Iniciativa organizada de maneira territorial em diversos bairros e cidades da Região Metropolitana de São Paulo oferece apoio jurídico às vítimas de violência policial nas periferias.
A partir da escuta e do diálogo feito com familiares de vítimas de violência policial dentro das periferias e favelas de São Paulo, a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio vem desde 2017 buscando de forma organizada realizar a proteção de moradores que sofrem violações de direitos praticados pelo Estado brasileiro.
“Através da informação e da coletividade dentro da quebrada, a gente busca se proteger desse estado genocida, buscando os cuidados na perspectiva de reduzir os danos diante dessa pandemia. É um trabalho coletivo”, afirma Márcia dos Santos, articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio no distrito de São Mateus, zona leste de São Paulo.
É como esse olhar de coletividade que Márcia, migrante nordestina de Alagoas, estudante de psicologia na Universidade Cruzeiro do Sul, reflete sobre o direito à vida nos territórios periféricos.
“Cada território tem o seu modo de funcionar, sua cultura, seu jeito e chegando aqui na zona leste, eu constatei o tamanho de vulnerabilidades que existem no local, e uma delas é perceber que o território de São Mateus é construído através de ocupações, ocupações que nesse tempo de pandemia cresceram bastante”, define ela.
A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio tem um formato de atuação territorial que inclui os moradores no processo de discussão sobre as violências cometidas pelas forças de poder do Estado, gerando uma série de conexões territoriais que atraem também novos articuladores que se formam politicamente nesses espaços de diálogo. E foi assim que a moradora de São Mateus conheceu o grupo de defensores de direitos.
“Eu conheci a Rede através da Katiara, uma das coordenadoras, em uma reunião que ela veio participar aqui em São Mateus. Eu achei muito importante e fundamental que também tivesse aqui no território essa rede ativa, porque diante das violências que ocorrem no território como um todo, é de grande importância que tivesse alguém que pudesse representar essa comunidade dentro da rede, e ter esse suporte através desse articulador para a comunidade”, relembra.
Violação de direitos
A Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio segue obtendo uma demanda de trabalho que não para de crescer, devido ao constante acontecimento de casos de violência do Estado. As situações de violência policial perseguem os moradores das periferias que estão dentro de suas casas, andando nos becos e vielas ou curtindo momentos de lazer nos bairros onde vivem.
É nesse cenário que Maria Edjane Lacerda, 38, se envolveu pela primeira vez com a Rede e se tornou uma articuladora do seu bairro, na zona sul. Ela é moradora do Capão Redondo e atua como gerente de serviços do SASF Capão Redondo III.
Após ver o filho da agente de saúde Simone Nascimento, 37, moradora do Parque do Engenho e mais dois jovens serem detidos e presos pela polícia militar enquanto jogavam futebol em uma quadra dentro de uma escola na mesma rua em que moram há mais de 20 anos, Edjane decidiu se mobilizar e encontrar caminhos para combater aquela injustiça.
Simone descreve que eram cerca de nove horas da manhã, quando houve um assalto de uma carga próximo da sua casa. Neste momento, a polícia estava atrás dos indivíduos que cometeram o crime, enquanto o seu filho estava com os amigos jogando bola na quadra da escola.
“A polícia entrou na escola e todos estavam lá, quando eles viram os jovens lá, eles começaram a atirar para cima, e eu escutei isso lá do meu trabalho. Aí os meninos começaram a correr por conta dos tiros, e aí nessa hora alguns conseguiram sair pelo outro lado da rua, meu filho e mais dois amigos se esconderam atrás da escola, aí o helicóptero os encontrou e lá foi forjado né”, relata a mãe de uma das vítimas.
Segundo ela, os policiais ficaram perguntando: ‘onde que tá a carga?’, ‘onde que está a carga?’, e os jovens sem saber do fato que estava acontecendo, pois tinham acabado de chegar na quadra, foram algemados e levados para a delegacia.
“São três jovens no bairro onde eu moro, com as famílias muito próximas, amigos dos meus filhos né? Então eu passo a acompanhar e articular com essas famílias em busca de justiça pela prisão indevida dos filhos dessas mulheres”, enfatiza Maria Edjane, sobre o trabalho que vem desempenhando com apoio da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio.
Edjane explica que acompanhou o processo desde o começo e o resultado do julgamento dos jovens saiu recentemente. “No decorrer desse processo que durou de novembro de 2020 até agora saiu a absolvição oficial dos meninos na última sexta-feira saiu”, conta ela, apontando um final feliz com a sua colaboração para criar um mecanismo de defesa dos jovens, presos injustamente pela polícia.
Acesso à informação
A partir de cartilhas que informam como deveria ser a abordagem policial, elaborada pela Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, é realizado um trabalho de educação política com moradores dos territórios periféricos, para explicar o significado de termos como o juvenicídio e o genocídio.
“Esses materiais são distribuídos nos atos ou nas ações que a gente faz na comunidade, num diálogo muito claro e objetivo, de forma que qualquer pessoa compreender”, afirma a articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio
Mas as ações de conscientização sobre os direitos civis da população preta e periférica não param por aí. A iniciativa também leva denúncias para o Ministério Público. “Nós solicitamos reuniões com o Ministério Público, somos atendidas em reuniões, direcionamos casos para as denúncias, cobramos do Ministério Público as respostas, já emitimos documentos sobre a câmera que fica alojada na roupa do policial, que não pode e não deve estar desligada”, conta Edjane.
Fruto desse trabalho de acompanhamento dos casos de violência policial, a Rede produziu e emitiu um documento para Secretaria de Segurança Pública, informando e solicitando que se policiais utilizam a câmera desligada, ele precisa assinar um termo de culpabilização diante dos seus atos.
Essa foi uma das estratégias encontradas para cobrar respostas do Ministério Público e da Secretaria de Segurança Pública sobre ações efetivas contra os policiais que cometem abusos de poder durante as abordagens.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo divulgou que em julho deste ano não houve registro de mortes por violência policial nas operações dos 18 batalhões da Polícia Militar de São Paulo, onde os policiais utilizam as câmeras corporais. Ao todo são 3 mil câmeras que fazem o registro de áudio e vídeo das abordagens.
“Para nós é inadmissível que um policial execute um jovem na comunidade e ele permaneça rondando essa comunidade, ele causa medo, ele causa terror e aí a gente já solicitou inclusive um projeto de lei pra que esses policiais possam ser afastados desses territórios, já que muitas vezes eles não são afastados do seu cotidiano profissional, que eles possam, pelo menos, não estar no território onde eles cometeram esses assassinatos”, conclui Edjane