Há alguns anos, em um almoço de domingo na casa da avó, minha sobrinha contou que o professor de filosofia tentou organizar um debate na sala de aula. Ele queria dividir a turma em duas, de um lado quem era contra o aborto, deveria defender seus porquês. De outro, quem era a favor, deveria fazer igual. “Mas não deu certo, né? Quem vai ser contra o aborto?”, disse ela, no auge da tranquilidade de seus 14 anos. Foi um reboliço. Daqueles bons mesmo. Argumentos variados apareceram, até que alguém disse: “a mulher que faz um aborto fica traumatizada pra sempre!”
Nessa hora, ela já tinha lançado um: tia, me ajuda! E eu, que não sou psicóloga, mas gosto demais de trocar ideia, respondi que o aborto, quando feito em condições seguras e respeitosas, não é necessariamente traumático e que as pessoas têm respostas emocionais diferentes a experiências difíceis.
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No Brasil, em que o aborto está necessariamente ligado a situações de trauma, como a violência sexual, risco de vida da mulher e, em particular, a criminalização, talvez o impacto psicológico seja realmente aumentado.
Além disso, há os casos de luto parental, como as malformações e abortos espontâneos, onde a perda de uma gestação desejada é geralmente vivida com muito sofrimento. Mas ressaltei que era difícil mensurar, já que não temos as condições ideais para produzir dados científicos confiáveis no Brasil.
Não temos como entrevistar quem faz um aborto fora destas condições traumáticas, porque a interrupção voluntária de uma gestação ainda é crime e as pessoas precisam se esconder, mas que eu mesma conhecia várias pessoas muito felizes e confortáveis com suas decisões de abortar.
Além disso, a criminalização faz com que não haja como garantir tratamento médico acolhedor para ninguém, já que profissionais de saúde não recebem o treinamento necessário, e quase não cuidam adequadamente nem dos abortos espontâneos, nem dos previstos em lei.
O debate sobre os supostos impactos psicológicos do aborto é muito antigo. Nos anos 1980, o tal trauma era equiparado ao dos soldados que voltavam da guerra do Vietnã. Esse mês, no entanto, um projeto de lei, apresentado pela vereadora Sonaira Fernandes, institui a “Semana de Conscientização Sobre a Síndrome Pós-aborto” para “informar e conscientizar à população da cidade de São Paulo sobre as consequências psicológicas que acometem a mulher após a realização de procedimentos abortivos”.
Não é novidade que a extrema direita mundial seja bem avessa a evidências científicas, então é meio chover no molhado. Mas vocês me desculpem, educar sobre aborto é meu trabalho.
É comum defensores da existência da tal síndrome dizerem que é “evidente” que as mulheres se arrependem de abortar, que sofrem perda de autoestima e depressão. Mas as evidências científicas seguem dizendo o contrário.
A professora estadunidense Diana Greene Foster é autora do mais extenso estudo sobre os impactos de fazer ou ter negado um aborto na vida e na saúde mental das mulheres, feito quando o aborto ainda era legal em todo seu país. Ao apresentar os resultados, conta de um juiz que defendia a restrição no acesso ao aborto dizendo exatamente isso: era evidente, embora as evidências não existissem.
Diana e sua equipe visitaram 30 clínicas de aborto nos Estados Unidos e selecionaram quase mil pacientes que foram acompanhadas por dez anos. Essas mulheres foram separadas em dois grupos: as que fizeram um aborto e as que tiveram o seu aborto negado por estarem acima do limite de semanas permitido. O livro, Gravidez Indesejada: The Turnaway Study, foi publicado no Brasil em 2024, pela Sextante.
As mulheres tinham, no início, condições sociais e de saúde similares, e eram entrevistadas a cada seis meses, para medir suas saúde física, mental e o bem-estar de suas famílias. Durante os anos em que foram acompanhadas, contudo, suas vidas tomaram caminhos que poderiam ser atribuídos ao fato de terem ou não tido acesso ao aborto que queriam e necessitavam.
Primeiro, um maior impacto na saúde mental (como ansiedade, depressão, baixa autoestima) e saúde física (incluindo uma morte no parto) entre as que foram obrigadas a parir. Os resultados em termos sociais e econômicos também são importantes: as que conseguiram abortar eram menos impactadas pela instabilidade profissional e pobreza, além de conseguir mais facilmente sair de relações violentas.
Poder planejar a reprodução impacta sobre ter maior ou menor autonomia financeira, em poder sair de um relacionamento abusivo, no cuidado das crianças que já existem ou em seguir com os estudos, coisas que, segundo a OMS, afetam profundamente a saúde mental.
Ao mesmo tempo, esse projeto de lei de SP insinua novamente que as mulheres não sabem tomar decisões informadas sobre seus próprios projetos de vida. Como se não tivéssemos a capacidade intelectual ou a estabilidade emocional necessárias para tanto, quando, na verdade, essa é geralmente uma decisão que coloca na balança finanças, saúde, família, filhos, relacionamentos e ambições de vida. E isso porque as mulheres cuidam de todo mundo, como já falei aqui antes, e é disso que trata a Justiça Reprodutiva, há décadas.
Por fim, queria fazer um convite: dia 28 de setembro é celebrado como dia Latinoamericano e Caribenho pela Legalização de Descriminalização do Aborto e o Dia Internacional do Aborto Seguro. Então, se você está em São Paulo nesse mês tão importante para feministas do mundo inteiro, não deixe de ocupar a Avenida Paulista, e participar da Marcha organizada pela Frente Estadual pela Legalização do Aborto, em frente ao MASP, a partir das 11h.
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