A partir de projetos, pesquisas e vivências comunitárias, articuladores propõem soluções para prevenção de enchentes, canalização de córregos e coleta de lixo para melhorias sanitárias nos territórios periféricos.
A ineficiência da gestão pública diante das demandas populares reflete de diversas formas no cotidiano de quem mora nas periferias. O sistema de desigualdade de acessos se fortalece diariamente na falta de políticas efetivas que garantam os serviços que na teoria são direitos universais da população, como serviços essenciais de saneamento básico.
O serviço de saneamento básico se tornou mais comentado recentemente, devido ao avanço da pandemia de covid-19, o novo coronavírus, que pressionou a população por maiores cuidados de higiene. No entanto, essa cobrança não é acompanhada da garantia ao acesso desse serviço básico, já que, de acordo com o levantamento de 2018 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), há na cidade de São Paulo quase 300 mil pessoas sem acesso à água encanada e mais de dois milhões sem coleta de esgoto.
Em julho deste ano, o governo federal aprovou o Marco Legal do Saneamento Básico (PEC 4162/2019) que, entre outras deliberações, prevê maior participação do setor privado na gestão dos recursos hídricos e a universalização do acesso ao saneamento básico nas regiões metropolitanas até 2033.
Para Dora Lima, integrante da Coalizão pelo Clima, rede de coletivos que debatem e promovem ações de acesso à informação para combater mudanças climáticas, essa proposta do Marco Legal do Saneamento Básico não se tornará realidade.
“Para mim é puro marketing a história da universalização em 2033 nos termos que estão colocados. Visto que o atendimento do direito humano à água e ao saneamento básico deve ser feito de modo progressivo e deve priorizar as populações mais vulneráveis”, afirma a educadora ambiental, que também faz parte da Agenda 2030, um movimento engajado em propor ações efetivas para erradicação da pobreza no mundo.
Dados do SNIS/2018 apontam que 9,6% da população da cidade de São Paulo não tem acesso ao tratamento de esgoto.
Conscientização e mobilização
Diante da pouca eficiência da gestão municipal, articuladores e movimentos ambientais que entendem as necessidades e o contexto de quem moram nas periferias, buscam criar possibilidades de mudança e melhoria na qualidade de vida dos moradores.
Um exemplo dessas articulações territoriais que tem pensado soluções para melhorias sanitárias é o Abraço Guarapiranga, um movimento que busca sensibilizar e conscientizar as comunidades que são abastecidas pela Represa Guarapiranga. O objetivo é trazer as pessoas para a discussão sobre o cuidado necessário com a água. O Comitê Executivo do Fórum em Defesa da Vida é quem coordena as ações do Abraço Guarapiranga e realiza os encontros que acontecem toda primeira sexta-feira do mês.
Segundo Renato Rocha, educador ambiental, integrante do Abraço Guarapiranga e criador do Coletivo DedoVerde, negócio social que realiza ações ecológicas e de preservação ambiental na periferias, as ações do Abraço Guarapiranga acontecem em parceria com outros agentes territoriais.
“Além deste movimento social também participa a Defensoria Pública, que recebe as denúncias referentes ao descarte de esgoto direto na represa, situações de descarte de entulho nas áreas de mananciais e acompanha o que o poder público tem realizado no território”, conta ele, descrevendo a participação da Defensoria que faz parte do Fórum em Defesa da Vida.
Para o educador ambiental, as periferias ainda não possuem total acesso à água, tratamento de esgoto e ainda sofrem com enchentes devido a um processo histórico de ocupação desses territórios, beiras de córregos, rios e o não planejamento das cidades por parte do poder público.
“A população empobrecida que ocupa estes locais foi forçada pelo poder público para ir ocupar as frestas da cidade, em locais que não poderiam ser habitados, como as áreas de mananciais, se pegarmos o exemplo da Represa Guarapiranga e Billings”
explica.
Ele ressalta como as empresas também contribuem para o sistema de acesso não ser completamente funcional. “Desde o começo, o poder público priorizou o fornecimento de água potável e depois como fazer a gestão do esgoto com coleta, afastamento (jogar o esgoto nos rios) e no final o tratamento. Outro fator é a ineficiência das empresas que fazem a distribuição, que perde cerca de 30% da água tratada. Um grupo de fatores que envolvem habitação, educação e investimento em desenvolvimento social”, argumenta o agente ambiental que tem as periferias como campo de trabalho.
Soluções para auxiliar o combate a enchentes
Muitas ações poderiam ser criadas pela gestão pública com o intuito de conter problemas estruturais para quem mora nas periferias, como por exemplo, as enchentes. A urbanização dos córregos, não no modelo de concreto, e sim de tratamento para que as margens sejam revitalizadas, coleta universal de esgoto com tratamento local descentralizado e arborização das áreas de mananciais são alguns dos caminhos apontados por Renato.
O articulador também ressalta que existem possibilidades para além de obras de infraestrutura. Soluções ecológicas que poderiam ser aplicadas nas periferias, como uma Mini Cisterna.
“A Mini Cisterna é uma alternativa para armazenar a água da chuva de forma correta para que não prolifere o mosquito Aedes Aegypti e ser utilizada para fins não potáveis. Pode ser construída com canos de PVC e tambor de plástico ou caixa d’água. Em nossa sede, na Casa de Cultura e Educação São Luís, usamos um sistema de aproveitamento de água de chuva para irrigação com duas caixas com capacidade de 500 litros cada, e uma caixa com 3.000 mil litros. Total de 4 mil litros de água de chuva”.
O articulador avalia que serviços de responsabilidade do município, como a canalização de córregos, coleta de lixo, limpeza urbana e prevenção de enchentes são parte importante de uma ação que se não for em conjunto com a população, não irão surtir efeitos concretos nos territórios.
“É preciso ter ações multidisciplinares de Educação Ambiental para que o cidadão não jogue lixo nas vias públicas e córregos. Que as empresas se responsabilizem pela logística reversa de móveis como sofá, cama e guarda-roupa e que haja mais ecopontos nas periferias. Se não tivermos essas ações, vamos continuar no mesmo”
Por meio de sua atuação no Coletivo Dedo Verde, Renato articula formações e ações de educação ambiental em parceria com escolas e postos de saúde. Entre elas, a mini cisterna e o Programa Óleo Vivo, que coleta, armazena e destina o óleo de cozinha utilizado com frituras, para ser posteriormente transformado em sabão ou biodiesel.
“Cada litro de óleo usado jogado pelo ralo da pia ou vaso sanitário contamina 25 mil litros de água potável segundo dados da Sabesp. De 2012 até 2019, coletamos 20 mil litros de óleo usado, deixando de contaminar 500 milhões de litros de água potável. Em contrapartida da coleta, vamos nas comunidades e realizamos oficinas de sabão ecológico, palestra a respeito do impacto que o óleo causa no meio ambiente e na saúde pública”, compartilha Renato.
O articulador ambiental também coloca que existe um movimento governamental que busca privatizar empresas nacionais com objetivo de melhoria do serviço que o governo não faz, mas questiona quem sai ganhando com esses processos de privatizações.
“Tem um arranjo construído entre as empresas e o poder público que o cidadão comum não fica sabendo. Nada é feito de graça. Cerca de 50% da população brasileira não tem coleta de esgoto. Obras que são enterradas não trazem votos para os políticos. Este é um dos motivos de se privatizar. Diferente de pontes, campos de futebol, escolas, creches que os políticos podem expor suas faixas, não tem como por uma faixa dizendo: aqui realizamos a coleta de esgoto da sua região, com certeza não teremos mais problemas de doenças de veiculação hídrica ou ‘vermes’ ”
finaliza o articulador.
Zona sul: córregos, mananciais e enchentes
“A região das represas Billings e Guarapiranga têm ocupações que chegam a aproximadamente 2 milhões de habitantes onde, no meu entender, há o conflito de dois direitos aparentemente conflitantes – o direito à habitação e o direito ao meio ambiente. Foi a conclusão a que chegamos nos nossos estudos”, conta Vera Luz, coordenadora da Comissão Temporária de Sistematização da Legislação Ambiental do CAU/SP. Além deste trabalho de pesquisa no território, a arquiteta e urbanista é integrante do Grupo Amigos do Fundão do Jardim Ângela e do Fórum de Pesquisadores de M’Boi Mirim.
Segundo Vera, no Fundão do Jardim Ângela a demanda é muito complexa, porque encontra a questão de saneamento com a de proteção dos mananciais. Assunto que é discutido, no âmbito acadêmico e governamental, pelo menos desde a década de 1980.
Outra questão que afeta diretamente as periferias são as enchentes. Segundo Vera, essa não é uma situação que afeta apenas os territórios afastados do centro da cidade, devido ao processo de impermeabilização do solo urbano. “O provimento de água tratada na cidade de São Paulo alcança oficialmente quase que a universalidade o que, na prática, ainda deixa de fora populações carentes. Os serviços relativos aos resíduos sólidos, em ocupações periféricas informais, muitas vezes sequer existem”, conclui a urbanista.
Na região sul de São Paulo, outro grupo que tem pautado discussões sobre a qualidade de vida dos moradores é o Amigos do Fundão do Jardim Ângela, que atua por meio do Fórum Fundão das Águas, movimento que articula ações na defesa dos mananciais e na questão da relação com o meio ambiente com foco na zona sul.
Uma das lideranças locais que atua no Fórum Fundão das Águas é o Genésio da Silva, morador do Jardim Capela, bairro localizado no distrito do Jardim Ângela na zona sul. Sua militância começou em 1999, quando observava alguns moradores da região reclamando da situação do bairro. A partir deste momento, ele resolveu juntá-los e realizar uma reunião para discutir as demandas que existiam. Desde então, tem atuado em conjunto com outros agentes, articuladores em rede por melhorias locais.
Genésio conta que realiza ações nas escolas com alunos e professores para falar da importância da preservação do meio ambiente e como o trabalho coletivo voltado à questão ambiental influencia politicamente nas mudanças sanitárias na região.
“Cada liderança ou membro do Fórum das Águas faz suas queixas e no dia da reunião do Fórum a gente apresenta as demandas no coletivo, seja qual for à demanda e elaboramos os documentos e enviamos ao poder público, para eles terem ciência do que acontece nas nossas comunidades periféricas”.
O líder comunitário relata o cenário do saneamento básico na região e o comportamento dos moradores. “Nossos córregos não são canalizados, as pessoas jogam entulho e lixo tudo dentro dos córregos”. Ele conta também como é a atuação do poder público com essa e outras demandas.
“O poder público nas periferia eles fazem vistas grossas, você não tem noção quanto a gente faz reivindicações. Só pra você ter uma ideia a nossa subprefeitura de M’Boi Mirim se quer faz a zeladoria correta na região. Então, nós das periferias sofremos muito com o poder público que não nos enxerga, ou melhor, não quer nos enxergar, essa é a verdade. Temos o grande problema na região com desmatamento e ocupação desordenada, não tem fiscalização dos órgãos públicos, isso é um dos absurdo. A gente faz a denúncia, mas não aparece ninguém, ou quando aparece já aconteceu, aí já era”
finaliza Genesio.
O sonho de ter uma Veneza na Zona Leste
A situação dos córregos no Jardim Ângela, apontada por Genesio não é diferente do córrego Cangueiras da Vila Flávia, localizada no distrito de São Mateus, na zona leste da cidade.
O articulador cultural Negotinho, morador da Vila Flávia, conta como a hidrografia do território desassistida por políticas públicas, afeta a vida dos moradores.
“Na nossa favela há casas sem coleta de esgoto, há ruas sem boca de lobo para captar a água da chuva. Por isso, o córrego se transforma em uma grande fossa a céu aberto, em pelo menos três pontos. A comunidade sofre muito com isso porque o odor é forte, traz escorpião, ratos e baratas. A exposição com o esgoto à céu aberto impacta diretamente na saúde da comunidade, causando lotação no posto de saúde, porque as crianças ficam mais doentes, ficam com ‘sangue sujo’, como a gente costuma chamar quando sai manchas e feridas no corpo”.
“Nossa ideia para o córrego Cangueiras não era uma questão de canalizar, era de recuperar as nascentes. Nossa ideia era separar o esgoto, os resíduos, das águas da nascente; cuidar do plantio de árvores e canteiros. A ideia era ter uma ciclovia ao lado do rio, que passasse pela Favela Galeria e pelo espaço São Mateus em Movimento, para chegar no parque Reserva do Carmo e no Sesc Itaquera. A ciclovia seria um elo de ligação entre esses espaços. Apesar de estar longe, nossa ideia era que fosse um rio navegável”
conta Negotinho.
No final de 2016, a prefeitura fez a obra de canalização do córrego, atendendo a luta de mais de 10 anos dos moradores. Entretanto, a falta de serviços públicos de manutenção causa outro transtorno, o entupimento da tubulação: “quando entope, é a população que é obrigada a desentupir”, finaliza.
A luta pelo direito de viver com condições dignas nas periferias acontece desde sua ocupação. Atuar por meio da conscientização e engajar a população para reivindicar seus direitos tem sido o trabalho de articuladores locais que enxergam nos territórios diversas possibilidades de transformá-lo, com o objetivo de garantir qualidade de vida e saúde para os moradores.
Esta reportagem faz parte do projeto #NoCentroDaPauta, uma realização das iniciativas de comunicação Alma Preta, Desenrola e Não me Enrola, Embarque no Direito, Nós, Mulheres da Periferia, Periferia em Movimento, Preto Império e TV Grajaú, com patrocínio da Fundação Tide Setubal.