reunião e senti que dava pra dialogar, porque eu vi pessoas que se aproximavam da minha pessoa. Eu pensava que eu ia ver só aquele povo metido, nas gravatas, no salto”, comenta.
Sobre as dificuldades de atuar na política enquanto mulher indígena, nordestina e periférica, Chirley diz que há várias formas de preconceito. “Você tem que ser 10.000 vezes mais forte, pra poder se manter de pé, fazer políticas públicas e combater isso”, coloca.
“Eu [já] vi muitas pessoas falarem assim: ‘ela traz uma pauta identitária’. Como se quisesse me xingar, sabe?”
Chirley Pankará, pedagoga e doutoranda em antropologia.
A pedagoga afirma que as pautas que contemplam os povos indígenas também podem ser necessárias para a cidade. “Quando estou falando de privatização da água, da Sabesp, estou falando de um braço que se conecta com meio ambiente. A especulação imobiliária, as ecovias verdes, tantas coisas que vão servir para a cidade e para a aldeia”, exemplifica.
Chirley também aponta que a visão estereotipada e de tutelagem sobre os indígenas ainda existe, tanto na sociedade como nos espaços políticos, e que esse imaginário precisa ser descolonizado.
Em 2023, a Pankará atuou como Coordenadora Geral de Promoção à Políticas Culturais, pelo Ministério dos Povos Indígenas, e se desvinculou para concorrer às eleições de 2024. “Estou a serviço do movimento indígena, uma liderança é a serviço da coletividade. A gente tem que honrar a memória dos nossos ancestrais”, finaliza.