Sobre quando não amei essa criança

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Uma semana antes de termos a certeza pelo teste rápido eu havia sonhado com ele: alto, com uns dois metros de altura, quase como quando sonho com os Orixás, ele era um D’us negro, seu corpo a minha frente se derreteu como sorvete na frente da fogueira e se transformou em um bebê que saiu engatinhando pela sala. 

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Foto: Léu Brito

Quase dez anos até aqui, quanta expectativa criada, imagens projetadas.

Uma semana antes de termos a certeza pelo teste rápido eu havia sonhado com ele: alto, com uns dois metros de altura, quase como quando sonho com os Orixás, ele era um D’us negro, seu corpo a minha frente se derreteu como sorvete na frente da fogueira e se transformou em um bebê que saiu engatinhando pela sala. Não tive dúvida, ele estava chegando.

Nos primeiros dias não sabia muito o que dizer, como me posicionar, aquele era um dos maiores sonhos da minha vida e ao mesmo tempo queria respeitar a escolha da companheira, sem fazer ela achar que tanto fazia pra mim, um lugar que ainda hoje não sei como faria de novo.

Então começou a brincadeira, alimentação, exercícios físicos, doula, sim doula, tão bom e importante.

Nesses anos de expectativa, andei por ai curiando essa parada, desde parteiras tradicionais até a doulagem, como esse universo tão nosso (preto, periférico, amerindio) foi se tornando algo desconhecido e distante da nossa realidade? Ser acompanhada por uma pessoa experiente e acolhedora a todo tipo de situação que iremos, sem saber, passar, isso ajuda muito nas doideras e cuidarmos do que importa.

Nos colocamos a cuidar da nossa gestação de toda forma que sabíamos e desejávamos. Cantava pra ele, já mandando uns jongos, pra ficar ligeiro na sua pretitude rs; Com carinho fazia o som do tambor na barriga, trocamos ideia com ele, contávamos histórias, fazíamos carinhos e a mamãe tomava água de coco, muita, mas muita água de coco, já que não tinha a breja né kkk (esse menino hoje ama coco, óleo de coco, coco ralado, leite de coco, água de coco, se tem coco, é com ele mesmo).

Foi um processo de gestação com suas delícias, sem tirar nem por as exaustões e dores, principalmente da parte da mãe, as do pai eram por sedentarismo mesmo! (parágrafo curto porque me perdi rindo)

Quero dizer com tudo isso que fui nutrindo cada vez mais amor, não tinha expectativa de nascer logo, de ser menino ou menina, mesmo tendo a intuição por causa do sonho que seria menino, mas o espírito dele podia vir no corpo de menina e por ai vai, não é!?

Eis então, conseguimos ir numa casa de parto (Sapopemba), fomos belamente acompanhadas e também fomos pesquisar sobre o plano B, o hospital do Ipiranga, ficamos muito animadas com a sala de parto humanizado que possuem, com a equipe médica e tenho que dizer, demos uma sorte de encontrar uma equipe maravilhosa, disponível, acolhedora… por que no final das contas tivemos que ir pra lá.

Depois das 41 semanas a recomendação da casa de parto era que fossemos para o hospital pois a gravidez poderia ter complicações, até porque estávamos lá, na 42° semana e nada desse menino vir gente!

Ruma pro hospital, sim as contrações do prelúdio haviam começado, fomos para a sala de parto, cada uma em seu processo único ali, muitos sentimentos, medos, dúvidas, de todas as partes atravessando o processo e os sentimentos da mãe. Muita responsa né e desafiador pra cada uma entender e conseguir por o seu melhor pra colaborar com o momento da mãe. As vezes tá todo mundo sem saber o que fazer, com seus medos e histórias, mas ta ai o desafio, de oferecermos o melhor de nossa energia pra mãe.

E foi tenso e intenso, a criança não virava, a barriga ainda alta como todos os outros dias, as médicas cochicharam entre si e da melhor forma que podiam nos convidaram para fazer a cesariana, entendemos que seria aquele caminho mesmo, mesmo com todas as expectativas criadas de termos de forma natural, aquela seria nossa história, aquela era a história do Malik.

Então corre daqui, corre de lá, sala preparada, equipe aprumada (só não precisava da médica chefe estar presente, um desconforto começou ali).

Antes de entrar pra sala de parto ouvi na minha cabeça: ele irá nascer semi morto! Bom pra quem tem intuição acho que vai me entender, ‘da hora’ saber algumas coisas antes que aconteçam, outras nem tanto, comecei a ter medo ali, ao invés de aproveitar a dica pra me acalmar, a frase não dizia, vai ser assim ou assado, só aquilo mesmo, então fiquei na nóia de que ele poderia não sobreviver e como foi difícil aquele sentimento me tomando…

Enfim, lá estava, na sala com a compa, mãozinhas dadas e se apoiando… Eis que pegam o bebê, sem choro, parecia que um silêncio tinha imperado, ela rapidamente olha pra mim e diz que vai ficar tudo bem, já tinha me sacado e tava lá lidando com os sentimentos meus e dela também.

Vi ele saindo da sala sem nem ser aproximado de nós, com uma cor cinza e verde escuro, bizarro… ele havia aspirado mecônio, não tava no filme isso, ninguém tinha nos preparado para aquela situação.

Me chamaram e eu fui lá: pai, estamos fazendo as manobras, houveram complicações e ele irá precisar ficar na UTI com a pediatra. Bom demoro, mas ele vai ficar vivo né? Ela lindamente e nada acolhedora respondeu: não sei, não posso dizer, ‘não sei o que vocês fizeram pra ter ocorrido isso’. Fiz a sonsa, voltei pra sala, conversamos entre nós que iria ficar tudo bem, não sei com que palavras, e fui pra sala de parto humanizado, buscar nossas coisas…

Ali me deixei desmontar, aquele choro descomunal, que eu nem sabia que tinha, chamei até a espiritualidade na chincha, não aceitaria uma situação de não vida, por toda correria que a gente faz na vida, aquele amor, aquela relação, não iria abrir mão… a médica me achou, me tirou do chão, eu já devia estar quase nadando nas lágrimas

Ela me explicou que aspirar mecônio não era algo raro, depois até fomos descobrir várias outras histórias, até quem dizia que a criança ficava com a imunidade reforçada depois de uma dessas!

Ainda assim, controlado, mas não menos surtado, tivemos que aguardar quase 4 horas pra saber como ele estava, tendo nascido lá pelas 6 horas, fui vê-lo só depois das 9hrs… foram 5 dias de UTI, indo e voltando, não podendo dormir com a compa, tendo que ver ele dentro de um acrílico, até que começou a ficar num bercinho aberto, todo entubado ainda e já podíamos pegar no colo, ela dar de mama e tirarmos umas fotos escondidos 🙂

Ao todo foram uns dez dias na UTI!

O evento do parto, acho que foi o ponto principal do que quero colocar, o susto, a tensão, a dor, o medo, angústia, uma série de sentimentos que dominaram meu corpo, em meio a isso fomos aprovados em um edital e não conseguia dar conta, me sentia culpado de não corresponder às demandas do processo do edital (formativo), mas só depois de 3 meses passados, até mais, comecei a me dar conta que eu estava em uma depressão profunda, olhava pra ele e não sentia nada e não entendia como aquilo era possível.

Eu sei chorei horrores, claro que o amava, mas pensava coisas do tipo: devo ter chorado por posse, medo de perder algo, uma propriedade, não me via sentindo amor, aquele avassalador que esperava ter, logo que nascesse e aquilo me assustava.

Fui ler sobre e não falamos muito disso no nosso dia a dia, nem sabia que existia, mas a depressão pós parto é tão comum nos homens quanto nas mulheres, nós homens somos condicionados a não demonstrar os sentimentos, sermos fortes, seguros e tudo o mais que a masculinidade tóxica nos oferece e adoece, ai sê já tá lá, cagado, com essas determinações da sociedade e não tem pra quem recorrer parece, à compa você precisa se colocar à disposição de nutrir, cuidar, zelar, fortalecer. E nessa de se reservar, você se abre com quem? Se expõe pra quem? Isso vai mudar algo do que ta sentindo? Quase que toma um “se liga negão, esse não é seu momento!”

Foram meses amargos e felizes, era doido, aos poucos, uma coisa por vez, tempo ao tempo, ali na pele com pele, no convívio, um dia depois do outro algo foi brotando, eu não sei se era brotar, acho que era outra coisa, algo foi desanuviando, as raivas, medos, angústias se dissipando, o choque daquele susto já podendo se contar sem reviver o medo e cair em lágrimas

É muito doido, os processos químicos que as emoções geram na gente, tiram a cor das coisas, o sabor, a poesia. Fico pensando para além das escolhas ruins que fazemos dentro da masculinidade: de não aceitar que parimos também; que quem teve um filho não foi a mulher, mas nós, eu e ela, você e ela, você e ele… o quanto as vezes nos deparamos com a falta do sentir, amor, apego, carinho, afeto, dengo, magnetismo, atração e isso tudo é uma diminuição na produção das químicas da alegria e do prazer geradas pelo nosso corpo, as: serotonina, dopamina, endorfina e ocitocina. Aumentam-se os medos, angústias, desânimo e ai travestidos de segurança, certeza, acrescidos de irritabilidade e buscando certa racionalidade, decidimos não estarmos naquela relação: com a mãe, com a criança, com a família.

Sabe aquele prazer de postar foto nas redes sociais, mas não conseguir ficar uma hora direto focados na criança? Porque as redes sociais, nos enganam, dando pequenos goles das químicas que falei. E a relação humana é mais complexa, ela requer tempo e esse tempo devolve pequenos encantamentos, satisfações de coisa que plantou a dias ou a anos e o amor parental só vai crescendo, mesmo misturado com as dificuldades.

Mas vale pensar, pedir ajuda, reconhecermos nossas fragilidades, mesmo com toda pressão e demanda de ser o negão incólume, não alcançável por qualquer dor ou medo. E se dar esse tempo de mesmo na visão turva e dolorida de se aproximar ao invés de se afastar, tem uma força que brota e uma magia que rola nos encontros, não sei, eu não saberia viver sem essa relação eu tenho muita vontade desse amor entre eu e a cria!

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