Imagine São Paulo como um lugar cercado por rios e árvores frutíferas, onde você poderia nadar em riachos próximos da sua casa, pegar água em minas e ver o céu estrelado ao anoitecer. Foi nessa paisagem afetada por deslizamentos de terras que a líder comunitária Claudete Cordeiro dos Santos desembarcou aos 8 anos, em 1979, com familiares no Jardim D’abril II, bairro localizado no distrito do Rio Pequeno, zona oeste de São Paulo.
A viagem não foi curta: nascida em Pernambuco, em 1971, a pequena Claudete ainda morou na cidade de Presidente Prudente, até migrar definitivamente para o Jardim D’abril II, de onde nunca saiu. “A favela onde a gente mora tinha poucas casas, era bem mais organizada. Fui criada comendo fruta no pé, tivemos esse privilégio, essa infância boa”, relembra.
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Segundo Claudete, o solo do Jardim D’abril II é fértil permite o plantio de vários tipos de frutas e legumes. “Aqui tudo que você plantar dá. Dentro da comunidade a gente tinha abóbora, chuchu, manga, amora, ameixa, tinha todo tipo de fruta. A gente tinha uma relação muito boa com a natureza”, relata.
Enfrentando os deslizamentos de terras
O convívio com eventos climáticos extremos, como os deslizamentos de terras causados por fortes chuvas, faz parte da trajetória de vida da líder comunitária do Jardim D´abril II. Desde cedo, ela teve que lidar com os riscos de deslizamentos em seu território, medo que aumentava constantemente ao cair das primeiras gotas de chuva.
Durante os anos de 1990, foram retiradas inúmeras famílias do Jardim D´Abril II, algumas levadas para ocupar a COHAB Raposo Tavares, mas outras, receberam apenas o provisório auxílio aluguel, para conseguir outro imóvel para morar.
No mês de fevereiro de 1995, a cidade de São Paulo registrou o segundo maior volume de chuvas da história, alcançando 445,5 milímetros no mês, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia. Nesta época, a líder comunitária estava se organizando para cobrar prefeitos e vereadores de São Paulo, para urbanizar o bairro e reduzir os riscos de deslizamentos de terras.
Claudete conta que o momento em que a situação chegou ao seu estado mais grave foi durante a gestão do ex-prefeito Celso Pitta (1997-2001), na qual houve uma ordem de despejo para famílias que habitavam mais de 10 comunidades do distrito do Rio Pequeno, zona oeste da cidade, devido ao aumento de deslizamentos de terras no território.
“Juntou eu mais um grupo de mulheres e começamos a fazer um movimento questionando: se vai tirar a gente, vai colocar onde? Como você despeja uma comunidade com mais de 50 anos sem dizer para onde as pessoas vão? Eram as grandes favelas do Butantã”
Claudete Cordeiro, moradora do Jardim D´Abril, zona oeste de São Paulo
Além dos deslizamentos de terras e fortes chuvas, durante a gestão do prefeito Celso Pitta, a cidade de São Paulo registrou a quinta maior temperatura da história. Os termômetros marcaram 37º C em 1999.
No início da gestão da ex-prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, em 2002, Claudete conta que o trabalho de diálogo com vereadores e prefeitos deu resultado. “A gente conseguiu a concessão do uso do solo e com isso foi possível fazer grandes obras no território. Foi nesse momento que criamos a Associação de Moradores da Comunidade Jardim D’abril II”, explica a líder comunitária.
A criação da organização foi a primeira vitória de um trabalho que, a partir de então, conseguiu não só as obras necessárias para evitar novos deslizamentos na favela do Jardim D’abril II, mas também a construção de uma praça no território. Apesar disso, Claudete vê que ainda faltam muitas coisas para melhorar a vida dos moradores.
“O legado que eu vou deixar aqui é das pessoas morarem aqui e não caírem, porque a gente conseguiu todas as obras nesse terreno”
Claudete Cordeiro, líder comunitária do Jardim D´Abril II
Articulação política
Os anos de experiência enquanto líder comunitária deram à Claudete a possibilidade de transitar com facilidade pelos gabinetes dos vereadores, dialogando com líderes de várias vertentes políticas, desde que interessados em contribuir com a comunidade.
“Eles não estão fazendo nada que não seja o dever deles. Se eu não conseguir a emenda que eu preciso para a comunidade com um, eu tento com o outro. Nós estamos aqui em prol de uma causa só”, afirma Claudete, defendendo uma posição política de não se fechar para o diálogo, quando o assunto é melhorias para as condições de vida para os moradores do Jardim D´Abril II.
Entre as vitórias e derrotas dessa luta de 3 décadas, ao menos um dos sonhos de Claudete está mais próximo: a construção da sede da sua associação, que tem previsão para ser entregue até o início de 2024. O espaço será comunitário e ao lado da praça, ampliando as possibilidades de lazer e cultura no bairro.
Para a líder comunitária do Jardim D’abril II, o segredo do trabalho está enraizado no processo de aprender com as pessoas que vieram antes dela e lhe ensinaram a construir o futuro para o território.
“Para ser liderança, eu aprendi com outras lideranças, que faziam o mesmo trabalho que eu, só que de forma diferente na época. É isso que eu quero passar para os mais novos. Vocês podem ver o que eu faço, mas tem que olhar mais adiante”, finaliza.
Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem Justiça Climática – AJOR e iCS: Justiça Climática e o Enfrentamento ao Racismo Ambiental no Brasil”, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital e o iCS, Instituto Clima e Sociedade, no âmbito do The Climate Justice Pilot Project.
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