Comunidades virtuais formadas por crianças e adolescentes têm reduzido drasticamente o convívio presencial e coletivo nas periferias e favelas, impactando a existência de brincadeiras como a cultura de empinar pipa.
“É época de pipa, o céu tá cheio, 15 anos atrás eu tava ali no meio”, canta Mano Brow na icônica música ‘Fórmula Mágica da Paz, a faixa 11 do disco Sobrevivendo no Inferno, lançado em 1997, considerado um dos principais trabalhos artísticos do Racionais Mc´s.
Quase três décadas depois do lançamento desta música que provocou uma série de reflexões sociais e políticas nos próprios moradores sobre o impacto da violência policial no cotidiano das periferias e favelas do Brasil durante a década de 90, muitos aspectos daquela época ainda permanecem atuais, como por exemplo o genocídio da juventude negra.
Além de narrar o contexto sobre a violência urbana vivenciada principalmente nas periferias e favelas da zona sul de São Paulo, como nos territórios do Capão Redondo e Jardim São Luís, a música Fórmula Mágica da Paz também descreve a marcante cultura de soltar pipa, uma brincadeira simples, comum e presente na vida das crianças, jovens e adultos da quebrada que enchiam os céus das periferias, até a popularização do acesso ao celular.
Observar os céus das periferias e favelas de São Paulo durante as férias escolares que acontecem nos meses julho, dezembro e janeiro, e vê-lo vazio, com poucos ou nenhum pipa no ar tem sido doloroso, pois a cultura de soltar pipa faz parte da minha formação cultural como sujeito periférico.
A brincadeira que atravessa gerações de famílias vem correndo sérios riscos de ser extinta, graças ao avanço do entretenimento digital, que prende principalmente a atenção das crianças dentro de casa e as impede de construir vínculos comunitários e coletivos em ambientes físicos com outras crianças e adolescentes.
Esse é um dos principais legados da cultura de soltar pipa nas periferias: promover o vínculo comunitário, afetivo, social, respeito e principalmente a diplomacia entre as crianças e adolescentes que não se conhecem, que muitas vezes se desentendem por causa da brincadeira, fato que promove a cultura do diálogo, para que elas mesmas consigam resolver suas questões.
As tradicionais brigas entre crianças e adolescentes da rua de cima e da rua de baixo por causa de uma laça desleal, envolvendo o famoso ‘corta na mão’, estão deixando de existir. Uma vez que essa possibilidade de conflito, convivência e aprendizado é reduzida ou quase exterminada, por conta do consumo de entretenimento digital, o processo de desenvolvimento interpessoal das crianças é impactado de forma negativa.
As lajes da quebrada
As lajes das periferias e favelas e os poucos terrenos baldios que restam na quebrada já não são ocupados por diversos grupos de crianças e adolescentes para soltar pipa, eliminando o ritual de realizar de forma coletiva as coleções de pipas e linhas, bem como a experiência de fazer rabiola juntos e de enrolar a linha nas latas de óleo e leite ninho.
Mas quais fatores sociais, culturais e tecnológicos têm causado o abandono da cultura de soltar pipa na quebrada?
O princípio desta resposta passa pelo fenômeno da construção de plataformas de jogos eletrônicos que simulam a brincadeira de soltar pipa e que também propõe a formação de comunidades virtuais que propõem substituir o encontro presencial entre crianças e adolescentes, tornando o jogo um mediador das relações entre esse público.
O celular é o dispositivo mais utilizado para acessar esses jogos. Entre eles, está o Pipa Combate, um simulador da brincadeira de soltar pipa com 50 milhões de downloads, que oferece uma experiência bem próxima da realidade, para os usuários realizarem laças entre outros jogadores.
O jogo também oferece a possibilidade de construir comunidades virtuais para realização de festivais de combate de pipa online, tornando possível construir grupos de até oito jogadores. Desta forma, é comum surgirem grupos de crianças e adolescentes que se conhecem por meio do jogo e constroem vínculos cibernéticos, a partir desta experiência.
Plataformas do brincar
Mas não é só o Pipa Combate que vem impactando a cultura de soltar pipa nas periferias. Com mais de 1 bilhão de downloads, o Free Fire é um jogo que também permite a possibilidade de construir comunidades virtuais entre os jogadores. As crianças e adolescentes da quebrada adoram esse jogo.
Nos anos 90, a brincadeira de ‘Polícia e Ladrão’ movimentou os becos e vielas da quebrada, onde as crianças usavam canos de pvc acoplados com bexigas para atirar mamonas ou caroços de feijões em seus adversários. Era uma febre nas periferias e favelas, pois permitia a criação de pequenas armas.
E os grupos de crianças e adolescentes que brincavam de ‘Polícia e Ladrão’ eram exatamente os mesmos que terminavam de soltar pipa ao cair da tarde, e partiam para brincar com as arminhas de cano de pvc nas ruas no entorno de suas casas.
De maneira coletiva e num plano digital, os jogadores saem das ruas do seu bairro e vão para as ruas ambientadas no jogo online, desta forma, o Free Fire reproduz essa cultura do brincar, agregando uma série de características que tornam o jogo bastante atraente no universo da cultura gamer.
Esses dois exemplos de entretenimento digital para crianças e adolescentes representam uma pequena demonstração do que está acontecendo neste momento nas periferias e favelas do Brasil, em relação às mudanças de comportamento da infância e da juventude no contexto de brincadeiras tradicionais que estão desaparecendo, como a cultura de soltar pipa.
*Ronaldo Matos é jornalista, educador, pesquisador de tecnologias da informação e comunicação em contextos de periferias urbanas, e editor do portal de jornalismo periférico Desenrola E Não Me Enrola.