Na primeira série de fotorreportagens do Desenrola, moradores compartilham como é o cotidiano de quem bate de frente contra o racismo dentro e fora das periferias.
O Desenrola fez um mergulho na história de três moradores do Capão Redondo, distrito da zona sul de São Paulo. Reinaldo Alves, 27, Ananda Beatriz,19, e Ana Lúcia de 55 anos, revelam como eles enfrentaram e continuam enfrentando o racismo nos dias de hoje dentro e fora da quebrada.
Com 53,90% da sua população preta e parda, o Capão Redondo é o oitavo distrito de São Paulo com o maior número de população afrodescendente, segundo o Mapa das Desigualdades.
A empregada doméstica Ana Lúcia é uma das moradoras que fazem parte deste contexto racial da quebrada. Ela conta que desde criança mora no Capão Redondo, território que também serviu de moradia para os seus pais.
Ana começou a trabalhar como doméstica aos 14 anos, em uma metalúrgica. Com 20 anos, ela alisou o cabelo pela primeira vez, com um pente que ela esquentava no fogão. Ela diz que sofre preconceito desde que começou a trabalhar em seu primeiro emprego.
Ela conta que já sofreu diversos casos de racismo no trabalho, onde colocavam as coisas dela dentro do banheiro que era usado para lavar cachorros e para uso de outros empregados.
“Eu trabalhava numa mansão e tudo que era meu ficava num quartinho e no banheiro, onde dava banho no cachorro, que era meu trabalho também, um banheiro onde o pessoal que vinha fazer jardinagem, os homens todos usavam. É onde eu guardava o que eu comia, e também guardava meu copo”.
revela a moradora
Ao contar a sua história, Ana diz que outro ponto marcante na sua trajetória de vida é a forma como as pessoas comentavam de maneira preconceituosa sobre o seu cabelo.
“Eu tinha muito vergonha do meu cabelo, porque as pessoas me xingavam de ‘neguinha do cabelo duro’, ‘cabelo de Bombril’, de ‘arear panela’, então eu alisava e aliso até hoje”, relata ela, ao lembrar do preconceito que sofria sempre que deixava de alisar seu cabelo na infância.
Ana Lúcia, moradora do Capão Redondo, zona sul de São Paulo.
Para a moradora do oitavo maior distrito de São Paulo em população negra, nos dias atuais aconteceu uma mudança significativa na forma como as pessoas enfrentam o preconceito em relação a época em que ela era jovem.
“Eu acho que hoje em dia tá melhor do que antigamente, porque antigamente o racismo não era escondido, porque a gente não batia de frente, aí as pessoas falavam né? Mas hoje a gente pode combater frente a frente”.
Ana Lúcia, moradora do Capão Redondo, zona sul de São Paulo.
A jovem Ananda Beatriz,19, é filha da moradora Ana Lúcia. Ela sempre morou no Capão Redondo, tem cinco irmãos, mas foi a primeira da sua família a assumir o cabelo natural.
Diferente de sua mãe, Ananda conta que teve a influência do partido “Panteras Negras” e de seu professor de história para conhecer mais sobre a cultura negra, comprovando que a opinião da mãe faz sentido, ao afirmar que hoje os jovens enfrentam mais o racismo.
Antes de usar o cabelo natural, Ananda conta que alisava o cabelo desde os 11 anos. Ela começou a trabalhar como jovem aprendiz com 14 anos, na área de telemarketing.
Foi aos 15 anos que ela começou a entender as formas como o preconceito racial atingia a sua vida e de outras pessoas a sua volta. E nesse processo, o pontapé inicial dela para ativar essa percepção foi a curiosidade de como ela ficaria com o cabelo natural.
“O pontapé inicial para eu começar a usar o meu cabelo natural com certeza foi a curiosidade. Eu queria saber como ia ficar, eu queria experimentar a sensação de usar cabelo natural”.
Ananda Beatriz,19, moradora do Capão Redondo, zona sul de São Paulo.
Beatriz lembra que a transição capilar foi um processo muito difícil, por conta das mudanças em sua aparência, que nem sempre eram bem vista pelas pessoas em volta, até porque ela foi a primeira pessoa da sua família a assumir seu cabelo natural.
A transição nunca é fácil, sabe? Porque você cria uma expectativa com o cabelo, e às vezes ele não fica do jeito que você queria que ficasse. Foram anos e anos de aprendizado, de frustrações em relação ao meu cabelo, até eu compreender, até eu saber usar ele do jeito que eu uso hoje”.
revela a jovem
Para André Oliveira, professor, mestre e historiador, o racismo é uma política econômica, que provoca uma estrutura de sentimentos. Esses sentimentos tendem a provocar como efeito uma necessidade dos negros se afirmarem pela obediência.
Segundo a análise do historiador, isso explica por que as mulheres tendem a alisar os cabelos, numa tentativa de servirem mais, porque estão mais dispostas a serem servis.
A batalha de Ananda Beatriz também faz parte do cotidiano do seu primo Reinaldo Alves, 27. Ele nasceu e mora até hoje no Capão Redondo, e tem duas irmãs mais velhas.
O morador começou a trabalhar com 16 anos como ajudante de pedreiro, e atualmente tem sua própria empresa, a JR Freelancer Empresarial. Reinaldo conta que já passou por tantas situações de racismo e preconceito que nem se recorda quando aconteceu a primeira.
A abordagem policial está entre as principais situações que o morador acredita ter sido vítima de racismo.
“Sobre os enquadros que eu já levei cara foram tantos que eu não consigo nem saber quantos foram, desde o primeiro aos doze anos foram vários, tinha vezes que eu tomava enquadro toda semana”.
Reinaldo Alves, 27, é morador do Capão Redondo, zona sul de São Paulo.
Foi na porta da escola que estudava durante a adolescência que Reinaldo relembra um dos enquadros mais aterrorizantes que levou em sua vida. Ele conta que em umas dessas situações, o policial demonstrou não ter gostado da postura dele.
“O policial nesse dia encasquetou comigo, não sei por qual motivo, na verdade, eu sei por qual motivo hoje. E ele ainda falou pra mim que ia me pegar no outro dia na rua”, finaliza o Reinaldo.