Documentaristas da quebrada refletem sobre a importância da preservação do audiovisual periférico

Edição:
Evelyn Vilhena

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Para os documentaristas Sidnei Junior e Rosa Caldeira, a Cinemateca tem potencial para expandir e se reinventar, mas ainda é um espaço elitizado que não contempla as produções periféricas.

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Cineastas periféricos da produtora Maloka Filmes discursando após a premiação da obra Perifericu. Foto: arquivo pessoal.

Responsável por preservar a produção audiovisual nacional, o galpão da Cinemateca Brasileira, localizado na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, foi atingido pelo quinto incêndio em julho de 2021. Documentaristas periféricos como Sidnei Junior e Rosa Caldeira, lamentaram a perda de registros que ajudaram a construir os próprios referenciais cinematográficos, mas escancararam outra realidade: para a periferia, a Cinemateca já estava em cinzas.

Sidnei Junior, 25 anos, morador do Jardim Elvira em Osasco, região metropolitana de São Paulo, é criador do projeto independente “Quebradas Osasco” e se tornou documentarista através de um desejo de retornar para sua comunidade conhecimentos importantes que adquiriu ao longo de sua trajetória como arte educador.

“Eu atravessei essa ponte, saí da periferia e fui cursar no centro de São Paulo. Atuei trabalhando durante 4 anos no circuito cultural de São Paulo e queria retribuir isso pra cá”

enfatiza Sidnei Junior.

Sidnei Junior é documentarista, morador do Jardim Elvira em Osasco, região metropolitana de São Paulo, e criador do projeto independente “Quebradas Osasco”. Foto: arquivo pessoal.

Sem estar trabalhando no momento e com uma câmera parada em casa, foram circunstâncias que contribuíram para o surgimento da ideia de um projeto que tornasse os moradores das periferias de Osasco protagonistas das suas próprias histórias, criando então o Quebradas Osasco. Os episódios são distribuídos nas redes sociais, com a periodicidade de um vídeo a cada três semanas.

“Eu conheço pessoas com histórias tão legais por aqui, tá ligado. Por que não contar, sabe? Por que não mostrar? As pessoas merecem ter essa visibilidade também e se eu puder fazer, se tiver no meu alcance, é isso!”, afirma Sidnei.

Os episódios do Quebradas Osasco são distribuídos nas redes sociais, com a periodicidade de um vídeo a cada três semanas. Foto: divulgação.

Outro aspecto que o levou a criar o projeto, foi ver a retratação das periferias por pessoas que não moram nela, e o desejo de mudar esse conceito: “A partir do momento que você vê o audiovisual da favela, da periferia sendo representado pelos nossos, sendo feito, sendo utilizado, dirigido, filmado, editado por nós… é outra coisa, né”, relata.

Como documentarista periférico, uma das dificuldades que ele enfrenta está no processo de preservação de suas obras. Devido a falta de equipamentos e infraestrutura necessária para armazenar o material bruto, sempre que termina um conteúdo, ele precisa apagar tudo para conseguir editar os próximos que virão.

Uma das propostas da Cinemateca Brasileira, é fazer a preservação do audiovisual, mas essa informação por muito tempo ficou restrita aos centros. Sidnei, por exemplo, foi saber sobre a existência da instituição em 2016, quando estava em seu primeiro ano de trabalho no circuito cultural do centro de São Paulo.

“Nunca tinha ouvido falar, porque de fato esse é o projeto: que as pessoas da periferia não tenham acesso a esses polos culturais centrais porque convém pra certas pessoas que a gente não tenha esse acesso”, reflete o documentarista.

Cena do segundo episodio do Quebradas Osasco. Foto: divulgação.

Para Renato Candido, cineasta negro e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, se os centros de preservação histórica como a Cinemateca estivessem próximos da periferia, esse material poderia receber mais atenção e políticas públicas de proteção. Mas por conta da distância, não apenas territorial, só quem é da área consegue dimensionar o tamanho da perda.

“É como se impedissem que a gente chegasse em um grande tesouro, porque é muito rica a nossa cinematografia e a gente não tem nem ideia da nossa cinematografia. Então, é perder algo que a gente nem chegou a conhecer”

enfatiza o cineasta.

Para o especialista, as obras periféricas também precisam estar em uma cinemateca pensada pela e para as periferias e angariada pelo Estado brasileiro. “É claro que a gente não vai ficar ‘nossa, pegou fogo? Tô nem aí!’ Porque não tem nada da gente lá, mas as nossas obras infelizmente ainda não estão em uma cinemateca e precisam estar!”, afirma.

Assim como Renato, o cineasta trans Miguel Rosa Caldeira, 25 anos, também enxerga essa ausência de um espaço para a preservação cultural e fomento das obras periféricas. Com a experiência que retirou de suas vivências, ele percebe que um cinema brasileiro diverso, vai conseguir crescer quando envolver a periferia também em sua construção.

“A gente só consegue avançar de fato com essas coisas quando elas estão relacionadas com a base, quando elas estão relacionadas com a periferia, quando elas fazem sentido para o cotidiano dessas realidades, e isso a gente ainda tá muito distante”

analisa o cineasta.

Rosa Caldeira e Maloka Filmes na 23° Mostra de Cinema de Tiradentes com a obra Perifericu. Foto: arquivo pessoal.

Pensar nessa base, é pensar desde como o cinema é financiado, para depois ser preservado. Para Rosa e Sidnei, enquanto o estado não interfere diretamente nesse processo, ele é feito através de Ongs, coletivos e produtoras independentes que também buscam acessar políticas de incentivo como o VAI – Programa de Valorização de Iniciativas Culturais e Fomento à Cultura da Periferia, que são instrumentos importantes para a democratização, mas que ainda não conseguem atender a todos.

Motivado a fazer parte do audiovisual a partir de eventos culturais como saraus de rua, Rosa foi chamado pelos amigos para fotografar um jogo de Rugby da universidade Mackenzie. “Um rolê de ganhar dinheiro, sobreviver e ajudar as coisas em casa, aos poucos fui ressignificando isso e descobrindo outra vida no audiovisual e no cinema”, conta.

Desde então, ele desenvolveu trabalhos como eletricista dentro do audiovisual e junto com Nay Mendl e Wellington Amorim, criaram a produtora comunitária Maloka Filmes. Mesmo tendo dirigido um dos curta-metragens mais premiados do Brasil em 2020, ele demorou muito para se entender como cineasta.

“Demorei muito pra me entender como cineasta porque não tem pessoas como eu. Não tem pessoas trans, não tem pessoas periféricas dentro desse lugar”, expõe.

Para Rosa, ainda são determinados espaços, como museus e cinematecas, que definem o que é cinema e audiovisual dentro do Brasil. Alguns festivais tentam validar outra cultura, mas a reprodução dos mesmos padrões permanece.

“É a mesma lógica da elite, branquitude, cisgeneridade, porque não existem pessoas periféricas, trans, pretas, coordenando, dominando, pensando ativamente esses espaços”

afirma Rosa.

O filme “Perifericu”, desenvolvido através do VAI, recebeu mais de 25 prêmios, incluindo o Festival de Tiradentes, em que ganharam como melhor curta metragem pelo Canal Brasil. Representar o filme no festival foi importante para debater a ocupação desses espaços, mas chegando lá, se depararam com uma contradição.

“É um espaço que aceita nosso filme ao mesmo tempo que exclui ele. Aceitam o Perifericu pra validar esse festival porque a nossa presença lá enquanto corpos marginais valida aquele espaço enquanto legítimo. E o fato da gente ter o nosso filme aceito lá faz com que outras pessoas como a gente não possam estar lá, porque a gente é visto como exceção e não como regra”, dispara.

Rosa faz um paralelo sobre o difícil acesso entre os festivais e outros centros culturais de preservação nas regiões centrais, como a Cinemateca. “A Cinemateca era um lugar de super difícil acesso, localizado em um bairro extremamente elitizado com uma programação muito complicada e com poucas iniciativas voltadas para jovens da periferia”, analisa o profissional.

Para Rosa e Sidnei, é importante protestar por uma cultura de produção e preservação do audiovisual que inclua a periferia como base, pois espaços como a cinemateca podem se reinventar, serem potencializados e expandidos a partir do olhar para obras periféricas, pretas e LGBTQIA+. 

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