Entrevista

“Ele desenhava muito bem”, diz tio de Gilberto, morador morto pela polícia na Favela da Felicidade

Edição:
Ronaldo Matos

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Após a mídia tradicional classificar o morador Gilberto Amâncio como suspeito, o Desenrola entrevistou amigos e parentes para contar a trajetória de vida do tatuador e pai de família que morreu com 30 anos no mesmo dia do aniversário do seu filho. 

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Gilberto Amâncio (foto arquivo pessoal)

Na última sexta-feira (14), Gilberto Amâncio, morador da Favela da Felicidade, localizada no distrito do Jardim São Luís, zona sul de São Paulo, foi alvejado com seis tiros durante uma operação policial que aconteceu a poucos metros de distância da sua casa.

O morador estava passando por um beco quando foi surpreendido com seis disparos, realizados durante uma operação da polícia civil. A morte de Gilberto gerou grande comoção entres os moradores do bairro que conheciam a sua trajetória de vida e sabiam que ele nada devia para a justiça criminal.

Após o fato ocorrido, uma série de manifestações aconteceram nas imediações da Favela da Felicidade, território conhecido por abrigar uma série de movimentos sociais e culturais que atuam pelo combate às desigualdades sociais que afetam a população local.

Ao tomar conhecimento sobre a forma como a mídia estava noticiando o fato, rotulando Gilberto, como um suspeito, e por isso, essa seria uma justificativa da política ter disparado seis vezes em sua direção, o Desenrola apurou mais informações sobre a sua trajetória de vida, conversando com amigos e parentes do morador que morava na Favela da Felicidades há 30 anos.

Em respeito ao sofrimento da família, nossa equipe de reportagem preferiu não tentar contato com o pai, mãe e a esposa de Gilberto Amâncio. Fruto da nossa articulação investigativa e jornalística nas periferias, conseguimos conversar com Edmar Miranda Amâncio, 47, ajudante de cozinha e tio do morador morto durante a operação da polícia civil na Favela da Felicidade.

Ele foi o parente responsável por reconhecer o corpo do sobrinho e revela a quanto foi sombria e inesperada essa experiência. “Eu estava em casa almoçando quando eu recebi a notícia, que era para eu ir lá reconhecer um rapaz que tinham matado e parecia meu sobrinho. Foi um aperto, um sufoco, não sei nem como consegui, não tem nem como explicar o que eu vivi e senti nesse momento.”

Edmar diz que o choro de sofrimento é o único som que pode ser escutado na casa da família de Gilberto. Ele enfatiza que a mão do morador é uma das mais afetadas. “O que nós estamos passando aqui né, a mãe dele nem consegue falar, só está chorando desde ontem, ninguém tá conseguindo nem dizer nada, está realmente muito difícil”, diz.

Segundo o tio, Gilberto tinha um talento natural para desenhar e esse dom o levou a desempenhar a profissão de tatuador. “Ele ia fazer 30 anos, ele era tatuador, desenhava muito bem e mexia com isso né de tatuagem”. Ao terminar essa frase, Edmar começa a chorar. Nossa repórter dá uma pausa na entrevista para sentir se ele iria continuar com o depoimento.

Consciente da importância de contar a verdade sobre a trajetória de vida do seu Sobrinho, Edmar reforça: “Ele era ajudante de pedreiro também, aí ele começou a mexer com isso de tatuagem, tudo para sustentar a família dele”, revela ele, afirmando que Gilberto deixou um filho pequeno que fez aniversário no mesmo dia da sua morte.

Ao perceber o comportamento de vizinhos e amigos mais próximos, o tio de Gilberto, mais conhecido como Gibinha na Favela da Felicidade desabafa: “Todo mundo aqui está revoltado, não sabe o que faz, todo mundo da comunidade tá revoltado, ninguém aqui tá acreditando que isso aconteceu, do mesmo jeito que isso aconteceu com meu sobrinho, pode acontecer com todo mundo, com qualquer filho de outra pessoa.”

O medo da impunidade assusta o tio do morador, que insiste em dizer que a família só quer que a justiça seja feita. “Nós queremos justiça, e que esse policial se apresente e fale o erro que ele fez, porque policial que é policial não pode chegar atirando, tem que parar a pessoa, não tem que chegar atirando, não somos animais”, finaliza Edmar. 

“A mídia só tem colocado coisa ruim, mas quem vai contar e dizer quem ele era?”

Amigo de infância de Gilberto

Um amigo de infância de Gilberto, ou Gibinha como ele é conhecido pelos amigos e em seu território, nos conta quem é ele, seus sonhos e o que ele conseguiu acompanhar da vida de Gibinha. Para evitar ser perseguido por policiais, ele preferiu não revelar seu nome.

“O Gibinha é um moleque de periferia né, um moleque que foi privado de muitas coisas, há um tempo ele tinha comentado né, que estava muito feliz, ele tinha ido no mercado com a esposa e tudo, e ele disse que estava muito feliz que tinha sido a primeira compra que ele tinha feito em família”, revela o amigo de Gilberto.

O jeito carinhoso e sentimental de Gilberto fica como marcas e lembranças da amizade entre eles. “Quando a gente conversava e bebia ele chorava, ele era um menino sensível, ele tinha muitos sonhos, ele estava começando nas tatuagens, eu acredito que era o sonho dele isso, ele estava começando agora, ele ficava muito feliz quando encontrava na rua e falava dos desenhos, das tatuagens dele, ele fica bem feliz”, confidencia.

O sentimento de revolta comentado pelo tio Edmar também está presente nos pensamentos do amigo de Gilberto. “Eu estou numa revolta sabe, só quem conhece o Gibinha sabe, a revolta é muito grande”, conta ele, dizendo que o amigo de infância era uma pessoa do bem.

O amigo de Gilberto revela também que essa não é a primeira ação policial que deixa marcas nas famílias da Favela da Felicidade. “Há um tempo atrás teve uma chacina lá também e morreram uns amigos nossos, foi polícia também, e agora o Gibinha, a gente já tá cansado, da outra vez não teve nada, não teve justiça, e agora, cadê?”, questiona.

Segundo o amigo de infância, além de tatuador, Gilberto também trabalhava como ajudante de pedreiro. “Ele também era ajudante de pedreiro, batia uma laje, carregava uns sacos de cimento e era tatuador né, que era o sonho dele. Eu cheguei a comentar com ele dias atrás que o pessoal está falando que as tatuagens dele estão ficando muito boas, ele é trabalhador, pai de família.”

Após a morte de Gilberto, o amigo de infância enfatiza que andar pelos becos e vielas da Favela da Felicidade é um ato de coragem que impede ele até de visitar a família, com medo de ser alvo de abordagens policiais.

“Sempre tive medo, cansei de andar naquele beco ali, tenho medo até de visitar meus familiares, de sair de casa, o Gibinha morreu de dia, 13h da tarde, um dia que era calor, e lá onde ele foi morto tudo fica aberto, o movimento é grande, tem padaria, mercadinho, ali é muito movimentado, o que fizeram com ele não tem lógica, poderia ser qualquer um, não foi legitima defesa, legitima defesa com 6 tiros? Não tem lógica, isso é execução”, conclui. 

“se não tivesse a pandemia, era um horário que as crianças estavam saindo e chegando da escola, e aí como é que fica”

Articulador cultural da Favela da Felicidade

Um articulador cultural do bairro que dialoga com moradores, organizações sociais e poder público também foi ouvido pela nossa equipe de reportagem. O morador comenta que outros casos de violência policial já terminaram em execuções dentro da favela. “Em 2015 teve essa chacina, um pouco depois, tinha um pancadão próximo desse lugar onde o Gilberto foi assassinado, nessas batidas policiais de querer acabar com o pancadão no meio da madrugada, um frequentador do baile foi baleado na cabeça”, afirma.

Na ocasião, o articulador cultural contou que a polícia chegou ao local muito rápido após os tiros e não deixou os moradores socorrer as vítimas que ainda estavam vivas. “Alguns policiais ficaram rindo da situação, fora essas violências extremas que acabam nesses assassinatos, tem essa passagem da polícia com total desrespeito, que não leva ninguém, não faz nada, é só simplesmente uma vontade de maldade, de entrar na favela e achar que é um território que não tem lei e zoar as pessoas aqui.”

Segundo o morador, o que fica de mais revoltante no caso de Gilberto é saber que ele era uma pessoa sem nenhuma conexão com situações ilícitas. “Uma das maiores revoltas de todos nós é dessa condição de todo mundo conhecer o menino e saber que era uma pessoa que nem sequer usava uma droga ilícita, sabe? Era um menino que não estava envolvido com nada, entende?”, questiona ele.

Já com o semblante cansado e visivelmente abatido, o articulador cultural finaliza a entrevista ressaltando uma característica em comum com Gilberto que era o gosto pelo desenho. “Eu lembro que ele veio me mostrar um desenho, porque ele desenhava e eu desenho também e tal, e ele veio me mostrar um desenho que ele estava fazendo, que ele queria passar pra parede, para eu dizer o que eu achava sabe? Quando eu vi senti a pureza da pessoa, né… então isso não só por parte dele, mas também dos familiares, uma das famílias fundadoras da favela, e todos são trabalhadores, pessoas bem humildes. O Gilberto não merecia esse fim, de verdade”, desabafa.

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