O poder do ouvir: um relato de algumas horas no centro de São Paulo

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No dia 12 de agosto de 2021, novamente fiz algumas caminhadas no centro da cidade de São Paulo e não pude deixar de notar a presença da política ao meu redor. 

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Foto: Marcelo Renda @rendaphoto

No dia 12 de agosto de 2021, novamente fiz algumas caminhadas no centro da cidade de São Paulo e não pude deixar de notar a presença da política ao meu redor. A fome gritava como eu nunca tinha visto, nem nos meus anos acompanhando projetos sociais e vivendo em um bairro pobre e sem acessos básicos.

Lembro da primeira vez que vi a face mais dura da fome, eu tinha entre 11 e 12 anos, joguei um pote de sorvete no lixo, na mesma hora um senhor correu e pegou meu pote, eu sentia um misto de sensações, mas eu já não entendia como em um país com tanta comida existiam pessoas comendo do lixo.

No dia 12 de agosto não foi diferente, muitas famílias na rua, muitas crianças na Avenida Paulista em meio a um vento frio pedindo comida, essa era a São Paulo rica, o motor do Brasil, e como eu poderia me orgulhar de morar numa cidade com políticas de austeridade tão cruéis?

Penso neste momento que essas pessoas já não eram pessoas, ao serem vistas morando na rua passam a ser vistas como monstruosidades, não são cidadãs dignas, um incômodo e fedem como o lixo, poderíamos passar por cima delas como se fossem parte da própria rua e ninguém choraria suas mortes. 

Talvez neste exato momento você achou meu texto duro demais ou exagerado, mas a Prefeitura taca água nessas pessoas, confisca seus cobertores e os expulsa de locais onde dormem no frio, elas já são tratadas como eu descrevi, mas no Brasil tudo é velado e a violência mora no nosso olhar. 

Em frente ao Carrefour da Pamplona vejo uma mãe e sua filha, uma cena inédita para meus olhos, já que nunca havia visto alguém pedir comida lá apesar de frequentar há anos. A mãe pedia em voz baixa um miojo “daqueles que vem em pote moça” para ela comer com a filha, eu entrei no mercado atordoada em ver aquela cena e ser parte dela, procurei algo mais útil, tentei encontrar coisas mais saudáveis para comer na rua e que conseguissem gerar sensação de saciedade, no fim, sabia que iria comprar o que a moça pediu, um miojo daqueles de pote, decidi comprar um bolo e uma bebida que crianças costumam tomar.

Assim que fui entregar as comidas para a mãe dela os olhos brilharam, ela sorriu, a mãe me pediu obrigada em voz baixa e eu tentei falar algo melhor antes de virar minhas costas para a fome. O aumento da população moradora de rua não eram os dados, estava no meu olhar, estava na minha frente e na frente de todos os cidadãos que entraram naquele Carrefour sem ouvir essa mãe, e eu não era melhor que eles.

Um pouco mais a frente, entro em uma farmácia onde há três crianças na porta pedindo moedas, uma delas entra para comprar algumas coisas, dentre elas um pacote de fraldas que eu fiquei a noite inteira pensando para quem seria, para a mãe que estaria em outro lugar, para uma irmã, não sei, mas os cidadãos que se consideravam os verdadeiros donos do espaço pareciam não estar confortáveis com aquela sujeira na farmácia limpa, nada de moedas para o que nem é considerado gente, era assim que eu acompanhava quieta aquela cena digna de um filme triste, mas não era sobre isso, era sobre a realidade.

Os trabalhadores daquele local embora também um pouco incomodados olhavam com compadecimento. A pobreza tem várias nuances, mas nós aprendemos, mesmo que de maneira errônea, a nos importarmos. Nós pobres gostamos de dar comida, são heranças ancestrais, apesar disso eles não podiam fazer muito já que ali era seu local de trabalho, assim eu saio de mais uma história, massacrada pela riqueza de São Paulo.

Agora enquanto espero um uber uma senhora passa me avisando para tomar cuidado pois estavam roubando: “acabei de ver uma menininha ser roubada, guarda o celular, eles tão roubando, ela tá chorando lá em cima”. Como em poucas horas eu poderia estar vivenciando tantos tipos de violência? E por que eu era uma cidadã digna até de aviso, mas aquelas crianças não mereciam um olhar?

Pensando nessas coisas eu entro no uber, o motorista era um rapaz jovem, boliviano que morava no Brasil há sete anos e durante aquela viagem nós vamos conversar sobre as condições horríveis de trabalho na uber e na informalidade.

Ele me conta as dificuldades que estavam aumentando, eu vou dialogando com o que sei sobre trabalho e renda, ele me pergunta sobre algumas coisas do Brasil acerca de educação e eu tento sair das minhas caixinhas de linguagens e utilizar formas simples de expressão para falar de temas grandes e complexos, dialogamos e vamos fazendo comparações de educação na Bolívia e no Brasil, eu estava mesmo em São Paulo.

Ser empresário não dá, estudar nem pensar.
Tem que trampar ou ripar para os irmãos sustentar

A Vida é Desafio, música do Racionais Mc’s

Foto: Marcelo Renda @rendaphoto

Mas Agnes, eu não entendi. O que informalidade tem a ver com gente morando na rua? 

Todos esses acontecimentos pautam trabalho, educação, renda e acesso, todos dependem de políticas públicas que visem realmente construir um Estado com um foco para o povo e não para beneficiar o bolso de empresários brancos.

As pessoas estão na rua só por estarem? Uma vida decente garantida com inúmeros outros fatores atuantes não as fariam poder ter um teto? Nosso Estado tem deveres e eles estão e são garantidos pela constituição, mas o que vejo é somente um Estado de direitos para ele mesmo. Ele pode nos matar, nos violentar, permitir trabalhos análogos a escravidão e ainda assim ser exaltado. A nós resta a submissão, o desespero se amanhã teremos o que comer ou seremos tratados como o fedor da cidade e a sujeira da rua.

Tudo isso ocorrendo em meio a uma pandemia que já matou mais de 500 mil pessoas, mas infelizmente nossa população não parará de morrer após o controle da pandemia, pois não morreu somente por isso, nosso país negligenciou diversas políticas possíveis em um país desigual e o governo de São Paulo também.

Para ouvir precisamos primeiro trabalhar nosso olhar, ele precisa se distanciar do que acreditamos e enxergar a crueldade da realidade, onde estamos nela? Serei como o lixo no chão? 

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