Entrevista

Especialista fala sobre consumo de PANCs e segregação alimentar nas periferias

Sabrina Leite relaciona o uso de plantas alimentícias não convencionais à segurança alimentar e aponta como a indústria estimula o consumo de ultraprocessados.
Edição:
Evelyn Vilhena

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Taioba, peixinho, dente de leão, trapoeraba zebrina, azedinha, begônia, hibiscos, cambuquira, brilhantina, açafrão, cúrcuma e ora-pro-nóbis são algumas PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais) que podem contribuir com uma alimentação saudável, de qualidade e variada, é o que aponta Sabrina Leite. Cozinheira e cientista social, Sabrina associa a utilização das PANCs aos cuidados com a saúde e pontua como a indústria alimentícia prejudica essa relação.

Moradora do bairro Vila Aurora, no distrito do Jaraguá, zona norte de São Paulo, a cozinheira aborda a alimentação como uma ferramenta de mudança social. “Trazer a utilização integral dos alimentos e de PANCs é trazer [a discussão do] direito à alimentação. [No sentido] das pessoas entenderem e reivindicarem o quão é direito delas terem acesso à uma alimentação variada que vai nutri-las, [para] que possam desfrutar de uma velhice saudável, [sem] ter doenças construídas ao longo da vida por déficit nutricional”, coloca.

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Embora para algumas pessoas o termo PANC seja recente, a utilização dessas plantas atravessa gerações. Sabrina cita que, a depender do contexto, esse consumo passa a ser associado à escassez, mas ressalta a relação de proximidade desses alimentos.“Esse modo de se alimentar partia dos nossos avós”, menciona. 

Sabrina afirma que existem diferenças no modo de se alimentar se comparado ao dos nossos ancestrais por conta da introdução dos ultraprocessados. “Mas a alimentação baseada no feijão, na farinha, muitas pessoas continuam se alimentando dessa forma e isso é bom, porque são alimentos in natura. O que a gente não pode romantizar é o cerceamento da alimentação por esses alimentos. Não continua tendo uma diversidade, a pessoa está se alimentando da farinha, do feijão porque é o que ela tem para se alimentar”, diz. 

“Por exemplo, os negros escravizados sequestrados de África, que se alimentavam basicamente da farinha e do feijão, se alimentavam dessa forma porque não havia possibilidade de ter uma variedade alimentar, era fome mesmo. Eles não tinham possibilidade de fazer um roçado, de plantar outras coisas. Inclusive quando as plantações de cana [e] algodão aumentavam, a fome também aumentava, porque diminuía essa parte física de terra de plantio [do alimento]”, coloca Sabrina.

“A memória que algumas pessoas têm desse tipo de alimentação é muito dolorida, e para elas, ter a possibilidade de se alimentar de arroz, feijão e carne, sendo a carne o principal alimento dentro da refeição, é algo muito significativo. [Isso] significa que elas conseguiram melhorar de vida”.

Sabrina Leite, cozinheira e cientista social.
No Brasil, em 2023, cerca de 27,6% (21,6 milhões) de casas estavam em situação de insegurança alimentar, de acordo com a pesquisa realizada pelo IBGE em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Segundo a cientista social, a separação de quem come determinado alimento é reforçada pela construção de um imaginário sustentado e espalhado pela publicidade utilizado pela indústria alimentícia. Ela também aponta que a periferia é o público-alvo quando se trata de incentivar o consumo de alimentos ultraprocessados. 

“Até mesmo as frutas para as crianças que vêm da periferia [têm um significado]. Às vezes a criança tem vergonha de levar uma banana para a escola, porque a banana não representa o mesmo status que um biscoito recheado.”

Sabrina Leite, cozinheira e cientista social.

Sabrina ressalta que a indústria não é responsabilizada pelos danos que a alimentação ultraprocessada causa à saúde da população, tendo inclusive isenção de impostos que auxiliam na produção desses alimentos.

Embora haja esforços por políticas públicas de incentivo à alimentação saudável, principalmente através da luta popular e de organizações sociais, ela destaca que ainda há muito a ser conquistado. “Falar de políticas, cada vez mais dentro desse processo de pressionar para que essas políticas de incentivo à alimentação saudável aconteçam [e] a população esteja cada vez mais ciente de que é só a pressão social que vai fazer com que essa realidade se transforme”, coloca.

Alimento como mercadoria

Para a cozinheira, o consumo de alimentos in natura é direcionado para uma determinada classe social que pode escolher ter um estilo de vida a partir do que come. “O alimento está sendo utilizado como ferramenta de segregação e diferenciação social. Quem é que tem [tido o] direito ao alimento fitness, a fazer exercício e a comer saudável? Não é a quebrada”, afirma Sabrina.

Ela reforça que as PANCs são fontes de vitaminas, minerais, fibras e antioxidantes, e que cascas, talos, sementes, folhas, raízes, flores e caules servem como um acréscimo na alimentação. “Com elas a gente consegue fazer geleias, refogados e muitas [outras] opções”.

“A utilização integral dos alimentos pode ser feita a partir da observação e da reavaliação do que a gente enxerga como lixo. Muitas vezes a gente enxerga que só a polpa da melancia é comestível e a casca joga fora. Quando eu penso dessa forma eu não só estou jogando ingredientes, mas também jogando dinheiro fora”, comenta.

A cientista social afirma que é possível fortalecer a segurança alimentar com o incentivo ao consumo integral dos vegetais e das PANCs, mas reforça que “não tem como as pessoas ressignificarem a forma de se alimentar se não for pelo direito”, ao apontar o papel das políticas públicas nesse debate. 

Ela também coloca que em muitos casos as pessoas não alcançam o conhecimento sobre a possibilidade de consumir uma PANC ao invés de um ultraprocessado, o que também se relaciona com a perda de autonomia. 

“Não é só a questão de utilizar PANCs e a utilização de alimentos integralmente, mostrar como faz ou quando isso pode ser benéfico. Porque isso as pessoas simplesmente podem dar um Google e acessar. Mas como que a gente pode utilizar esses alimentos como ferramenta para falar de acesso à direito, falar de políticas públicas, de exploração do trabalho, de diversas informações que não chegam”, ressalta Sabrina.

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