Entrevista

“Não existe apenas uma face da igreja”, diz membro da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito

Organização atua contra o fundamentalismo religioso e reúne cristãos que defendem os direitos humanos e as políticas públicas.
Edição:
Evelyn Vilhena

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A quantidade de igrejas evangélicas no Brasil vem aumentando nas últimas décadas. Em 1990, eram 17.033, sendo que em 2019, esse número cresceu para 109.560 igrejas desse segmento, conforme aponta a pesquisa ‘Surgimento, trajetória e expansão das Igrejas Evangélicas no território brasileiro ao longo do último século (1920-2019)’, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da USP. 

Para Gabriel Sales, o entendimento do que é o evangelho é uma linha determinante para diferenciar evangélicos que defendem os direitos humanos, dos fundamentalistas, que identificam esses direitos como um mecanismo de “defesa de bandidos”. 

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Representando a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito no 3ª Encontro da Coalizão Negra por Direitos (foto: arquivo pessoal).

Morador da cidade de Vicente Pires, no Distrito Federal, Gabriel é evangélico, faz parte da Coalizão Negra por Direitos e é coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. “A Frente nasce para demonstrar para a sociedade que não existe apenas uma face da igreja evangélica no Brasil”, comenta sobre a iniciativa criada em 2016, por pastores e pastoras, como um manifesto em defesa da democracia diante do contexto do impeachment da presidente Dilma, que ocorreu no mesmo ano. 

Segundo Gabriel, outro objetivo da instituição é dialogar com “igrejas pequenas que em sua maioria são pentecostais, mostrando um evangelho que às vezes não é dito para eles”. Ele coloca que os cristãos deveriam lutar para que todos pudessem ter os direitos garantidos e qualidade de vida.

“O lado do cristão é lutar com a sociedade [para] que o genocídio [do] povo que está nos territórios [periféricos] cessem. O lado cristão é para que todo mundo tenha vida em abundância, porque quando Jesus fala: ‘eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância’, é ter direito à educação de qualidade, à saneamento básico, à saúde”

Gabriel Sales, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

“A gente vê em Jesus humildade, amor, acolhimento, misericórdia, justiça, mas não é a justiça do justiçamento, é a justiça em sua plenitude [para] que todos tenham direitos iguais. Quando a gente lê toda a bíblia a partir dessa lente que é Jesus, a gente acha o evangelho. Então o evangelho é uma forma de ler e viver a bíblia”, comenta Gabriel.

Gabriel é assessor parlamentar, e em 2019 estudou teologia para ser pastor, mas conta que em 2021, por conta do fundamentalismo, deixou o seminário. No mesmo ano, ele começou a construir a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito no Distrito Federal. Atualmente ele é membro de uma igreja evangélica chamada Coletivação, que fica em Ceilândia, DF.

Fundamentalismo x Direitos Humanos

Gabriel afirma que o fundamentalismo presente em algumas igrejas evangélicas não é um projeto recente, é algo que vem sendo construído. Para ele, por isso que entender as teorias da teologia, o que inclui o fundamentalismo, se faz necessário no cenário político.

“Hoje não tem como a gente pensar num projeto de Brasil sem pensar nos evangélicos.Tendo em vista a ascensão do povo evangélico [que] de acordo com o IBGE tende ser a religião com mais adeptos”

Gabriel Sales, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

O coordenador aponta que essa doutrina nasce nos Estados Unidos, no final do século XIX. “É importante falar que o Brasil foi alvo das ações missionárias das igrejas dos Estados Unidos, principalmente as igrejas que assinavam esse movimento fundamentalista. Essas igrejas brasileiras seriam as que em 1964 apoiaram o golpe”, menciona. 

Encontro nacional de coordenadores da Frente pelo Estado Democrático de Direito, em 2023, no Rio de Janeiro (foto: arquivo pessoal).

Em contrapartida, o coordenador exemplifica que houveram evangélicos que também lutaram contra a ditadura. Ele coloca que como a questão da memória desse período não foi trabalhada, aspectos dessas ações missionárias se fortaleceram em igrejas evangélicas. “A gente chegou no momento em que essa política se tornou natural [ao ponto] de se falar, que bandido bom é bandido morto”.

“O movimento fundamentalista prega que só existe uma verdade. E essa verdade é a verdade deles [e] que a bíblia é totalmente inerrante. [Para os fundamentalistas] se no antigo testamento fala que a relação entre um homem e um outro homem é um pecado, [eles] se prendem a isso, [por exemplo]. O fundamentalismo traz essa literalidade”, diz Gabriel sobre situações e pessoas que interpretam os escritos da bíblia vinculadas a posturas e práticas que buscam diminuir, discriminar ou atacar outros grupos, o que, segundo ele, são práticas contrárias ao que o evangelho representa. 

A bancada da bíblia, grupo formado por parlamentares evangélicos, pastores, entre outros cristãos, têm em comum o fundamentalismo e o conservadorismo, segundo Gabriel. “Eles estão propondo política de acordo com o fundamentalismo deles”, comenta sobre as disputas políticas que envolvem a religião e interferem diretamente na vida da população. 

Como exemplo disso, Gabriel menciona o Projeto de Lei (PL) 1904/2024, que equipara o aborto, mesmo em caso de estupro, ao crime de homicídio simples, e tem articulações políticas da bancada da bíblia para ser aprovado. 

Segundo dados do Datafolha, 57% dos evangélicos que participaram da pesquisa disseram ser contra o PL que criminaliza o aborto. Ao todo 2.021 pessoas, a partir de 16 anos, fizeram parte do levantamento, que aconteceu em 115 municípios do Brasil, dos dias 17 a 19 de junho de 2024.

O coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito ressalta que as fake news também caracterizam o perfil de líderes evangélicos fundamentalistas que usam isso como estratégia política para direcionar o voto dos cristãos. 

“Para mim, [esses líderes] não têm nada mais ligado ao evangelho, se entregaram a um projeto capitalista, querem captar dinheiro e poder. E para [isso], eles precisam colocar os deles no Congresso Nacional, nas prefeituras, nas câmaras [e] assembleias estaduais”.

Gabriel Sales, coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.

Ele menciona que as igrejas evangélicas que não são fundamentalistas, grandes e ricas têm limitações, e quem deve concretizar o alcance aos direitos da população de forma ampla é o Estado, e que por isso é preciso defender as políticas públicas. 

Confraternização do núcleo do DF da Frente de Evangélicos pelos Estado de Direito. (foto: arquivo pessoal).

“Se eu falo que eu sou seguidor de Cristo e eu quero que todo mundo tenha vida em abundância, eu tenho que lutar para que todo mundo tenha arroz, feijão e uma proteína no prato. Então, eu tenho que lutar por uma sociedade em que não haja mais insegurança alimentar. Isso perpassa pelas políticas públicas”, finaliza.

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