Glabia Soraia Andrade Silva, de 45 anos, confia na ciência. Mesmo assim, a família dela está com a vacinação atrasada. O filho mais novo, de 9 anos, tem asma e, por isso, a mãe ficou receosa de que ele se infectasse na ida à unidade básica de saúde (UBS) em plena pandemia. Hoje, o caçula e a filha do meio, de 16, precisam atualizar a caderneta. Entre as pendências, estão as proteções contra gripe, Covid-19 e HPV.
“No meu caso, eu não fiquei com medo da vacinação em si, mas da quantidade de pessoas circulando e que poderiam transmitir outros vírus”, garante Glabia, que mora na periferia da zona Noroeste de São Paulo. Profissionais de saúde do posto que abrange a casa dela já mandaram mensagens pelo WhatsApp convocando a educadora, que pretende voltar à UBS o quanto antes.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Cadastre seu e-mail e receba nossos informativos.
O caso de Glabia não é isolado.
Na capital paulista como um todo, a maioria das vacinas previstas na cobertura básica está com taxas abaixo da meta de imunização. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Prefeitura de São Paulo, no segundo trimestre de 2023 apenas a BCG (que protege contra a tuberculose) atingiu o objetivo de imunizar mais de 90% do público-alvo. Confira na tabela abaixo.
Em âmbito nacional, o número de crianças que não receberam nenhuma dose da vacina pentavalente (contra difteria, tétano e coqueluche) caiu de 710 mil para 430 mil, entre 2021 e 2022, com avanço de 5 pontos percentuais na cobertura vacinal, que chegou a 84%. Para a vacina contra a pólio, o aumento da cobertura foi de 6 pontos percentuais no período, indo para 77%. Já a cobertura vacinal contra o sarampo atingiu 81% – superior à cifra de 73% em 2021, mas aquém dos 91% de 2019.
De acordo com especialistas, vários fatores explicam a baixa cobertura vacinal. Um deles é a sobrecarga nos serviços de saúde durante a pandemia, quando as equipes priorizaram o combate à Covid-19. A ideia de que as unidades seriam ambiente propício para infecção do vírus desconhecido também contribuiu para afastar o público.
Outro elemento que impactou negativamente a confiança da população nos imunizantes foi a campanha de desinformação que desacreditou a eficácia da vacina contra a Covid-19, liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Mesmo depois de um ano de controle da Covid, a cobertura vacinal não melhorou muito – e esse é um detalhe importante. Não tem mais a ver com a dificuldade para que familiares consigam buscar as unidades, mas com esse movimento de negacionistas que começaram a botar medo, de que ia ter problema de reação [adversa], etc.”, observa o médico sanitarista Jorge Kayano, pesquisador do Instituto Pólis e integrante da Rede Nossa São Paulo.
Dose a menos
Glabia nota um enfraquecimento das campanhas de imunização desde o governo de Michel Temer (MDB). Durante a gestão foi aprovado o teto de gastos (Emenda Constitucional n.º 95/2016), que limitou os investimentos públicos federais pelo período de 20 anos, incluindo medidas de conscientização. A educadora sugere que o poder público adote medidas como a vacinação em espaços abertos, reduzindo o risco para crianças com maior vulnerabilidade, como é o caso de seu filho.
Como trabalhadora da educação, ela percebe ainda uma falta de sintonia entre diferentes órgãos para monitorar crianças e adolescentes com a caderneta atrasada ou para facilitar o acesso das famílias em dias e horários alternativos aos das UBS. As unidades de saúde geralmente funcionam de segunda a sexta-feira, entre 7h e 19h, quando muitas pessoas estão trabalhando.
As aulas de Ciências de Djalma Sobral, 56, se tornaram estratégicas para desmentir mensagens enganosas. O professor leciona em escolas municipais e estaduais do Jardim Ângela e Capão Redondo (zona Sul de São Paulo) e observa que muitas famílias alegam falta de tempo para levar as crianças para tomar a vacina. Ainda assim, um grupo menor aponta a desconfiança com os imunizantes.
O boca-a-boca ainda faz a diferença para quem circula pelos territórios.
“Acho que deveria ter mais informação para a população aderir à vacinação. Temos as fake news que acabam atrapalhando atingir o público-alvo, principalmente da periferia, que se sente excluído da verdade”, reflete Genésio da Silva, 54, que é conselheiro gestor da AMA UBS Jardim Capela, da Supervisão Técnica em Saúde M’Boi Mirim e de outros equipamentos de saúde da zona Sul de São Paulo.
Mais do que fiscalizar os serviços, Genésio é a ponta de contato entre a comunidade e as unidades. Além de confirmar ou desmentir mensagens que a população recebe, também encaminha demandas como a vacinação a domicílio, especialmente para pessoas idosas e com deficiência. “Após nosso questionamento com a UBS, tivemos mais êxito para chegar até a população local”, garante.
Cobertura desigual
Apesar de o Brasil já ter sido considerado modelo ao redor do mundo por conta do Programa Nacional de Imunização (PNI), a realidade nas diferentes regiões do país é muito contrastante. Com a pandemia e o “jogo contra” do governo Bolsonaro, ficou evidente uma situação de desigualdade vacinal.
O relatório “Desigualdade no acesso a vacinas contra a Covid-19 no Brasil”, publicado em novembro pela Oxfam Brasil, aponta que 35 milhões de pessoas não têm acesso a um posto de saúde no país.
Com cerca de 687 mil mortes causadas pela Covid-19 até outubro de 2022, o país era superado apenas pelos Estados Unidos no número total de óbitos nas Américas. No continente, o coeficiente de mortalidade (323,31 óbitos por cada 100 mil habitantes) só foi menor que o do Peru. Ainda assim, no período analisado, o Brasil figurava apenas em 15º lugar no ranking de países americanos em cobertura vacinal primária: apenas 78% da população com mais de 3 anos já havia completado o ciclo de imunização.
A falta de acesso a um posto de saúde e a existência de unidades sem equipamentos ou profissionais são reflexos da desigualdade sanitária, causada por uma conjunção de fatores socioeconômicos, territoriais, de gênero e étnico-raciais. Com o segundo maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Estado de São Paulo foi o único a superar a meta vacinal, com 91% da população prioritária imunizada contra Covid-19 no período analisado.
Na cidade mais rica do País, a Prefeitura propagandeia São Paulo como a “capital mundial da vacina”. Mais de 12,3 milhões de pessoas tomaram a primeira dose contra a Covid-19, enquanto 11,7 milhões tomaram a segunda dose. Isso leva a um índice de mais de 100% da população elegível imunizada, o que indica que residentes de outros municípios se locomoveram até a capital para se vacinar.
Porém, a taxa cai significativamente quando considerada a dose de reforço bivalente aplicada a partir de fevereiro de 2023, como mostram os números abaixo.
Para ampliar a cobertura, de 17 de julho a 31 de agosto de 2022, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de São Paulo, criou postos de vacinação contra Covid-19 e também contra o vírus influenza da gripe em terminais de ônibus, estações de trem e metrô. Mais de 112 mil doses foram aplicadas com essa estratégia.
Em relação às vacinas infantis previstas no calendário de imunização, a assessoria de imprensa da SMS afirma que tem investido em divulgação constante sobre a segurança e eficácia dos imunizantes. Também atua na busca ativa por agentes comunitários de saúde (ACS), que trabalham nas 470 UBS do município.
Nas escolas municipais, as famílias receberam no início do ano a Declaração de Vacinação Atualizada (DVA). Responsáveis pelas crianças devem levar o cartão à UBS de referência para atualização e preenchimento da caderneta, que deve ser devolvida à unidade escolar. Após análise conjunta pela SMS e Secretaria Municipal de Educação (SME) de São Paulo, outras estratégias combinadas são realizadas, como a busca de estudantes que não entregaram a DVA e a vacinação nas escolas com baixa devolução do documento.
Em nível federal, o Ministério da Saúde escalou a apresentadora Xuxa para aparecer nas campanhas pela multivacinação ao lado do mascote Zé Gotinha
É preciso avançar
O médico Jorge Kayano indica que a estratégia adotada pela Prefeitura paulistana é similar ao orientado pelo Ministério da Saúde, que incentiva a busca ativa de famílias com crianças que estejam com a vacinação atrasada. Ao cruzar as informações no banco de dados, as equipes das UBS conseguem identificar, entrar em contato com responsáveis e, se for o caso, agentes comunitárias de saúde visitam essas casas.
Kayano ressalta que a medida é importante, pois as pessoas de fato podem se esquecer da vacina. Porém, é necessário ir além. O sanitarista reforça que é preciso criar alternativas para que as pessoas consigam se imunizar, com espaços de vacinação em parques, shoppings e locais de trabalho, inclusive à noite e aos finais de semana.
“Com esse problema do desemprego, muita gente tem o maior medo de faltar ou acabar tendo problema no trabalho por levar criança para tomar vacina”, salienta Kayano.
Ao mesmo tempo, é importante combater a desinformação na internet, inclusive com punição e bloqueio a quem propaga fake news sobre vacinas. “[A desinformação] pode custar muito caro para as crianças. Se tiver algum surto de doenças que poderiam estar sendo prevenidas por vacinas, a coisa pode ‘pegar’ muito sério”, diz ele.
E por fim, Kayano defende uma campanha de educação permanente que envolva toda a sociedade para reforçar a importância das vacinas. “Essa é a primeira geração de pais que não conhecem as doenças, porque estão vacinados contra elas. E aí, [como estão protegidos] fica a impressão de que a vacina não tem tanta importância”, diz ele.
Enquanto isso, a Covid-19 ronda o mundo: a variante éris, identificada primeiramente na Europa, já circula pelo Brasil. Apesar de ser considerada menos letal que as demais, a nova cepa pode ser mais contagiosa.
E você, está com a vacinação em dia?
Essa reportagem faz parte da ação da Oxfam Brasil sobre desigualdade no acesso a vacinas. Mais informações em http://www.oxfam.org.br/vacina-e-desigualdades.