Garantir o acesso ao que é regulamentado por lei, no que diz respeito às crianças, é dever não apenas dos pais ou responsáveis, mas também do Poder Público e de toda sociedade, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Crianças são pessoas com direitos, e isso inclui direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, à liberdade, à convivência comunitária, entre outros.
No entanto, Priscila Obaci, 39, que é artista, professora de teatro e mãe solo do Melik Rudá, 7, e do Bakari Mairê, 5, traz perspectivas diferentes sobre como a sociedade lida com crianças. “Durante muito tempo eu fiquei sem frequentar os lugares, porque não tem uma preocupação com as crianças. Acho que com os bebês [a questão] é mais forte ainda, [porque] não tem um trocador, não tem um lugar que você consiga sentar para amamentar”, coloca a educadora.
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Priscila é moradora do Guarapiranga, um bairro do distrito Jardim São Luís, na zona sul de São Paulo. Como arte-educadora, ela realiza atividades que estimulam e envolvem a maternidade, bebês e crianças, através de saberes de matriz africana.
“A gente assimilou um aspecto eurocêntrico de como lidar com as crianças que não tem a ver com as nossas práticas tanto africanas, quanto indígenas, de filosofia e de sociedade, que colocam a criança como centro, a criança como uma continuidade dessa comunidade e por isso ela deve ser respeitada, tendo os limites de ser uma criança, mas tendo essa relação de equidade.”
Priscila Obaci, artista e professora de teatro.
Atualmente, cerca de 11 milhões de mães brasileiras criam filhos sozinhas, segundo a pesquisa realizada pelo Instituto de Economia, da Fundação Getúlio Vargas, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O estudo também mostra que 90% dessas mulheres são negras.
Luana Oliveira, 41, também moradora do Jardim São Luís, é educadora popular, mestranda em sociologia e pesquisa sobre maternidade solo com um recorte para moradoras das periferias da zona sul de São Paulo. Para ela, uma sociedade que exclui crianças, também exclui as mães.
“A gente tem uma sociedade que não gosta de crianças, que não é preparada para acolher as crianças. Inclusive, a gente tem um processo de construção de sociedade que exclui as crianças de todos os espaços. E isso faz com que as mães também sejam excluídas, especialmente as mães solo.”
Luana Oliveira é mestranda do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Unicamp.
A exclusão de crianças também exclui as mães
A falta do senso de coletividade no cuidado com os pequenos é uma questão em diversos espaços e que também sobrecarrega as mães. “As pessoas de um modo geral, inclusive as mulheres, as feministas, elas não se implicam nesse processo de cuidado com as crianças. É como se só a mãe tivesse obrigação de tomar conta daquela criança”, menciona Luana.
Priscila aponta a necessidade desse cuidado com as crianças, em qualquer espaço, acontecer de forma coletiva, pois “é um peso muito grande que a gente carrega de ser a única representante desse cuidado e não ter acolhimento”, coloca a arte-educadora.
“As mães sempre se veem coagidas a manter a criança sob controle. Você é expulso dos espaços, não de uma forma direta, mas é um segurança que te persegue, é um pessoal que te olha de lado, isso acontece com as mães o tempo todo. Se a sua criança chorar, rir, correr, se ela se expressar, alguém já olha para você e indica nesse olhar que a sua criança está incomodando.”
Luana Oliveira, educadora no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular.
Priscila também considera as particularidades que envolvem essa questão nas periferias. “A classe média alta acessa as coisas antes da gente. E tem muito mais possibilidade de pensar lazer e acolhimento do que a gente que está pensando na sobrevivência o tempo inteiro”, cita a arte-educadora, que também conta que sua rede de apoio, que é constituída por mulheres e a escola, é fundamental.
A artista relata que através de suas falas e movimentações foi “educando a sua comunidade” e criando possibilidades para que ela pudesse viver as experiências culturais com suas crianças.
“No último carnaval eu toquei e eles ficaram circulando pelo cuidado de várias pessoas, que me conhecem e conhecem eles. Eu acho que ainda não é o mundo ideal, mas tem se movido de alguma forma”, comenta.
Segundo Luana, que além de pesquisadora, também é mãe solo de três crianças: Mar, 15, Murilo, 12, e Manuela, 2, apesar de todos os espaços e eventos culturais terem um discurso politicamente correto com relação à presença de crianças, são poucos os que se organizam para recebê-las.
“Como essas crianças são bem-vindas se eu não ofereço minimamente uma infraestrutura? Você não ter um trocador, você fumar e jogar fumaça na cara da criança. Falar que a criança é bem-vinda não é o suficiente, é preciso criar condições para que a criança seja efetivamente bem-vinda”, salienta a pesquisadora.
Espaços culturais e o olhar para as crianças
A Casa de Iaiá, localizada no município de Taboão da Serra, no bairro Parque Jacarandá, São Paulo, é um espaço cultural com diversas linguagens artísticas, que mesmo com programações que não são voltadas especificamente para crianças, se propõe a ser um local de acolhimento para mães e crianças que frequentam a casa. Isso ocorre através de ações que pensam a estrutura do espaço, como a disponibilidade de trocador, balanço, rede e espaço ao ar livre para as crianças brincarem.
Os responsáveis pelo local são Ângela e Tadeu, que é mais conhecido como Tatu. A ideia dos dois, que são educadores, amigos e sócios, era ter um espaço aconchegante semelhante a uma casa, como o nome do lugar sugere, e com um grande quintal. “E aí a gente entra nessa ideia das crianças, porque um quintal sem criança é um quintal sem graça”, Tatu, 41, produtor cultural.
Apesar de boa parte do ambiente ser ao ar livre, a casa tem um lugar específico para quem fuma. “Tem a tabacaria aqui, tem narguile, mas a gente sempre fala pra galera ter essa sensibilidade de entender quando tem criança, pra respeitar. Então tem um espaço para isso, para não ter esse tipo de constrangimento de alguém que está com uma criança se sentir incomodada”, comenta Tatu.
Luana aponta sobre a importância das crianças terem acesso aos espaços culturais, tendo como parâmetro os próprios filhos. “É importante que eles entendam que todos os espaços são para eles. E [aprendam] criar estratégias de reivindicar condições para que eles estejam nesses espaços. Acho importante que os meus filhos entendam os espaços culturais como espaços de resistência e de estratégias de luta das pessoas da periferia e por isso eles estão comigo em todos os lugares”, conta.
Tatu também menciona como a presença das crianças é importante na Casa de Iaia. “A criança traz uma energia, uma atmosfera para o lugar que a gente não vai conseguir de nenhuma [outra] forma”. Segundo Tatu, a Casa de Iaia é também um lugar de memória afetiva, com referências de ancestralidade, reforçando aspectos como identidade e pertencimento ao território à medida que essas crianças têm a possibilidade de ter acesso e conhecer artistas locais e suas obras.
Priscila ainda coloca aspectos que demonstram como a não inclusão de crianças em espaços é um problema estrutural e social. “O racismo foi muito potente em eliminar a gente. A gente morre de bala e morre também dessas crianças não se sentirem pertencentes a uma comunidade, não poder se olhar enquanto igual, não se identificar, não ter um processo de representatividade. Quando uma criança é apartada desse convívio, a gente está matando as possibilidades dela ser quem ela é”, finaliza a arte-educadora.