Opinião

O poder do olhar: um relato de alguns minutos na Avenida Paulista

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 A fome me entristece, não por existir, mas por ser o fim que possui um planejamento governamental.

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Avenida Paulista – Foto: @Menino_do_drone

No dia 25 de junho ando pela cidade, não êxito em procurar os contrastes, na Avenida Paulista muitos jovens pertencentes às classes mais abastadas, homens adultos vestidos de terno e gravata ou mulheres com saltos que custam o salário de um estagiário andavam ao lado da fome. Por toda Avenida desde a Consolação até chegar ao Parque Trianon era possível ver famílias inteiras em situação de rua, muitas crianças. O Censo da População em Situação de Rua 2019 divulgado em 2020 revelou que São Paulo teria a maior população de rua do Brasil, 24.344 pessoas e em sua maioria homens e negros, a fome tem cor neste país.

Para além do desprezo dos que se consideravam os verdadeiros cidadãos daquele lugar, poderia destacar as nuances do mundo do trabalho, muitos jovens em cima de uma bicicleta, muitas vezes sem máscara, com uma mochila térmica nas costas escrita Ifood, a informalidade ali se choca com a estabilidade de quem descia de roupa social dos prédios para ir almoçar.

Ao mesmo tempo, me chama atenção que não necessariamente quem tem poder aquisitivo toma mais cuidados contra a COVID-19. Nesses choques de realidade eu não sou apenas quem olha, mas faz parte daquela dinâmica, e penso que talvez a única coisa que unisse essas pessoas dos prédios com os entregadores de aplicativo fossem as máscaras de pano parecidas.

Contudo, me lembro que todos são trabalhadores, é fato, são as nuances do mundo do trabalho no capitalismo. Me reencontro com a crueldade de quem conta a história do Ifood como a narrativa empreendedora dos sonhos, isso me corrói.

Enquanto observo esses entregadores, em sua maioria homens jovens passarem rapidamente, me dou conta que já estou adentrando o Parque Trianon, sempre lotado de PM’s em volta, sempre sem máscaras, me pergunto a função do Estado, mas dentro do parque vejo jovens do colégio Dante caminhando, sorrindo, comendo no parque, uma vida tranquila, se destacam pois na frente do parque passam e se sentam pessoas em situação de rua que muitas vezes pedem comida, o desespero da fome mora ao lado da tranquilidade.

Nessa narrativa eu também evito olhar para muitas dessas famílias, eu tento, assim como aprendemos durante a vida na cidade, é um fato, eu não poderia ajudar todos. A fome me entristece, não por existir, mas por ser o fim que possui um planejamento governamental.

Estou em São Paulo, a selva e cidade mais rica, nesse momento lembro do aviso da minha mãe para prestar atenção no aumento de roubos na Avenida Paulista, não era minha primeira vez andando ali, mas eu relembrava desse aviso. Era a falta de política pública, era a ausência de Estado ou a presença de um Estado com um fim planejado onde nós morremos? Ou vamos nos matar?

Era fato, eu estava em meio a riqueza, mas o dinheiro não estava distribuído. 

A Avenida se torna aqui a forma mais simples de analisar os contrastes e os aumentos das vulnerabilidades na pandemia, nesse momento estou trabalhando meu olhar, me lembro de Roberto Cardoso de Oliveira, a presença da universidade nessa narrativa passa também a ser um fator importante sobre o recorte do meu olhar.

O trabalho informal está presente ali, na figura dos entregadores da Rappi ou Ifood e nos motoristas de aplicativos como Uber, são diferentes nuances que apresentam uma realidade óbvia, a pandemia não é igual para todos e esse governo com certeza agravou os problemas relacionados ao desemprego.

Nessa hora me lembro de um domingo, 4 de abril onde eu estava também na Avenida Paulista, porém desta vez dentro de um Uber, era Domingo de Páscoa e o motorista não parecia muito animado, no fim do nosso percurso uma mulher adulta com dois filhos pequenos bate no vidro do carro, ela pedia algo para dar de comer aos filhos, era a fome e a informalidade na minha frente, era se entristecer por trabalhar em um feriado e não ter o que comer no feriado. Eu não tinha nada além de uma barra de chocolate com cereja que quando dei para ela senti vontade de chorar, relembrar isso não é me enaltecer, mas relembrar o olhar. Com quais olhos nós estamos observando nossa realidade?

Novamente, no dia 12 de abril pego outro Uber também em direção à Avenida Paulista, em poucos minutos o motorista que era um rapaz jovem, simpático e bem aberto me conta sua história: formado na área de tecnologia saiu do Pará para ‘tentar a vida’ em São Paulo, a informalidade que era temporária era atravessada por uma entrevista importante que ele tinha às 15h, seu pedido era a torcida para que conseguisse a estabilidade, o sonho era chegar ao topo do capitalismo. Aqui eu já treinava meus ouvidos para abandonar minhas crenças, mas ele ainda carregava o afeto e eu realmente torço por esse rapaz até agora. 

A realidade é sensível. 

Dentro de todas essas narrativas que reescreverei após ler alguns artigos sobre trabalho e juventude, relembro um trecho que fala do trabalho no sentido tripalium que segundo ALBORNOZ é um instrumento feito de três paus aguçados, algumas vezes ainda munidos de pontas de ferro, no qual agricultores bateriam o trigo, as espigas de milho, o linho, para rasgá-los e esfiapa-los … A tripalium se liga ao verbo do latim vulgar tripaliare, que significa torturar.

Nessas narrativas a maior parte das pessoas não pareciam ter escolhido seus postos, ninguém escolhe trabalhar na informalidade onde se você não corre risco você não come. Além disso, essas narrativas são marcadas por meus encontros com pessoas jovens, isso me sensibiliza, qual nosso futuro? Nossos males? Nossas doenças? Existiria um remédio para após o fim planejado? 

O fato é óbvio e claro, estamos morrendo como o planejado. 

“O que eu vou ser quando eu crescer? Quer dizer, se eu crescer, se eu não morrer.” 

Facção Central, 12 de Outubro

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