Jovens da zona sul relatam os reflexos da transição capilar em sua autoestima

Edição:
Evelyn Vilhena

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 Entrevistamos três mulheres da região sul de São Paulo, que trouxeram relatos sobre o processo da transição capilar, e como, para além da questão estética, as mudanças desse percurso impactaram sua saúde mental, autoestima e convívio social.

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Caroline Meneses de 21 anos e moradora do Cidade Ipava. (Foto: Flávia Santos)

A transição capilar é um método adotado na maioria das vezes por mulheres, para retirar a parte do cabelo que tenha produtos químicos e voltar completamente para seu estado natural. Para entendermos os reflexos desse processo na vida de muitas mulheres da quebrada, seja antes, durante ou depois do procedimento, conversamos com três jovens que relataram suas experiências e como isso afeta a saúde mental e estilo de vida de uma mulher, principalmente negra e periférica.

Os relatos das três mulheres demonstram como o processo de transição contribui para que muitas pessoas passem por transformações que vão além do sentido físico, passando pela insegurança pessoal, medo de não conseguir se aceitar no final do procedimento, afetando também o lado emocional, sendo que muitas vezes pode ser mais difícil do que parece.

A primeira mulher que entrevistamos se chama Myrelle Oliveira, de 22 anos, estudante de teatro, moradora da quebrada Jardim São Francisco, localizada na região do Guarapiranga, na zona sul de São Paulo. Ela nos contou que desde sempre seu cabelo já era cacheado e muito volumoso, e por isso exigia muito tempo e cuidado.

Segundo ela, mesmo com um cabelo bonito e saudável, por muitas vezes sua mãe não sabia como cuidar, por não ser um estilo tão conhecido como é hoje. “Naquela época ninguém falava de cabelo cacheado, crespo ou ondulado. Era só cabelo liso, padrão. Então ela [a mãe] tinha muita dificuldade”, explica a jovem.

Myrelle conta que devido a dificuldades como essa, desde seus 9 anos sua mãe passava produtos químicos para seu cabelo “abaixar”, perder o volume e textura natural. Conforme o tempo foi passando, ela aprendeu a passar chapinha em seu próprio cabelo e foi assim até seus 17 anos, alisando, pintando e passando outros tipos de produtos. Essa dinâmica que durou até seus 18 anos, tirou totalmente a saúde do seu cabelo natural e também um pouco de sua autoestima.

Depois de muito tempo, sua irmã, Mayara, começou a passar por um processo de entendimento pessoal, quando resolveu assumir seu cabelo natural, e isso fez surgir em Myrelle um desejo de pesquisar sobre métodos e formas de recuperar o tempo que passou química no cabelo.

“Até que um dia eu bati o martelo, eu queria mudar. Parei de passar química no meu cabelo, deixava vários meses sem nada, fazia tranças para ir a escola”, relata Myrelle, que começou a explorar na internet, redes sociais e vídeos no YouTube como fazer a tal transição capilar, até que em 2017, com 18 anos, parou de alisar o cabelo.

Durante esse período de transição, ela conta que começou a se sentir estranha em seus ciclos sociais, não se sentia bem, e sempre deslocada. Sentimento que surgia tanto na escola, quanto em outros espaços com amigos, por ser a única que estava sempre de trança ou com o cabelo totalmente preso.

Segundo ela, era um acúmulo de sensações, primeiro pela falta de informação, não saber qual creme passar, que shampoo usar, e também a insegurança de não se sentir bem consigo mesma. Tanto que demorou muito para ela conseguir sair na rua com o cabelo solto, processo que só aconteceu por conta de um exercício no curso de teatro, onde ela se desprendeu de seus medos e passou a se aceitar como é, e com o cabelo que tem.

“Há uma semana de fazer 20 anos, teve uma dinâmica no curso que eu precisava apresentar um personagem. E nessa construção da minha personagem, na minha cabeça ela tinha cabelo cacheado. Talvez foi um espelho da minha vontade que ainda não estava concreta, que era de soltar meu cabelo e entender que essa sou eu”, afirma Myrelle.

Ela reforça: “quem quiser me aceite, porque eu me aceito”, retomando sobre o significado desse momento da transição capilar, onde afirma ter se redescoberto.

“Foi um processo difícil por ter aberto mão de muitas coisas, queria ter registrado todo o processo. Mas me ajudou a me descobrir, me amar, não me arrependo nem um pouco”

afirma a jovem Myrelle.

Caroline Meneses, tem 21 anos e passou pela transição capilar aos 15 anos. Foto: Flávia Santos

Outra mulher de quebrada que conversou com o Desenrola foi Caroline Meneses, de 21 anos, cria do bairro Cidade Ipava, região do Jardim Ângela. Ela mora com seu pai e sua filha de 1 ano e conta que se reinventou após ter iniciado a transição capilar aos 15 anos, pois nesse mesmo período ela namorava uma pessoa branca e também com uma família branca.

“Aquilo me incomodava, só eu negra, todo mundo de cabelo liso. E quando era pra sair em família, eu inventava desculpa para não ir, mas nunca falava o motivo de fato”, relata Carol.

Depois de passar muitas vezes por essa situação, ela decidiu cortar seu cabelo por conta própria, pois toda vez que o molhava e passava o creme, via que ele formava cachos, isso a encorajava para poder aos poucos perder o medo de entrar em uma transição. Foi quando cortou toda a parte com química do cabelo, deixando menos de um dedo dos fios, o que trouxe ainda mais inseguranças, pois a vergonha que antes ela já tinha, aumentou.

“Pensei ‘o que fiz da minha vida?’, cortei porque na hora me deu coragem, mas foi só na hora. Depois me desanimei, porque não sabia como a sociedade ia reagir com uma negra de cabelo crespo, só sabia como era uma negra de cabelo pranchado”.

compartilha a jovem.

Carol conta que passou por inúmeras situações de racismo, desde sua infância na escola, até depois já mais velha, e isso a assustava. Essa era a causa de grande parte da sua insegurança e da sua vergonha de ter o cabelo tão curto e natural. Um reflexo disso é que mesmo depois de 6 anos desde que cortou o cabelo, às vezes se vê com um olhar de preconceito, por conta dos padrões impostos pela sociedade, conta ela.

“As pessoas falam pra eu alisar, pranchar, dando todas as opções para deixar ele liso, e por último me falam pra trançar. Não entendem a importância da transição. E pra mim, a importância da transição capilar foi me descobrir como mulher”, diz Caroline.

Ela concluiu seu relato contando como foi difícil o processo de transição capilar, e como ainda é, mesmo depois desse período, pois afirma que até hoje ainda coloca a sociedade e o que pensam sobre ela na frente do que deseja ou busca, processo que está aprendendo a lidar. Obstáculos como esses tornam a trajetória de jovens e mulheres mais difícil e frustrante.

“Vivia de toca, indo pra escola de blusa. Fazia chuva ou sol, eu estava com a cabeça coberta. Acho que foi uma das fases mais difíceis. Por isso até hoje de vez em quando me sinto mal, mas estou trabalhando nisso, para me ajudar a elevar a autoestima”

concluiu a jovem que segue buscando o fortalecimento da sua autoestima e autocuidado.

Conversamos também com a Tamires Aparecido, de 15 anos, moradora do bairro Jardim Aracati, na zona sul de São Paulo e estudante do ensino médio. Segundo ela, a relação com seu cabelo antes da transição sempre foi complicada, desde muito pequena, quando ainda não entendia o que era a saúde capilar e aceitação.

“Alguém da minha família praticamente me obrigou a passar química no cabelo, no início foi até bom, mas depois fui vendo e não fui gostando, passei a me sentir mal”, coloca a jovem que iniciou o processo de transição há um ano.

Segundo Tamires, o fato de se ver sempre diante de padrões colocados na sociedade, seja em um comercial de produtos para cabelo, nas redes sociais ou até mesmo em espaços de convívio no dia a dia, é o que mais a incomodava diante do seu cabelo e da sua aparência. 

“Pra mim ninguém tem que seguir um padrão. Cada um tem seu cabelo, às vezes você entra numa estética achando que vai se sentir bem, mas no fim acaba se sentindo mal”

coloca Tamires.

Tamires iniciou a transição aos 14 anos, e para ajudar nesse percurso começou fazendo tranças, para sentir aos poucos como esse processo funcionava. Mas apesar de ter dado esse grande passo, as incertezas e receios a intrigava muito por não saber se iria conseguir manter, chegar até o final e principalmente, se aceitar e se amar como é.

“Acho que minha saúde mental foi afetada um pouco, às vezes consigo me aceitar, às vezes não. Não só por conta do meu cabelo, mas pelo meu físico, meu jeito, do meu falar, do meu vestir. Às vezes me sinto muito insegura”, coloca Tamires.

A jovem usou em quase todo o período de transição, as tranças conhecidas como box braids, para a auxiliar no processo. Mas além de tudo, para a esconder de possíveis comentários maldosos que normalmente circulam.

“O padrão social me afeta muito. Por isso tenho as tranças e eu não quero tirar, é um escudo que uso para me proteger, fico pensando que se eu tirar as pessoas vão voltar a me zoar e isso vai me dar vários gatilhos”

relata a jovem que há um ano passa por esse processo de transição.

Tamires conta que apesar de ter sido e continuar sendo difícil todo esse caminho percorrido em busca de aceitação e desenvolvimento pessoal, se conhecer e ter consciência de sua identidade é totalmente crucial e libertador.

“A importância da transição não só uma questão de melhorar minha autoestima, mas de mostrar quem eu sou, mostrar minhas raízes, mostrar a minha identidade. Porque minha identidade é o meu caráter e também como as pessoas me veem”, conclui Tamires.

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