“A gente ficou 40 anos proibidas de jogar”: Maria Amorim propõe reparação histórica para o futebol feminino

Maria Amorim, moradora de Parelheiros, destaca a importância da presença da periferia na construção de estratégias para viabilizar o acesso de meninas ao futebol feminino profissional.
Edição:
Ronaldo Matos

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Para além dos resultados obtidos com a bola em campo, a Copa do Mundo Feminina, 2023, explicitou as diferentes e acentuadas dificuldades e desigualdades que os times femininos, ainda hoje, enfrentam. “O futebol feminino profissional quanto a investimento, não está nem 1% comparado com o masculino”, afirma Maria Amorim, 38.

Apaixonada por futebol, Maria é uma mulher preta, cearense, periférica, mãe do Lucas, de 18 anos, da Ana, de 13, e companheira do Beto. Ela é moradora de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, joga futebol desde criança e como educadora social viabiliza que meninas e mulheres da periferia pratiquem esse esporte, que frequentemente é dito como masculino.

Moradora de Parelheiros, além de jogadora, Maria também é ativista em defesa do futebol feminino (foto: arquivo pessoal)
Moradora de Parelheiros, além de jogadora, Maria também é ativista em defesa do futebol feminino (foto: arquivo pessoal)

“Eu diria que [sou] ativista da modalidade feminina, sempre buscando ocupar lugares majoritariamente masculinizados, que nunca sonhou em ser jogadora profissional, mas que sempre teve dentro de si a luta pela modalidade, que decidiu brigar por esses espaços, que não é só meu, mas de todas as mulheres que querem jogar e praticar futebol independente de se profissionalizar ou não”.

Maria Amorim. educadora social de Parelheiros.

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O futebol de várzea, predominante nas periferias, é a principal área de atuação de  Maria. Ela é fundadora, junto com seu companheiro Beto, do time Apache Feminino e da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros, que reúne 110 equipes. Maria também é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos. Em 2019, ela criou e hoje conduz o projeto FutVida, que insere crianças de 6 a 15 anos no esporte.

As treinadoras, Maria Amorim e Cecília Bringel, e as crianças do projeto FutVida (foto: arquivo pessoal)

Futebol de base: peneira e investimento

No entanto, Maria também contribui com perspectivas sobre o futebol feminino profissional, somando com as visões e as realidades que há nas periferias. “O futebol feminino hoje, falando desde o profissional, que respinga no amador, eu acho que tem muito uma [questão de] reparação [histórica], né? A gente ficou 40 anos sem jogar futebol, 40 anos proibidas de jogar.” a educadora traz um contexto histórico e desdobramentos atuais sobre o assunto.

“A Federação [Paulista de Futebol], recentemente, criou a peneira sub 17. Isso é muito bom, porque na minha época não tinha peneira. Uma peneira sub 17 da Federação oportuniza as meninas a participarem e [serem visibilizadas e analisadas pelos] responsáveis de clubes. Só que tinha uma questão muito forte, que era o atestado médico”, menciona a treinadora.

Maria também relata sobre uma constatação que ela expôs em uma reunião, que ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), solicitada pela Deputada Leci Brandão, em defesa do futebol feminino, que reuniu integrantes do futebol de várzea, do profissional e a ex-coordenadora da Federação Paulista de Futebol, Thais Picarte, em 2022.

“Na minha fala, eu trouxe que entendo totalmente que o atestado médico seja necessário, mas a forma como ele é pedido é muito burocrático. Uma mãe de Parelheiros não vai faltar um dia de trabalho, para levar a menina ao médico, para conseguir um atestado.”

Maria Amorim, fundadora da Liga Feminina de Futebol Amador de Parelheiros.

Ela ressalta que a demora para ter atendimento é outro problema que surge ao levar meninas ao médico, no SUS, para conseguir o atestado médico. “Para ter esse atestado, o médico vai pedir exames. Então, estava tendo menos meninas pretas nas peneiras. E aí, eu trouxe essa reflexão: onde é que estão as meninas pretas? Na periferia, esse caminho para a menina chegar até à peneira é muito longo.” complementa.

Maria acrescentou também, nesta reunião, que uma realidade recorrente nas periferias é a situação das mães solos, que não podem arriscar a fonte de renda da família, faltando ao trabalho, para acompanhar as filhas nesses processos. Ela destacou e reivindicou que, “as instituições, a confederação têm que achar um caminho”.

Reunião na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) realizada em 2022, em defesa do futebol feminino. (foto: arquivo pessoal)

As colocações da educadora social trouxeram resultados. “Esse ano de 2023, na própria peneira, eles colocaram um médico à disposição, então a menina podia ir sem um atestado médico, lá passava pelo médico da Federação e fazia o atestado na hora. Então, já foi uma possibilidade que encurtou muito o caminho das meninas”, conta Maria.

Apesar da conquista, iniciativas e dos demais feitos realizados, a educadora social diz que se preocupa muito com o cenário do futebol feminino devido à falta de valorização. “Na periferia tem muita menina boa de bola. Então, qual seria o futuro ideal para o futebol feminino? Clubes grandes, instituições como a Federação, olhar para o futebol feminino e implantar projetos, fazer parcerias com projetos já existentes”, sugere Maria. Ela menciona que o ideal é ter investimento e suporte para que no futuro essas meninas sejam selecionadas para jogar profissionalmente.

“Hoje, cada clube profissional só tem um time feminino, porque é obrigatório, ou seja, se vai participar de uma Libertadores, se o clube tá dentro da Conmebol, ele precisa ter um time feminino. Por isso que os grandes clubes têm, porque senão, não tinha”

Maria Amorim é técnica e diretora do time masculino Onze Veteranos.

Em contrapartida, a educadora social, através do projeto FutVida, busca aproximar e tornar possível o acesso de meninas e adolescentes, dos bairros Jd. São Norberto e Nova América, na zona sul de São Paulo, ao futebol. “A gente que é de periferia, quando decide montar um projeto e trazer as meninas para o esporte, a gente tem que buscar estratégias para que ela continue praticando, juntamente com a família”, argumenta a educadora, mencionando que é preciso fortalecer os vínculos com os pais como um caminho para tornar esses processos colaborativos, a fim de criar redes de apoio para as meninas que sonham em jogar futebol.

“Tem um ditado africano que a gente leva muito pra vida [que diz], ‘que é necessário toda uma aldeia para cuidar e educar uma criança’. E é isso que a gente faz com os nossos movimentos. A gente precisa estar junto. A gente precisa fazer essa construção coletiva”, conclui Maria.

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