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Pessoas pretas e periféricas irão transformar a indústria da tecnologia

Edição:
Ronaldo Matos

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Conheça os ‘devs periféricos’, jovens moradores de periferias e favelas que estão tendo a oportunidade de compreender como as questões de raça, classe, gênero e território irão moldar o pensamento e a atuação profissional de uma nova geração de profissionais de tecnologia da informação.

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Gilmar Cintra, programador e estudante de engenharia da computação.

Ao relembrar a infância vivida na Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo, o programador e estudante engenharia da computação Gilmar Cintra , 32, afirma que o tradicional futebol na quadra com os amigos era deixado de lado para conhecer e vivenciar os primeiros contatos com a ciência e a tecnologia. “Em vez de ir em uma quadra com meus amigos, a gente ia em uma estação de ciência”, conta ele.

Após esse primeiro contato com o universo da tecnologia, Cintra afirma que foi na infância que surgiu o interesse pela ciência da computação. “Aí surgiu essa paixão por computação e quando você acha que acabou, que é só aquilo sempre surge algo novo”, complementa a recordação.

Porém a paixão pela ciência da computação de Gilmar vem acompanhada de uma frustração. Ele acredita que a tecnologia que poderia ser usada para resolver problemas da sociedade, no entanto, ela está sendo utilizada para produzir ainda mais desigualdades sociais, criando uma falsa sensação de evolução e ignorando problemas básicos.

“A gente tem famílias que ainda passa fome. E tem gente que ainda quer fazer entrega de drone. A gente precisa primeiro resolver esses problemas, que eles são uma coisa básica que não deveria nem existir”, ressalta o programador.

Após essa crítica sobre o mercado da tecnologia, o programador levanta outro questionamento: “como que a gente vai pra frente se tem muita gente que não tem nem saneamento básico?”

Diante das vivências e questionamentos do programador, outros aspectos importantes do processo de formação de profissionais de tecnologia vêm à tona, como por exemplo, o ambiente universitário que forma os profissionais do futuro, mas ainda pecam nas questões de diversidade. “Todos meus professores são brancos, em grande maioria homem, só vejo três professoras mulheres dentro do curso e reforço, todos são brancos”, afirma Gleyce Karen, 19, moradora de Poá, cidade da região Metropolitana de São Paulo.

A estudante de Sistemas de Informação conta que a falta de representatividade no curso também é outro problema que gera impacto no aprendizado. “Tenho dois professores que são de outros países, países vizinhos do Brasil e falam espanhol. Más dentro do curso não há diversidade e isso me entristece, pois não me vejo representada”.

Karen se mudou de Poá para a cidade de Dourados, em Mato Grosso do Sul, para estudar na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Ela relata que mora em um bairro rico na cultura indígena, mas o racismo velado dos moradores brancos ainda a persegue. Em 2019, assim que ela chegou à cidade, a estudante estava passando em uma das ruas do território e viu uma senhora olharem sua direção e falar para uma pessoa próxima a ela: “olha a negrinha” e dar risada na sequência.

Após vivenciar essa situação, Karen relembra que pensou seriamente em desistir dos estudos. “Pensei em voltar para São Paulo e desistir de tudo, más se desistisse seria menos uma mulher preta ocupando um espaço onde majoritariamente é composto por homens brancos, então permaneci e resisti assim como meus ancestrais”, argumenta.

Tais fatos relatados pela estudante sobre a discriminação racial que vivenciou contribuem diretamente com a permanência ou não de pessoas negras nesses lugares. Karen atribui sua insistência de permanecer na cidade e na faculdade onde não consegue se reconhecer nos professores e também nos estudantes ao objetivo de desenvolver suas habilidades como programadora.

“Eu gosto muito de programar, desenvolver um software, ver que um programa que eu me esforcei pra fazer está rodando bonitinho”, diz a estudante de forma entusiasmada, enfatizando que acredita que esses aprendizados podem mudar as quebrada e os moradores. “Acredito que a tecnologia muda o mundo, transforma e ajuda pessoas de várias formas e eu sempre vi a necessidade de fazer algo pelas pessoas de onde eu vim e no meu território. Encontrei na área de tecnologia da informação essa possibilidade”.

Algoritmo racista

Ao falar sobre as propagações de ódio e o viés do algoritmo que a partir da coleta de dados dos usuários aprende preconceitos com a ajuda da inteligência artificial, formando um algoritmo preconceituoso, o programador morador da Brasilândia afirma que isso só acontece por que a sociedade é racista. “Isso é uma evidência que nossa sociedade realmente é racista, não tem como negar isso”, comenta o programador morador da Brasilândia.

Uma das propostas pensada pelo desenvolvedor para lidar com esse tipo de problema é criar programas que aprendem e falam como a periferia. “A única forma de uma maneira concreta seria desenvolver uma inteligência artificial através dos inputs das pessoas que realmente moram em zonas periféricas”, conta Gilmar.

Ele propõe em construir um programa que aprenda o comportamento de moradores da periferia e transforma isso em dados que alimenta a inteligência artificial. “Se você pegar realmente as pessoas que moram nesses lugares, ou somente as pessoas negras, você consegue desenvolver uma inteligência artificial que não seja racista, que não é racista, porque espera-se que não seja inputs racistas e através desse aprendizado não racista a gente consegue desenvolver uma inteligência artificial que não seja racista e não fique julgando”.

Quando pensa na junção de suas vivências como morador da periferia com seus conhecimentos como desenvolvedor, o programador ressalta que os moradores possuem uma ferramenta muito importante para mudar a vida na periferia. “Eu imagino as comunidade no futuro com um projeto de reurbanização, ela tendo cabeamento elétrico, fibra ótica, telefonia, tudo embaixo da terra, um sistema de transporte eficiente”, imagina o desenvolvedor, fazendo uma releitura de como a tecnologias voltadas para as periferias pode impactar no seu desenvolvimento no futuro.

Já para a estudante de Sistemas de Informação do Mato Grosso do Sul, a imaginação do programador da Brasilândia só se tornará realidade se mais pessoas pretas atuarem no mercado da tecnologia da informação. “Com certeza acredito que com mais pessoas pretas dentro da área, o povo preto teria mais acesso à internet, teríamos mais aplicativos voltados para nós, aplicativos que facilitam ainda mais as nossas vidas”.

Ela finaliza a entrevista afirmando que outro passo fundamental para concretizar esse futuro para a quebrada é criar uma rede de ‘devs periféricos’ para construir, disseminar e ensinar novas tecnologias. “Acredito que o meu dever é repassar conhecimento a todos e inserir outras pessoas pretas da periferia e das favelas dentro da área tecnologia”.

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