Em 2023, a emenda constitucional criada para “estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais”, completa 10 anos. Ao longo desse tempo e com a criação de leis complementares, como a de nº 150 de 2015, trabalhadores domésticos passaram a ter direito a benefícios básicos como FGTS e seguro desemprego. Ainda assim, na prática, a rotina de muitas trabalhadoras domésticas ainda demonstra a necessidade de mudanças.
“Eu era cozinheira, babá, arrumadeira, era tudo, isso me sobrecarregou. Aí eu comecei a sentir dor no joelho e descobri que estava com tendinite”, conta a trabalhadora doméstica, de 50 anos, moradora de Osasco, na região metropolitana de São Paulo. A entrevistada, que preferiu não se identificar, trabalha como empregada doméstica há mais de 30 anos.
“Fiz fisioterapia [e] tratamento, ainda trabalhando, e hoje meu joelho está com desgaste total. Meu caso é cirúrgico, tenho risco de pôr uma prótese e tudo isso foi pelo esforço em casa de família”
Trabalhadora doméstica que preferiu não se identificar, tem 50 anos, mora em Osasco e trabalha como doméstica há mais de 30 anos.
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Além do impacto na saúde, a moradora de Osasco conta que possui uma jornada diária de trabalho inconstante, onde começa a trabalhar às 7:40 da manhã, mas não tem horário definido para ir embora. Ela conta que trabalha de segunda a sexta e que seu registro na carteira de trabalho aconteceu em 2018, momento no qual passou a receber vale transporte, férias e 13º salário.
Segundo a cartilha “Trabalhadores domésticos: direitos e deveres”, que conta com as alterações da Lei Complementar nº 150, de 1º de junho de 2015, produzida pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, considera-se empregado doméstico aquele maior de 18 anos, que presta serviços de natureza contínua, subordinada, onerosa, pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 dias por semana.
Confira aqui a cartilha completa
Outro contexto que atravessa a realidade de trabalhadoras domésticas, principalmente moradoras das periferias, é o fato de se sentirem desamparadas e desvalorizadas. Além de situações de abuso psicológico que são silenciadas pela necessidade da continuidade no emprego.
“Eu tinha deixado a louça por último e não lavei porque tinha passado do meu horário. O apartamento era muito grande, nesse dia eu limpei toda a casa e as geladeiras. Me chamaram a atenção por não ter lavado a louça, logo depois de ter ficado um dia inteiro na casa dela que media mais de 150 metros quadrados”, conta a trabalhadora doméstica, de 28 anos, que preferiu não ser identificada.
Atualmente a profissional trabalha como faxineira para pagar os estudos no ensino superior. Ela conta que devido ao fato de ter começado a trabalhar há um pouco mais de 1 ano nessa residência, mesmo com a frequência de cinco vezes por semana, até o momento ainda não foi registrada e não possui nenhum tipo de benefício trabalhista.
“Eu sempre quis trabalhar na área de enfermagem, mas não tive a oportunidade. Só estudei até a 8ª série por ter começado na casa de família cedo e não tive mais como estudar. Hoje não sei se tenho mais saúde e cabeça, mas quem sabe. Nunca é tarde para recomeçar”, compartilhou a trabalhadora, de 28 anos, que não quis se identificar.
Alguns dos relatos trazidos pelas trabalhadoras são semelhantes, como a ausência de benefícios trabalhistas que possibilitem uma jornada condizente com seus direitos, evitando problemas físicos e mentais a longo prazo.
“Todos meus problemas de saúde nasceram a partir do trabalho pesado como doméstica. Minha vida mudou e eu já não sou mais a mesma”
Trabalhadora doméstica que preferiu não se identificar, tem 50 anos, mora em Osasco e trabalha como doméstica há mais de 30 anos.
Outra profissional que também preferiu não se identificar, conta que passou a apresentar problemas de saúde aos 35 anos, quando já atuava como trabalhadora doméstica.
“Hoje eu tenho 47 [anos], trabalhei mais de 10 anos [como doméstica] mesmo com as dores. Eu pago INSS, dei entrada para tentar o benefício, não consegui. Fui recusada e eles disseram que eu sou nova e posso muito bem trabalhar. Agora estou sem benefício e sem trabalhar”, relata a trabalhadora, de 47 anos, que mora no distrito do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo.
A morada do Jardim Ângela precisou se afastar do trabalho em 2022, devido complicações na saúde causadas pela fibromialgia e ansiedade. Ela conta que foi registrada pela primeira vez há mais de 18 anos, onde naquele tempo recebia em torno de R$ 400,00 trabalhando todos os dias na semana e em uma época onde as trabalhadoras domésticas não possuíam direitos trabalhistas. Antes de ser afastada ela não trabalhava de carteira assinada, pois já sentia sua saúde frágil e imaginava ter que parar em breve.
Garantia de direitos
Na cartilha “Trabalhadores domésticos: direitos e deveres”, produzida pelo Ministério do Trabalho e Previdência Social, consta alguns dos direitos dos trabalhadores domésticos, como: 13º salário, remuneração do trabalho noturno, jornada de trabalho, remuneração do serviço extraordinário, repouso semanal remunerado, feriados civis e religiosos, férias, licença à gestante, auxílio-doença, entre outros.
Segundo Nataly Ramos, pesquisadora do eixo Trabalho no CEP (Centro de Estudos Periféricos), a PEC das Domésticas foi e é importante para a garantia de direitos, mas aponta que ainda existem muitas dificuldades nas condições de trabalho de empregadas domésticas.
“No mundo, o trabalho doméstico nunca foi considerado trabalho. Mas aqui no Brasil tem essa particularidade histórica de ser um país colonial e escravagista”, aponta a pesquisadora.
Para Germânia Pinheiro, psicóloga e pós-graduada em psicologia junguiana, muitos sinais físicos que o corpo apresenta tem relação direta com a saúde emocional que precisa ser olhada.
“Muitas vezes até mesmo pela carga horária, pela pressão, pela necessidade, acabam não prestando atenção nos sinais que o corpo envia. Ou seja, dores de cabeça, nas pernas, no estômago, com frequência são compreendidas como normais, mas não são”, aponta a psicóloga, que afirma ser nesses momentos que a saúde mental está pedindo socorro.
A psicóloga também afirma que se, ao longo do ano, essas profissionais fossem acolhidas e orientadas com campanhas, projetos e iniciativas do próprio poder público, o cenário poderia ser outro.
“É uma iniciativa que deveria vir do poder público, de fazer conscientização e trazer essa responsabilidade para os patrões, até mesmo para que essas mulheres se sintam confortáveis para buscar esse suporte”, aponta a psicóloga.
Luiza Batista Pereira, que é trabalhadora doméstica já aposentada e Coordenadora Geral da Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas), coloca que a maior parte das trabalhadoras domésticas são mulheres negras, periféricas, de baixa renda e sem escolaridade. Fator que socialmente reforça a desvalorização dessa função.
“A desinformação contribui muito para que as trabalhadoras não tenham acesso aos seus direitos previstos em lei. Então a importância delas conseguirem esse acesso é terem a perspectiva de saber que estão sendo alcançadas. É uma luta gigante, mas é isso que nos dá força para continuar”, afirma Luiza.
A pesquisadora do eixo Trabalho no CEP (Centro de Estudos Periféricos), Nataly Ramos, reforça que “as pessoas precisam entender que o trabalho de cuidado é essencial e que elas podem limpar a sua própria sujeira e fazer sua própria comida. Se o mundo capitalista não permite que a gente tenha horários disponíveis pra fazer isso, que a gente pense em formas de trabalhar menos e coletivizar esse trabalho”, concluiu.