Bridget Masikati desembarcou em Belém – sede da COP 30 – com a responsabilidade de milhares de histórias nas costas. São mulheres que levantam às 4h da manhã para buscar água em nascentes cada vez mais distantes, que replantam suas roças três, quatro vezes porque as chuvas não vêm ou chegam violentas demais, que perdem filhos para a desnutrição enquanto a seca se estende. Mulheres negras, rurais, zimbabuanas — invisíveis nas negociações climáticas globais, mas na linha de frente da crise.
Ela é da Vila Mukanganwi, no distrito de Bikita, no Zimbábue, onde os riachos de sua infância secaram e a nascente que nunca falhava agora só corre após chuvas generosas. Cresceu vendo viúvas sendo expulsas de suas terras e filhas impedidas de herdar o solo que ajudaram a cultivar até o mesmo acontecer com sua mãe, após a morte do pai. Foi esse golpe que a transformou em ativista — e a levou até a COP 30. Para ela, crise climática e desigualdade de gênero são inseparáveis.
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Atualmente, como parte da organização Women & Land in Zimbabwe (Mulheres e Terra no Zimbábue), Bridget trabalha em comunidades rurais para garantir que mulheres tenham acesso à terra, defendam práticas agroecológicas e construam resiliência climática a partir do que sabem fazer melhor: cuidar. Ela chegou em Belém com uma mensagem urgente para os líderes mundiais reunidos na Amazônia: sem direitos fundiários para mulheres, não existe justiça climática possível.


Gabi Coelho – Você cresceu na Vila Mukanganwi, no Zimbábue. Como era esse lugar na sua infância? E como está hoje?
Bridget Masikati – Quando criança, Mukanganwi era cheia de vida. Riachos claros cruzavam a vila, nascentes perenes alimentavam nossas hortas, e da porta da nossa cozinha buscávamos água de um canal desviado que fluía de uma nascente que nunca secava. Nossa casa tinha um enorme pomar com diferentes árvores frutíferas. Era uma paisagem onde as pessoas viviam em harmonia com a natureza, a vila era conhecida como um celeiro, com diversidade e chuvas confiáveis.
Hoje a história é diferente. Muitos riachos encolheram ou secaram, e a nascente que antes nos dava água o ano todo agora corre apenas após boas chuvas. O desmatamento e as mudanças climáticas erodiram o solo. As estações são imprevisíveis — as secas se estendem por mais tempo, as chuvas chegam tarde e violentamente, e ondas de calor queimam as plantações. O pomar ainda está de pé, mas a paisagem mais ampla mudou da abundância para a incerteza.
As mudanças climáticas transformaram tarefas básicas em batalhas diárias. As mulheres agora caminham mais longe por água, lenha é escassa e falhas nas colheitas são comuns. Chuvas erráticas forçam replantios repetidos, aumentando o trabalho sem rendimento. A desnutrição aumenta, as cargas de trabalho também e o estresse se acumula. As mudanças climáticas não são abstratas, são realidade vivida. Dignidade perdida, cultura perdida, redes perdidas e aumento do fardo do cuidado.
O que te fez decidir lutar pelos direitos das mulheres? Tem uma história pessoal por trás disso?
Meu despertar veio tanto das minhas observações de infância quanto de uma experiência familiar dolorosa. Crescendo, eu constantemente via violência contra mulheres, especialmente viúvas sendo expulsas de suas casas, ou filhas tendo negada a terra que ajudaram a cultivar. Era comum ouvir os anciãos dizerem: “Uma mulher não tem terra.”
Isso se tornou pessoal durante os últimos dias do meu pai. Depois que ele faleceu, alguns líderes da vila cobiçaram nosso pomar, fruto de anos de trabalho árduo, e queriam realocá-lo para seus filhos. Minha mãe foi repentinamente tratada como hóspede em sua própria terra. Ver ela lutar por dignidade e sobrevivência quebrou algo dentro de mim.
Eu não suportava ver minha mãe sofrer sozinha, e me vi defendendo a própria terra que nos criou. Esse momento acendeu o verdadeiro ativismo e alimentou a energia nas comunidades com as quais trabalho na Women & Land in Zimbabwe.
Que tipo de resistência você enfrenta nesse trabalho?
Trabalhar em uma comunidade patriarcal nunca é fácil. Alguns homens se sentem ameaçados por mulheres empoderadas e desafiam abertamente nossas reuniões. Líderes tradicionais às vezes resistem à ideia de emitir terras para mulheres.
Enfrentamos ataques verbais, acusações de “destruir famílias” e pressão para desistir. Até algumas mulheres mais velhas que cresceram sob normas de gênero rígidas nos alertam para ficarmos em silêncio.
As mulheres realizam a maior parte do trabalho agrícola, mas possuem menos terra. Sem terra, elas não têm garantia, controle ou poder de decisão. Investimentos inteligentes para o clima, como irrigação, bancos de sementes, agrofloresta, são mais difíceis de implementar quando a terra é insegura. A desigualdade aprofunda a vulnerabilidade climática.
Mas permanecemos firmes. Mostramos às comunidades os benefícios econômicos e sociais quando as mulheres têm terra: mais comida, melhores rendas, crianças mais saudáveis e redução da violência.
A gente ouve falar muito de financiamento climático nas COPs. Quanto disso chega de fato nas mãos das mulheres rurais?
Uma quantia insignificante do financiamento climático agrícola chega às mulheres no campo. Isso se deve à burocracia, falta de documentação, estruturas rígidas de financiamento e comitês dominados por homens que bloqueiam o acesso. A maioria dos fundos fica no nível nacional ou institucional.
A maioria dos esquemas de crédito de carbono e monoculturas “verdes” em larga escala prejudica as mulheres rurais. Eles ocupam terras comunais, restringem acesso a pastagens e lenha, e raramente compartilham benefícios. Esses projetos aprofundam a desigualdade, reduzem a biodiversidade e minam a soberania alimentar. As mulheres se beneficiam mais da agrofloresta controlada pela comunidade e sistemas de cultivo diversificados do que dos modelos corporativos de “crescimento verde”.
Apesar de tudo, que soluções vocês estão construindo para enfrentar a crise?
Apesar dos recursos limitados, as mulheres estão liderando soluções inovadoras: preservação de sementes indígenas e bancos de sementes, agroecologia, captação de água através de diferentes formas, hortas comunitárias alimentadas por bombas solares, plantio de árvores e restauração de campos degradados. Essas soluções são de baixo custo, sustentáveis e enraizadas no conhecimento vivido.
Uma das nossas maiores vitórias coletivas através da WLZ inclui apoiar mulheres rurais a adquirir mais de 200 hectares de terra para projetos de desenvolvimento em grupo. Para muitas mulheres, esta foi a primeira vez que tiveram acesso seguro à terra que era delas, não emprestada, não controlada por homens, não ameaçada por despejo. Uma mulher me disse: “Esta terra restaurou minha dignidade. Meu marido costumava me bater por pedir dinheiro. Agora eu alimento minha família.”
Em Belém, conhecendo a realidade das mulheres amazônicas, o que te chamou atenção nas semelhanças entre as lutas de vocês?
As mulheres amazônicas e as mulheres rurais zimbabuanas enfrentam ameaças semelhantes: grilagem de terras, extrativismo, desastres climáticos e controle patriarcal. Ambas defendem territórios ricos em biodiversidade. Ambas se organizam além das fronteiras. Ambas detêm conhecimento ancestral crítico para a justiça climática.
Irmãs na Amazônia e em todo o Brasil, sua luta é nossa luta. Continuem defendendo suas florestas, rios, sementes e comunidades. Sua coragem nos inspira. Estamos juntas em solidariedade, de Bikita à Amazônia, do Zimbábue a Belém, enraizadas como as árvores mais antigas, inabaláveis pelas tempestades, crescendo mais fortes a cada estação.

