Com a agenda de trabalho lotada para o mês de novembro, entre uma atividade e outra, a escritora Elizandra Souza nos recebe em um salão de beleza no Jardim Porto Velho, bairro do distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo, enquanto trança o cabelo para se preparar para os compromissos das próximas semanas. Segundo Elizandra, novembro é o mês em que as pessoas negras, sobretudo artistas, mais recebem convites de eventos por conta da demanda social e da pauta racial que é discutida de forma intensa nesse período.
A escritora aponta que em novembro existe um grande fluxo de ações, sendo que nos demais meses do ano essa demanda é menor. “É uma conquista a gente conseguir que pelo menos em novembro sejamos convidados, mas [isso] precisa avançar”, coloca Elizandra, que também é jornalista, poeta, editora, produtora cultural e atua como ativista cultural desde 2002.
“Novembro tem atividade quase todos os dias e nos demais meses praticamente você não existe.”
Elizandra Souza, jornalista, escritora e fundadora da editora Mjiba.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.
Elizandra afirma que o aumento da quantidade de trabalhos que surgem nesse período não é um problema. Para ela, a principal questão é que as pessoas negras, principalmente as que atuam na área da cultura, precisam de oportunidades de trabalho durante o ano todo, assim como o combate ao racismo também deveria acontecer.
“Eu sou muito favorável que aconteça os convites em novembro, não é para eles deixarem de acontecer, mas precisa se estender durante o ano. Novembro só não é suficiente”, coloca a escritora.
Com relação às empresas que procuram pessoas negras apenas para cumprir um calendário institucional e que não têm real comprometimento com as questões raciais, quando convidada, Elizandra diz que também ocupa esses espaços de forma estratégica. “Hoje estamos numa sociedade que se você não é antirracista é ultrapassado, então as instituições [nos] contratam porque elas são questionadas [sobre isso]”, comenta.
Para ela, estar em espaços institucionais que usam a pauta antirracista como marketing também é uma forma de questionar as estruturas. “Eu vou nesses lugares e tenciono: ‘quantas pessoas negras estão na coordenação?’. Entre um texto e outro a gente joga a sementinha de dizer [que] precisamos mudar”.
“Às vezes você está numa empresa dando palestra e tem um jovem aprendiz negro que te ouviu, possa ser que esse jovem [vire] um coordenador e ele ouviu aquela palestra, então ele sabe que precisa de mudanças estruturais. Só que [isso se dá a] longo prazo, porque é mudança de pensamento”, explica a escritora.
Fora o mês de novembro, Elizandra conta que por também tratar de assuntos de gênero, tem algumas datas em que as demandas de trabalho melhoram, como em março pelo Dia Internacional das Mulheres, e em julho, devido ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.
“Tem a [situação da] pessoa te convidar e achar que porque está te pagando, está te comprando. É essa neocolonização, o ciclo que se repete de outras formas, [mas] de sempre achar que você é uma mercadoria.”
Elizandra Souza, jornalista, escritora e fundadora da editora Mjiba.
Ao analisar problemáticas relacionadas às condições em que determinados convites são feitos, a escritora comenta que escreveu o texto ‘Chegou novembro, cuidado com os convites’, publicado em 2022, no qual ela dá dicas sobre o que as pessoas devem considerar quando forem chamar uma artista negra para trabalhar.
Segundo ela, a principal situação enfrentada por pessoas negras, com relação aos serviços prestados em novembro, está vinculada à falta de noção de que o trabalho precisa ser remunerado, o que relaciona ao racismo estrutural. “[É] a escravização do conhecimento essa coisa de achar que a gente tem que trabalhar de graça ou por ser um conhecimento imaterial, que ele não precisa ser remunerado”, aponta.
Antirracismo
Desconsiderar que pessoas negras podem ser especialistas e capazes de falar sobre qualquer temática além de racismo é um erro que por vezes ocorre. No entanto, pessoalmente para Elizandra isso não é um problema. “A gente pode falar de qualquer tema, mas o meu tema sempre vai trazer a questão racial e de gênero. Porque eu acho que é tudo sobre isso, [inclusive] a desigualdade do mundo”.
Bibliotecas, ONGs, escolas, coletivos e instituições culturais são os espaços que mais procuram pelos serviços da escritora. Ela diz que palestras, formação de professores e apresentações com o Sarau das Pretas, coletividade da qual ela participa, são as principais atividades realizadas.
Ações voluntárias não são descartadas pela escritora. Ela menciona que as contrapartidas podem ser negociadas a depender de onde e para quem ela irá prestar o serviço. Elizandra ressalta que não pode sair de casa e ter custos para ir trabalhar, que em cada espaço avalia os combinados. Trocas com crianças e adolescentes a partir de ONGs e comunidades do território também a fazem reconsiderar as questões de custos. “Dialogar com a juventude para mim é uma das coisas que eu não quero deixar de fazer por conta de grana”, afirma.
A escritora ainda pontua que é importante ter pessoas brancas aliadas, mas que elas não devem ser as protagonistas. “Às vezes eu fico preocupada com a coisa do antirracismo, porque as pessoas brancas que pesquisam a questão racial continuam no palco. Como o racismo é estrutural, quando uma pessoa branca se especializa na temática racial ela é muito mais convidada [para palestras] do que eu, porque vão ouvir os seus iguais. Porque eu vou falar de racismo, de machismo e [isso] é indigesto”, analisa.
Elizandra ressalta que ações pontuais não são capazes de resolver o racismo. Para ela, não dá para pensar no letramento racial sem que as pessoas negras estejam inseridas nesse processo e para isso acontecer é necessário que haja escuta e troca.
Embora as pessoas negras tenham conquistado muitos progressos, ela salienta que ainda há muito a ser melhorado e recomenda, quando possível, “aceite os convites que celebrem a potência artística que você é”, finaliza.