Sobre cinemas não convencionais e filmes defumados

Na onda do chamado cinema de impacto social, uma pausa pra falar de um cineclubismo feito realmente junto ao povo
Por:
Daniel Fagundes

O ano era 2015, saí com meu moleque do fundão da Sul em direção ao metrô Santana. Chegando lá, encontrei meu camarada Guilhermo. Depois de algum tempo sem se ver, decidimos aproveitar o convite do amigo Flávio Galvão, do Coletivo Fabicine, pra pôr o papo em dia. Ele foi nos buscar no metrô com a Kombosa que, mais tarde, se tornaria um cinema itinerante.

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Flavião, vulgo Gordo, estava organizando a retomada das sessões cineclubistas na sedinha do Peri Alto, espaço que reformaram conjuntamente com o grupo de Rap Ca.Gê.Be, uma construção bem loka no meio da favela. Tinha estúdio, sala de reunião e lá em cima no terceiro andar o espaço de exibição, uma laje coberta onde aconteceria o primeiro Churraskino.

Uma sessão de curtas regada a churrasco, cerveja, etc. Bem nos nossos moldes. Nesse dia exibi uma versão remasterizada do meu primeiro doc o “Imagens de uma vida simples” de 2006 sobre Solano Trindade e foi muito massa a experiência, voltamos para a zona sul nem sei como, mas já era tarde da noite, meu pivete provavelmente foi quem me levou de volta.

Esse dia foi mágico e a memória daquela inusitada sessão cineclubista ficou na cabeça por muitos anos. 

Não que já não tivéssemos feito sessões em lugares bem incomuns, mas a energia daquele dia foi especial. Eu já calejado, uma espécie de andarilho de cinema, já tinha feito coisas bem diferentes como exibição em oficina mecânica, mostra de filmes nordestinos no escadão, festival de cinema em campo de várzea, em sacolão da prefeitura, viela e na clássica laje do Zé Batidão. 

Mas o tal Churraskino não saiu da memória, primeiro porque o nome é muito bom, une duas palavras bem diferentes “Churras” abreviação do maloqueirês brasileiro, que significa churrasco e “Kino” que tanto no Alemão como no Russo significam “filme”, ou seja, um churrasco de cinema, uma total dessacralização da sétima arte, ou a certeira inclusão da oitava arte “a gastronômica” no panteão antropofágico do audiovisual.

Do ponto de vista pessoal, o que mais me atraia na ideia era a junção de duas coisas que eu amo, cinema e churrasco, de forma bem informal, mas super respeitosa, na medida certa pra deixar a exibição mais favelada, e também dar aquela glamourizada no churrasco, coisas que só se vê em quebrada.

E foi com essa fórmula na cabeça que 8 anos depois daquele fatídico dia no Peri Alto, do outro lado da cidade, que refundamos o Churraskino, liguei pro Gordo e pedi permissão pra continuar o que eles tinham interrompido precocemente e fomos aperfeiçoando a técnica, já que tínhamos em mãos um espaço ideal que permitia que o churrasco rolasse no fundo, sem atrapalhar o filme. 

Em janeiro de 2024 fizemos a primeira sessão em parceria com o Bloco do Beco no espaço da varanda do Ibiralab. 

Começou tímido, mas logo foi dando sinais de que seria uma febre. Como todo agito de favela o povo foi dando o tom, naquele modelo de festa americana, cada um traz um kilinho de carne, alguma breja, um refri pras crianças e pau no gato.

Instalou-se a primeira sala de cinema 5D do bairro do Jd. Ibirapuera, todos os sentidos voltados para a diferentosca sessão de filmes com som, cheiro, visão, tato e paladar em uníssona direção.

E as parcerias foram chegando, um vizinho ajudou a adaptar um suporte de projetor para altura do nosso teto baixo, Jonny, amigo nosso, ajudou a melhorar o som, a turma do Ibiralab foi ajudando nas compras, na organização do espaço, passamos a ter um churrasqueiro dedicado, fizemos vakinha e rifa pra fortalecer os comes e bebes, e acima de tudo contamos com o apoio e a dedicação dos cineastas amigos em ceder os filmes e virem para fazer o debate com os presentes.

Tivemos sessão do Festival Internacional de Curtas, tivemos sessão em parceria com a Filmicca e o Coletivo Quitus, com o FIANB (Festival Internacional do Audiovisual Negro), tivemos a presença de Lincoln Péricles, Akins Kintê, Thais Scabio, Sérgio Vaz, Vinícius Silva, Aira Bonfim e até a presença internacional do cineasta queniano Tony Gigz. 

O mais engraçado é que normalmente a galera desacredita da seriedade da proposta, um bom exemplo foi quando passamos o filme “Gira Bandeira” do poeta e cineasta parceiro Akins Kintê, ele chegou e o fervo tava pesado, quando entrou tava música rolando churrasco e falatório, daquele modelo, ele me disse logo “Ehh mano será que a galera vai parar pra prestar atenção no filme?” eu de bate pronto acalmei “fica tranquilo irmão que a galera é treinada”.

Sei que ele não botou fé, mas depois se surpreendeu, foi pegar o microfone falar que ia começar e soltar o play o silêncio se instalou, rolou debate, teve fala emocionada e veio até amigo do interior, o também cineasta Rafael Capucho, tudo na disciplina, esgotada a prosa a farra podia voltar, karaokê, folia e diversão, porque pensar e consumir cinema não precisa ser chato, engessado. 

E assim se deu, e assim vem funcionando há quase dois anos. A fórmula é simples e tem a marca da experiência cineclubista que a minha geração construiu na pele e na raça, levando caixas de som na cabeça e projetores por árduos caminhos dessa cidade.

Mas também teve e tem a pedagoginga das ruas a ciência que os saraus nos legaram, saber a hora de falar e silenciar, adaptar os lugares, ser maleável como água entre as frestas.

Pois se não temos bibliotecas, que os bares, os pontos de ônibus se tornem nossos altares da literatura, se não temos estúdios de música, que os barracos e os becos gravem as trilhas da próxima estação, se não temos teatros que as praças e calçadas sejam o palco da atuação verdadeira, se não temos cinemas, e se os que existem não cabem no nosso orçamento, não respeitam nossos corpos, que as lajes e quintais sejam a nossa sessão ideal, pois cineclubismo não se faz com manuais, se faz pisando na lama, projetando no lençol, nas traves dos gols, nas escolas públicas, onde o povo estiver, sem tapete vermelho, pisando o mesmo chão dos trabalhadores e trabalhadoras que inspiraram os filmes e que depois são cerceados em suas próprias narrativas.

Nesse sentido fazer a sessão junto a um espaço de formação autônoma de cinema, como é o Ibiralab, é entender que a ampliação de repertório se dá também por essa via e que tanto o que estudamos em aula como o que assistimos nas telas são expansores de consciência num mesmo processo de troca, que não pretende rezar cartilha para letrados, mas sim ampliar novos públicos para além das Reservas Culturais da vida.

Já há algum tempo que me irrita a lábia mentirosa de quem diz que está fazendo formação de público e fala consigo mesmo, não forma ninguém e vende a imagem de que está levando os filmes do cinemão para espaços informais, papo para inglês vê.

O que chamam de informal são salas montadas de universidades, são espaços “alternativos” como Cine Bijou na praça Roosevelt, Matilha Cultural, entre outros. Nada contra os espaços e seus públicos, a questão é que esses lugares não alcançam a quebrada e aqueles populares que não estão na hype destes circuitos centrais.

O maior problema é não ampliar público de fato e vender a ideia de que o está fazendo. Como sempre, setores mais abastados do mercado audiovisual percebem nossa tecnologia, a formatam, rotulam com seus termos e vendem de volta para a gente.

Nesse caso há uma lógica muito perversa que é a de engendrar esses conceitos na política pública e nos financiamentos privados, dando nova roupa pra uma prática muito antiga, desta forma os playboys ganham os recursos que seriam destinados a projetos periféricos, apenas usando o título de “cinema de impacto social”, mas na real na maioria dos casos sem sequer pisar em uma favela.

O verdadeiro impacto social é quando uma senhora que nunca tinha ido a uma sala de cinema vai pela primeira vez num espaço como o cinema na laje, impacto social é quando um cineclube torna-se um evento mensal importante com a presença do público local, fortalecendo o comércio do entorno, as redes de atuação política, quando se faz um festival que desde a programação, a quem faz comida, o material gráfico ou a manutenção estão em sintonia, são do mesmo território, estão igualmente sendo favorecidos, e posso dizer que estas iniciativas, assim como o Churraskino, existem e estão em todas as regiões periféricas da cidade, na zona norte tem o Coletivo Fabicine, na zona leste o Cine Campinho, no centro o Cine Quebrada, na ZO tem o CineAfrobase, enfim opções construídas na luta cotidiana e que impactam muito mais socialmente que a réplica renitente dos cinéfilos cults, falando com o próprio umbigo.

Este texto é um desabafo, mas também um convite para você leitor de quebrada, de todas as regiões, dia 21/06 teremos uma sessão especial com a presença dos parceiros inspiradores deste projeto que é potência na zona sul. Reencontraremos a Fabicine lá da norte para um Churraskino no extremo sul, no meio da rua do Jd. Ibirapuera, quer ver na prática como acontece? Cola que será sucesso, saiba mais em @ibira_lab 

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