Com ou sem o apoio dos seus parceiros, elas relatam a rotina de trabalhar, fazer comida, lavar roupa, estudar e ainda cuidar sozinha dos filhos. E escancararam uma realidade: toda maternidade é solo.
O coronavírus e o home office trouxeram demandas que não estavam presentes na rotina de mães moradoras de Osasco. Esse é o caso da analista de recursos humanos, Nathalia Tittz, 28 anos, moradora do Jardim Bela Vista, em Osasco, e mãe de Sophia. Em março de 2020, ela recebeu a notícia de que a pandemia iria paralisar as atividades da empresa e o serviço passaria a ser remoto.
Recém-separada do companheiro e com uma filha de 1 anos e 6 meses, uma nova jornada se iniciaria: voltar para a casa dos pais e conciliar o home-office com os cuidados de Sophia.
Mesmo com a grande mudança de rotina, a Analista diz que estar dentro ou fora de um relacionamento, não foi um dos maiores impactos nesse período:
“Para ela (a filha), foi bem complicado. Para mim já não, porque normalmente os cuidados do filho sempre ficam para mãe, não tem meio a meio”
enfatiza.
A maior transformação que Nathalia teve foi a adaptação para o novo modelo de emprego. Ter a ajuda dos pais Isaura e Valdemir, e da irmã Aline, dentro da rede de apoio, foi muito importante para esse processo.
No entanto, as dificuldades são presentes: “Tem dia que eu tenho que sentar ela no meu colo, colocar o fone de ouvido nela, fone de ouvido em mim e tentar prestar o máximo de atenção possível no trabalho”, comenta.
Durante o ano de 2019, ela conseguia reservar um tempo maior para se dedicar aos estudos dentro da área de atuação e até sair com os amigos. Após o decreto da pandemia no Brasil em março de 2020, as coisas mudaram e o isolamento social fez com que ela se sentisse mais cansada.
Hoje, “falta pique” por conta da intensidade de todos os cuidados que acontecem dentro de casa. “A gente tem que ser professora, a gente tem que ser mãe, a gente tem que ser dona de casa e chega no final do dia, a gente não dá conta de quase nada”, relata ela.
Rosimeire Bussola, psicóloga especialista em saúde da família e integrante do coletivo PerifAnálise, focado em atender moradores periféricos e democratizar o acesso aos atendimentos clínicos, conta que as consultas cresceram na pandemia, mas as queixas de exaustão e dificuldades maternas permaneceram no mesmo patamar.
“A periferia já vivia os efeitos da pandemia em certa medida e as mulheres periféricas também. O desemprego, as dificuldades de acessar vagas em creches, escolas e ter as crianças em casa… A gente percebia que essas coisas já aconteciam”.
Analisa a psicóloga.
Para Nathalia, o aumento da carga de trabalho foi significativo, mas ela conseguiu enxergar aspectos positivos, como a economia do tempo gasto para ir até o serviço, ficar parada no trânsito e se arriscar pela contaminação. Além de acompanhar o crescimento da filha e aumentar os laços entre as duas.
Atualmente, a Analista anseia em não voltar para o escritório: “Mãe se habitua a tudo, se habitua ao momento, passa um tempinho que a gente fica com dor de cabeça e estressada, mas uma hora a gente se habitua aquilo”, afirma.
O lado b do home office
Essa é uma situação presente também na vida de Nathalia Jacob, 22, que também mora no Bela Vista, região de Osasco. Ela trabalha com atendimento em telemarketing, é mãe da Eloah de 3 anos e não quer voltar ao presencial pela praticidade; o que não anula as dificuldades para conciliar o emprego com a maternidade.
Ela mora junto com o companheiro, Leonardo Pignatari, 23. Ele possui 3 empregos: trabalha como motoboy autônomo em uma doceria de tarde, à noite faz entregas para uma lanchonete de cachorro-quente e faz bicos consertando computadores e videogames.
Por conta da rotina do companheiro impactada pela tripla jornada de trabalho, todos os cuidados com a filha e tarefas domésticas permanecem com ela e foram transformados com o home office: “É uma bagunça. É difícil para a Eloah entender que eu tive que trazer o meu trabalho para dentro de casa”, conta ela.
Para Thaiz Leão, mãe de Vicente de 8 anos, co-fundadora do projeto “Segura a Curva das Mães” e do Instituto Casa Mãe que visam mapear mulheres em vulnerabilidade social e custear gastos com a alimentação e necessidades básicas, é justamente por ter que dar conta de tudo, que o conceito de maternidade solo não se limita apenas às mães que não estão dentro de um relacionamento, ela se expande para todas.
“A maternidade é solo e a gente vive num espectro de maior ou menor cuidado, maior ou menor apoio”
relata a especialista. Para ela, até quando existe a presença de um companheiro, não necessariamente esse espectro se altera para uma relação de maior apoio e cuidado.
Os motivos para essa relação não se alterar, são amplos. Geralmente ligados ao mercado de trabalho como no caso de Nathalia, ou por questões estruturais que envolvem o “papel” da mulher e do homem na sociedade. “Se cobra da mulher se responsabilizar por ele também”, expõe Thaiz.
Um levantamento feito pelo IBGE em 2019, aponta que as mulheres gastam em média quase 11 horas a mais por semana que os homens em tarefas domésticas.
Dados de 2021 endossam as desigualdades sociais relatando que mulheres ricas (que pertencem ao grupo equivalente a 20% da população brasileira de maior renda) gastam em média 18 horas por semana cuidando de outras pessoas ou realizando afazeres domésticos.
Enquanto isso, as mulheres que estão entre os 20% de menor rendimento, dedicam 24 horas semanais a essas mesmas atividades.
Outro impacto que a atendente teve, foi psicológico. Trazer o trabalho para casa trouxe também mais frustrações. “Antes você saia da empresa e deixava os seus problemas lá. Agora, como você deixa? O estresse que eu ficava eu acabava descontando no Leonardo, não tendo paciência com a Eloah”, relata.
Impactos psicológicos
Problemas psicológicos para lidar com essas transformações foram recorrentes na adaptação de Thamires Rodrigues, 20 anos, professora de inglês e moradora do bairro Jardim Roberto, em Osasco. Mesmo sem filhos, ela desenvolveu Síndrome de Burnout, um distúrbio ligado à exaustão pelo excesso de trabalho.
“Eu trabalhava de segunda a segunda e quando eu não estava trabalhando, eu estava pensando em trabalho”
relembra Thamires, que precisou fazer tratamento terapêutico para enfrentar o problema.
Por conta da síndrome, ela acreditava que o home office seria impossível. Agora, enxerga uma possibilidade maior de rendimento e vantagens ao levar em consideração o tempo gasto no transporte e o alcance de pessoas. “Parece muito mais prático, tanto para minha rotina quanto para os meus alunos”, diz.
Assim que conseguiu lidar melhor com o problema, os abismos que separam a realidade de Thamires com Nathalia Tittz e Nathalia Jacob, ficaram mais transparentes: sem ter que cuidar de outra pessoa, todo o tempo livre que sobra do serviço, é para cuidar integralmente de si.
As realidades relatadas pelas moradoras estão presentes também nas pesquisas do Google. Segundo dados da plataforma Google Trends, houve uma ascensão de procura pela palavra “autocuidado” em julho de 2020. Pela primeira vez em cinco anos, o termo teve um pico de 90 pontos. Isso demonstra que por conta do isolamento social, as pessoas procuraram se informar sobre o assunto. Após mais de um ano da pandemia, em julho de 2021, a palavra ainda varia com picos de 90 pontos.
Ao fazermos um recorte para o estado de São Paulo, as pesquisas e assuntos relacionados mostram que essas pessoas também procuraram se informar sobre: cuidados pessoais, saúde, educação à distância e até cursos sobre autocuidado.
Fazer um chá, sentar e esperar ele ficar pronto com calma, é algo possível dentro da rotina de Thamires. Para ela, autocuidado não está relacionado à estética, está ligado a desacelerar e quando possível, aproveitar algum momento fora de casa, já que atualmente, o lar remete ao trabalho.
A realidade das mães é um pouco diferente. Para Nathalia Tittz, infelizmente esse autocuidado não é possível. Sair é bem complicado e se divertir em casa também, por conta do cansaço.
Para Nathalia Jacob, sair sozinha com os amigos é raro desde o nascimento da Eloah e realizar alguma tarefa cotidiana com calma é difícil. Para elas, fazer algo para si de forma desacelerada como lavar o cabelo ou assistir uma série, é no momento que as filhas dormem.
Danielle Braga, psicóloga e integrante do PerifAnálise, conta que para algumas mulheres foi possível trazer o trabalho para dentro de casa, pois já era cotidiano de certas realidades.
“Para as mulheres periféricas, não tem uma grande divisão ser mãe, trabalhadora e doméstica. Está tudo num balaio só, nas costas delas”
comenta a psicóloga.
Ela diz que o home office já era uma cultura histórica na vida das mães moradoras de periferia, mas não com esse termo, pois a própria palavra estrangeira se torna excludente. A psicóloga exemplifica essa realidade ao relembrar a trajetória das costureiras, por exemplo. Que adotaram essa profissão para poder ficar em casa, cuidar dos filhos e dar conta de tudo.