Reportagem

“Muitas vezes isso não vai chegar na periferia”, diz cineasta sobre projeto de lei que regulamenta exibição de filmes nacionais

Cineastas que atuam nas periferias de São Paulo, relatam como o projeto de lei da Cota de Tela impacta o cinema independente e periférico.
Edição:
Evelyn Vilhena

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A renovação da cota de tela, através do Projeto de Lei (PL) 3696/2023, faz parte das políticas públicas de retomada do setor audiovisual brasileiro. “Lutar pelas cotas de tela é entender que muitas vezes isso não vai chegar na periferia, mas se não tiver essa cota de tela para o cinema nacional, pode ser muito pior”, afirma Daniel Fagundes, 37, cineasta, coordenador do IbiraLab, uma escola de cinema na quebrada, e morador do bairro Jardim Primavera, zona sul de São Paulo.

A cota de tela é uma lei que busca garantir um espaço mínimo para o cinema nacional em diferentes meios de exibição. Atualmente, a lei foi regulamentada apenas para os canais pagos de TV. A situação dos cinemas e das plataformas de streaming ainda não foi definida, sendo que o setor do cinema está com a renovação da lei vencida desde 2021.
Thais Scabio trabalhando na direção do Filme Barco de Papel. (foto: Crioula Oliveira)

“Mesmo com a cota a gente tem pouco acesso aos filmes que são produzidos no Brasil. Essa cota não tem uma preocupação também com ações afirmativas”, coloca Thais Scabio, 46, moradora do bairro Cidade Júlia, no distrito Cidade Ademar, São Paulo, que há 20 anos trabalha na área do audiovisual, com direção e produção de filmes.

“Quando você não trabalha dentro dessa cota uma questão de ação afirmativa tanto regional, quanto representativa de gênero, de raça, você também não vê essa diversidade na tela do cinema, nos canais fechados e streamings. Então, são as mesmas distribuidoras que acabam circulando os mesmos filmes, dos mesmos diretores.”

Thais Scabio é fundadora da produtora Cavalo Marinho Audiovisual, da plataforma de streaming Todesplay e moradora do bairro Cidade Júlia, no distrito Cidade Ademar, em São Paulo.

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O cineasta Daniel Fagundes aponta que mesmo com uma baixa porcentagem, o conteúdo nacional alcançou mudanças significativas de exibição quando a lei estava sendo aplicada.

“Antes da cota de tela a gente tinha um montante que representava praticamente 1,5% das telas com produção de cinema nacional, isso nas redes de TV fechadas. A gente tem, na última pesquisa de 2021, um avanço de quase 10%. A gente saiu de 1,5% para 14%”, aponta Daniel em referência ao levantamento feito pela Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), através de dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e do Ministério da Cultura.

“A cota de tela é uma prática que acontece no mundo inteiro para garantir que os filmes nacionais circulem”, aponta Thais. Mesmo assim, existem barreiras para a regulamentação no Brasil, como coloca Daniel. “Tem muitos desses grandes conglomerados de distribuidores e exibidores [que] acham sempre brecha na lei para tirar a produção independente, para tirar a produção do curta-metragem desses espaços”, afirma.

Produção e distribuição no audiovisual independente e periférico

Apesar de existirem políticas públicas de incentivo à cultura que incluem também o audiovisual, como a Lei de Fomento à Cultura da Periferia, o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), nem sempre esses investimentos são suficientes para acolher uma quantidade maior de ações.

“A gente simplesmente não está mais procurando nada [nesse sentido de editais, fomentos]. Da mesma forma que o mercado de trabalho fechou as portas pra gente, a gente chegava em um edital e encontrava 30, 20 páginas de burocracias e regras”, esse relato é do Bruno Maciel, 26, morador da Vila Missionária, zona sul de São Paulo. Bruno é diretor e um dos fundadores do Tomada Periférica, um coletivo que desde 2020 produz cinema nas periferias.

Bruno Maciel, cineasta, morador da Vila Missionária, zona sul de São Paulo, durante a gravação da série Romeu e Juliete, produzida pelo coletivo Tomada Periférica. (foto: arquivo do coletivo Tomada Periferica) 

Bruno conta sobre as dificuldades que o coletivo encontrou ao tentar acessar algumas políticas públicas. “Até então todo mundo do Tomada trabalha, não dá para ficar virando a noite fazendo editais etc. A gente até tentou se inscrever, mas desistiu, porque os resultados eram frustrantes”, comenta.

Ainda assim, em 2021, o Tomada Periférica, através de contatos e da repercussão do filme na internet, conseguiu furar parte do bloqueio da distribuição e fizeram uma sessão de exibição do filme “Dois Conto – a continuação barata de Dez Conto”, em uma sala comercial de cinema, em Santo Amaro, distrito da região sul de São Paulo.

Bruno Maciel na ponta esquerda e o elenco do filme “Dois Conto – a continuação barata de Dez Conto”, no dia da exibição no cinema, em 2021. (foto: arquivo do coletivo Tomada Periferica)

“Eu tô há 20 anos dentro desse universo do audiovisual e a primeira vez que eu consegui distribuir um filme meu foi ano passado [2022]”, conta Daniel. Segundo os cineastas entrevistados, em muitos casos, a justificativa que é dada pelos cinemas e streaming aos produtores periféricos, é de que os filmes não têm um determinado “padrão de exibição” para ocuparem esses espaços.

“A real é que existe um mercado muito fechado e determinado já para os herdeiros dessas grandes produtoras, que se isso não fosse verdade, qualquer um de nós, que cumprisse todos os requisitos que eles [grandes conglomerados de distribuição e exibição de filmes] querem, estava com o filme lá na Netflix, na Globoplay.”

Daniel Fagundes, fundador do coletivo Caramuja de Pesquisa, Memória e Audiovisual.

Sob a perspectiva de gênero, o audiovisual também tem suas barreiras, principalmente quando se trata dos cargos de liderança, como aponta Thais. “Pensando no nível nacional, teve aquela pesquisa [de 2016] da Ancine [que explicitou] que não teve nenhuma mulher negra na sala de cinema [como diretora ou roteirista], nas últimas décadas”, coloca a cineastas.

O nós por nós no cinema produzido nas periferias

Entre dificuldades e obstáculos, cineastas que atuam a partir das periferias desenvolvem soluções e se articulam para criar melhorias. “Na periferia, a gente acabou resolvendo a distribuição entre nós. Os cineclubes são lugares importantes de distribuição que a gente organizou. A maioria dos nossos filmes também estão no YouTube”, coloca Thais. No entanto, ela também aponta que esse modo de distribuição não costuma ser rentável.

Equipe do filme Um Bom Lugar, direção de Rosa Caldeira e Well Amorim, produção de Thais Scabio. (foto: Victoria Marcelino)

“Todos [os nossos filmes] a gente lança na internet, porque a internet está sendo a maior janela que a gente encontrou. O público geral não conhece os festivais, se a gente se limitasse aos festivais poderíamos ganhar um título ou outro, mas isso não é tão consagrado quanto você vê o Juca da padaria falando do seu filme. Tá ligado?”, diz Bruno Maciel.

Thais reforça que o audiovisual desempenha diferentes funções para além do entretenimento, e que ele pode gerar visibilidade para territórios e pessoas terem suas existências reconhecidas e registradas.

“A gente usa o audiovisual também com uma ferramenta de luta, para mostrar que a gente existe e resiste. Eu acho que o audiovisual para a gente é uma forma de sobrevivência, de denúncia, de trazer benefícios para a comunidade.”

Thais Scabio, fundadora da produtora Cavalo Marinho Audiovisual, da plataforma de streaming Todesplay.

Daniel menciona também que o cinema é uma ferramenta para criar novas narrativas. “[Para] que não sejam majoritariamente pessoas brancas em um lugar de poder a gente precisa que o cinema nacional [seja] diverso, [que] não só o cinema nacional das grandes produtoras possam disputar espaço na tela”. Ele ainda ressalta: “A nossa luta é para dizer que a gente existe”.

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