Como seu próprio vulgo indica, Regicida (matador de reis) nunca se acomodou ao lado dos poderosos, não fez e não faz concessão quando o assunto é o enfrentamento das desigualdades e da cultura racista e nazifacista que sempre rondou sua existência e a própria construção desse país.
Na matéria de hoje, na coluna que eu, Daniel Fagundes, mantenho aqui no Desenrola, decidi fazer de um modo diferente e entrevistar, dessa vez sem câmeras, esse jovem tiozinho de 40 anos, referência do nosso cinema periférico, preto e anarquista. Um importante realizador do que chamamos de cinema nacional, aquele cinema que revela as entranhas de um país que o nega historicamente em suas narrativas. Um cinema que não para, tendo ou não tendo recursos, pois a urgência das histórias e da forma de agir com a câmera não é pautada pelas armadilhas do capital.
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Regicida é pai do Oruan, nasceu em Salto de Pirapora, mas cresceu na periferia da capital paulista, especificamente no bairro da Brasilândia, onde conheceu a cena cultural e de onde apontou pela primeira vez suas lentes para enaltecer o povo de luta do seu bairro e de outras quebradas. Entre seus filmes estão “Unindo Quebradas”, “25 de Julho – Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa”, “Metaleiras Negras”, “Um Breve Relato” e “Confluências”, esse último, além de ser seu mais recente trabalho, é uma obra que resume de forma brilhante o pensamento do mestre quilombola Antônio Bispo e por consequência resume também a proposta política do cinema do próprio autor, confluir favelas, quilombos e aldeias. E como diria Nego Bispo, quando isso acontecer o ‘asfalto vai derreter!’.

Como iniciou nas artes, qual o primeiro contato com o mundo cultural?
Iniciei nas artes a partir do desenho, na escola eu era bastante dedicado nas aulas de artes e pegava tarefas extras com a professora que era desenhista, aprendi técnicas diferentes das que haviam no currículo escolar, disso caminhei para observar mais pinturas e fotografias.
Cabe comentar aqui que no ano de 2015 Regicida desenvolveu junto de Sônia Bischain e Enver Padovezzi o livro “Olhares da Brasa – Fotografia, Cultura Daqui”, uma linda homenagem em fotografias do território da Brasilândia. Conheça no link: (CLIQUE AQUI)
Como ingressou no movimento anarcopunk?
Desde muito cedo eu conheci o rolê Punk por estar nas ruas com o pessoal do Hip-Hop, andei com os UBC e alguns pixadores do bairro, na época sentia falta de um grupo organizadamente anarquista, logo me vi fazendo rolê com os punks e com isso me inseri nos ativismos políticos e manifestações de rua, onde fui inserido nos conceitos do AnarcoPunk.
Como iniciou a caminhada no audiovisual?
Audiovisual sempre foi para mim a ferramenta mais eficaz para acessar as pessoas, em comparação ao livro ou ao teatro e assim como as rádios, entendi que para falar com as pessoas eu precisava usar dessas ferramentas. Já fui zineiro, dos meus 13 anos de idade até os 26 produzi e co-produzi 4 zines e cada um com muitas edições. Com a gana de acessar mais pessoas resolvi encarar o caminho de aprender a gravar, roteirizar e editar, sou autodidata e com meu primeiro filme “Unindo Quebradas- AnarcoRap em São Paulo” vi que tinha potencial em acessar lugares e pessoas que meus zines ainda não haviam alcançado. Sempre destacando que a linguagem é uma poderosa ferramenta pedagógica e por trabalhar com educação popular e social sempre tenho audiovisual junto comigo nesses momentos.

Como vem pensando sua atuação no audiovisual desde o começo até agora? Quais os avanços e quais os principais desafios?
Eu começo no audiovisual de forma autodidata e forjando meus equipamentos para as produções acontecerem, passo por me estruturar e fundar uma produtora periférica e afro-indígena de audiovisual libertário a Do Morro Produções. Observando meus passos e refletindo sobre eles consigo criar métodos de ação e estruturo o ciclo de roteirizar assuntos, produzir gravações e exibir para o público, pois além de tudo venho conseguindo manter durante alguns anos um cineclube aqui na norte.
Entendendo a diferença que os cineclubes fazem na difusão das produções periféricas e mesmo contraculturais como as feitas por punks, pessoas do Hip-Hop e grupos ativistas no geral, nesse processo me desafiei a fundar um festival internacional de filmes, junto com minha irmã Marina Knup, o “Festival do Filme Anarquista e Punk de São Paulo”.
Nesses meus quase 20 anos de produções e organizando espaços voltados para a linguagem, percebi que os formatos mudaram bastante e as pessoas que querem acessar essas produções são outras, se mantivermos os mesmos costumes da minha geração e das gerações que vieram antes de mim, vamos acabar falando para nós mesmos e esse é um desafio que venho tentando enfrentar.
De que forma o seu envolvimento com a cultura anarcopunk é importante para o que você produz no campo audiovisual?
Alguns fundamentos que trago do AnarcoPunk me balizam para caminhar com minhas criações no audiovisual, e não falo apenas sobre os filmes. Fundar o Festival em São Paulo foi importante para diversas movidas pelo mundo, o que Marina Knup e eu iniciamos em 2012, de fundar o primeiro festival no Brasil voltado para produções punks e contraculturais, acabou inspirando outras organizações a entenderem que também podiam e hoje temos diversos outros festivais e mostras de audiovisual pela América Latina, que difundem material audiovisual punk, anarquista ou mesmo libertário.


Aproveite e fale mais do festival do filme anarquista e punk de São Paulo.
Então, como eu disse, o Festival surgiu em 2012 e o encerramos na sua 11ª edição, no ano passado [2024]. Anualmente reunimos de 30 a 40 produções de todo o planeta, alguns materiais que nunca haviam sido exibidos no Brasil foram trazidos para cá por nós, porque os parceiros mundo afora viram no festival um espaço potente onde poderiam exibir com qualidade seus filmes. Vimos coletivos de vídeo sendo criados para poderem produzir e exibir conosco, alimentamos uma chama que nossos cineclubes não estavam mais alcançando. Junto com Elaine Campos, Juliano Angelin, Ruivo Lopes, Clayton João e Joaquim Santos mantivemos uma boa bagunça todo mês de dezembro, mês que acontecia o festival.
O que você pensa sobre o discurso comum que coloca o punk e até a cena rock de forma mais ampla como um movimento de maioria branca?
Quem não conhece a própria história não saberá de onde veio e até mesmo para onde pode caminhar. O Rock é preto, nascido do Blues e desenvolvido por Sister Rosetta, tudo que se criou depois dela é uma disputa de discurso. Assim como o samba, a capoeira, a religiosidade e as tecnologias civilizatórias, tudo que foi concebido pelos africanos e as africanas em diáspora acabou sendo cooptado, de forma a se dizer que é branco para ser aceito pelos brancos e eles poderem consumir sem assumir o quanto temos a oferecer de cultura, história e filosofia.
Logo, acreditar nesse discurso de que o rock é musica de jovens brancos e o punk é uma cena de homens brancos é só mais uma idealização de consumo para mercantilizar fenômenos culturais de potência que são feitos por não brancos, e quem pensa o contrário está de chapéu atolado.
Como você tem feito o enfrentamento do racismo na sociedade pelo lugar do anarcopunk?
Meu enfrentamento vem através do resistir cotidianamente de cabeça erguida, Punk é ação direta e dá o exemplo prático sobre como existir sem se render a cultura do consumo, ir contra as relações mercadológicas e toda cosmofobia instaurada a gerações em nossas mentes.
Nem sempre estou blindado às questões que me atravessam, da mesma forma que atravessam meus pares e parentes pretos, indígenas e periféricos, mas sigo vivo com a Do Morro Produções, onde tenho esse foco no registro arquivista das memórias de militâncias periféricas libertárias.
E o Coletivo Malungo que se organiza a partir do propósito de forjar ambientes pedagógicos para se pensar sobre o quanto o racismo e a cosmofobia está impregnada nas estruturas educacionais e criar meios legais e até ilegais para a superação da visão eurocêntrica que banaliza nossas vidas cotidianamente, principalmente na educação e nas instituições escolares.

Regicida ao lado do rapper Eduardo Taddeo Foto: Sonia Regina Bischain/ Arquivo Regicida

Você está há 17 anos no audiovisual, fazendo trabalhos autorais e colaborando com outras produções do cinemão também. Faça um levantamento breve dos principais trabalhos que você realizou e destes outros que atuou e, se possível, diga quais obras que mais curtiu trabalhar.
Assino meu primeiro trampo solo em 2008 e de lá para cá tenho cerca de 30 produções minhas ou que fiz parte. Unindo Quebradas (2008) é uma das que mais me marcaram, não apenas por ser minha primeira, mas também por ter conhecido muita gente durante as gravações (um dia lanço a continuação já gravada, mas nunca editada).
Feminismo Negro Contado em Primeira Pessoa (2013) é meu maior trabalho até hoje, me levou para lugares que nunca pensei estar e me fez crescer um pouco mais como ser humano. Tenho um curta sobre minha mãe onde me vi num desafio de registrar uma das pessoas que mais admiro, mas esse trabalho não quis lançar abertamente. Fiz fotografia para produções que estão na Netflix, Amazon e GloboPlay e me orgulho disso, assim como estar no catálogo da TodesPlay e AfroFlix. Poderia citar algumas produções feitas junto a grupo de jovens durante os cursos que promovo, mas deixo aqui a curiosidade para quem está lendo ir atrás.
No momento, meu último trabalho lançado é um curta que produzi sobre Antonio Bispo a partir do convívio que tive com ele. Fui feliz em ter durante alguns anos esse mano para trocar ideias, tomar cachaça, discutir e discordar em vários pontos, mas sempre aprendendo algo novo, com isso consegui registrar um pouco do Bispo lavrador, pai, avô e querido na cidade que morava, e não apenas o quilombola pensador cosmológico que nos deixou um grande legado em seus livros. “Confluências” (2020) trás parte desses registros que fiz em sua comunidade no Piauí, espero conseguir lançar um próximo trabalho mais amplo, que terá mais um pouco desses momentos que gravei com ele em vida.
Assista “Confluências”: https://www.youtube.com/watch?v=fi-4T8tdYDY
No momento político atual, como você acha que o audiovisual, o cineclubismo, a comunicação independente podem ampliar possibilidades de engajamento social nas quebradas? Quais experiências você tem conhecimento hoje que são boas referências nesse sentido?
Poderia citar algumas referências sobre como as quebradas estão avançando, mas quero pontuar apenas a APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro), pois mais pessoas precisam ter ciência que esse espaço existe e está muito ativo. Não vou comentar o que é a APAN, porque novamente quero que as mentes curiosas que estão lendo esse meu relato corram atrás de saber.
Quais os planos futuros de trabalho, de carreira, o que você tem pensado deste ponto em diante?
O futuro é algo que pouco penso sobre como será enquanto Do Morro Produções, pois vejo que se não mudar a forma de se fazer ficarei nostálgico e não é meu objetivo, quero falar para as gerações mais novas e talvez artisticamente não consiga, mas sei que tenho algo a dizer que os interessam, qual vai ser o formato ou a linguagem ainda estou tentando formular, mas passado um longo processo de depressão e agora recém saído desse buraco que a doença nos coloca, me vejo de novo nas pistas e disposto a voltar a botar fogo por aí, pois o regicídio está por vir.

Foto: Arquivo Regicida

Foto: Arquivo Regicida