Lendo, escrevendo…

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 Minha chegada nesse terreiro sagrado de escritas periféricas. Licença povaria!

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Foto: Arquivo pessoal

Oprê! Olá, você que está aqui pra desenrolar o papo no Desenrola e Não Me Enrola… Já peço desculpas se o texto tá muito longo, tá? A intenção não é enrolar… Conto com tua paciência e peço licença pra chegar.

Meu nome é Aloysio Letra e eu recentemente (na verdade, já há algum tempo) fui convidado pra escrever por aqui. Talvez eu escreva crônicas, textos de opinião, textos sobre cultura, política ou use este espaço apenas pra me expressar como um articulador cultural de periferia que se permite ter uma “visão sobre o mundo”. Afinal, é bom ter um espaço coletivo pra poder escrevinhar…

Eu sou filho de Roberta, mineirinha de Muriaé, filho de Aloisio, baiano de Nova Lage. Sou preto de gradação clara, hetero cis, me reivindico afro-indígena, tenho uns quarenta e poucos anos, tenho o pé chato, sou de capricórnio (não me culpe), sou anti-racista, anti-sexista, anti-homotransfobia, anti-capacitista e sou morador de Éssepê no extremo Leste, lá nas distintas e distantes terras dos Guaianás (Pra quem usa trens da CPTM: Guaianases).

Esse é tipo um texto de apresentação, um flerte, para a gente se conhecer melhor e por isso resolvi escrever, porque ler e escrever foram se tornando importantes pra mim ao longo da minha vida.

Eu comecei a ler muito cedo. Minha mãe me alfabetizou lá pelos 4 anos de idade porque na época tinha muito medo do analfabetismo (que nessa época era bem comum). Como meus pais sempre foram pobres e trabalhavam muito fora de casa, isso foi muito bom, porque eu tinha poucos brinquedos e o maior lance então era usar a criatividade e a imaginação pra passar o tempo em casa. Lembro que li vários dos livros dos meus pais, mesmo sem entender muito, até depois ter acesso a livros de fato infantis. Parecia que aquelas vozes, as palavras novas e as figuras imaginárias ficavam perambulando minha mente durante os dias. Eu lia rótulo de embalagens, capas de discos de vinil, me imaginava outra pessoa, noutro lugar distante que não numa casa trancada ou num quarto pequeno e apertado.

Na escola, dos primeiros anos eu era bem tímido, por vários motivos, dentre eles por mudar de escola muitas vezes por conta das diversas mudanças de casa. A cada escola nova eu queria saber se tinha biblioteca ou um lugar pra pegar livros emprestados. Gostava muito de ler os livrinhos da série Vaga-lume, muito comuns nessa época e que podiam ser achados da biblioteca até a banca de livros usados da feirinha de domingo. Eram livros muito legais, bem ilustrados e nesse tempo eu fiquei fã de todos livros do Marcos Rey, com sua escrita cinematográfica e também era apaixonado pelo mundo imagético de “O Escaravelho do Diabo” (1974) e do maravilhoso “O caso da Borboleta Atíria” (1975), da mineira e premiadíssima Lúcia Machado de Almeida. 

Eu sou filho de Roberta, mineirinha de Muriaé, filho de Aloisio, baiano de Nova Lage. Foto: Arquivo pessoal.

Minha família não tinha grana, então eu não tinha acesso a muitos gibis (histórias em quadrinhos). A maioria dos gibis que li na infância era quando ia ao dentista, e daí por causa dos gibis eu adorava ir no consultório da dentista no Jabaquara. Lá eu lia histórias da Disney, da Marvel e da DC Comics e só ficava meio cabreiro porque nas revistas de heróis tinha muita estória incompleta, histórias que precisavam de mais gibis pra saber o fim. Era a época do auge da editora Abril, que editava muito do que se lia de história em quadrinhos no Brasil.

Da saudade que nascia entre cada visita ao dentista, nasceu a vontade de escrever e desenhar, e daí passei a criar minhas próprias estórinhas, tirinhas, heróis próprios, personagens diversos. Era bem legal ter vários papéis dobrados e colados, com estórias próprias que ficavam cheirando a naftalina quando guardadas na gaveta das meias.

Eu passava muito tempo sozinho em casa e a minha mãe lia e tinha algumas revistas, edições da revista Cláudia, revistas com guia de nomes pra se dar a bebês, revistas de receita, revista Veja, Veja São Paulo. Ficava muito curioso pra ler sobre as pessoas que via na TV: cantoras famosas, atrizes de novela e gostava de ler os textos de abertura das revistas, aquele texto que falava sobre o que cada matéria trazia pra aquela edição que tinha o tema tal e que tinha como destaque a Fulana ou a Beltrana.

Através dessas revistas eu conhecia melhor a minha mãe, que muito trabalhava, em casa e fora dela, e que por isso tinha pouco tempo pra prosear, amar, se amar. Nossas conversas indiretas muitas vezes foram através da leitura das suas revistas. O que ela lia me falava muito sobre ela e as pressões que ela sofreu no século 20.

Vez em quando eu também emprestava as revistas da minha mãe ou os poucos gibis que tinha, para amigas da escola, em troca das revistas que elas liam, assim também lia de quando em quando as revistas Capricho, revistas sobre comportamento e algumas revistinhas de horóscopo mesmo sem entender muita coisa.

Meu pai e minha mãe liam jornais quando tinham grana. Quando cheguei a pré-adolescência me interessei em ler de uma forma mais completa aqueles jornais. Antes eu só lia o caderno infantil que saía periodicamente. Meu pai lia mais a Folha de São Paulo e aos finais de semana o Estadão, vez em quando lia o Jornal da Tarde. Papai sempre comentava sobre o que lia e falava que a gente precisava se informar pra não ser alienado, com ele me habituei a acompanhar o jornalismo. Levava muita bronca por bagunçar a ordem dos cadernos do jornal do meu pai. Pra mim era difícil a organização daquele calhamaço de papel.

Nessa época, de tanto ler o que os “adultos sérios” liam, eu peguei gosto por crônicas. Aquela escrita meio que conversava comigo, criava amigos imaginários, mas eu ainda não sentia como poderia algum dia escrever algo do tipo e em espaços de destaque. Curtia muito o Bussunda, Mário Prata e mais um bocado de coisa que eu não recordo muito bem. Sei que o gosto por crônica depois me levou a buscar livros de crônicas, coletâneas como a “Comédias da Vida Privada” do Luís Fernando Veríssimo, que mais tarde na escola chegamos a montar numa peça teatral.

Do período da infância à adolescência lembro de escrever muitas cartas. Cartas para amigos, garotas da escola, para irmãos que moravam distante (tenho 8 irmãos, 4 homens e 3 mulheres) e cartas pra minha mãe ou meu pai após terem se separado, tempo em que eu vivia alternando minha morada, vezes morando com uma(um) ou com outra(o), de lá pra cá.

Eu lembro ainda da sensação de passar horas escrevendo e reescrevendo as emoções e os sentimentos, as saudades e as vontades que me atravessavam nos dias, semanas e meses de distância entre uma carta e outra. Ainda tenho numa velha lata de panetone algumas dessas cartas, algumas que guardam ainda os cheiros das tintas de caneta colorida ou mesmo cheiro de perfumes que vez em quando colocávamos para transportar a pessoa para as nossas sensações durante a escrita. Li e escrevi cartas com desenhos, com ingressos de shows colados com durex, cartas com ou como presentes, com fitas coloridas, com verdades e mentiras inofensivas, com indignações de vez em quando. 

Foto: Felipe Ribeiro

Com vinte e poucos anos, na época casado com minha melhor amiga da escola, eu trabalhava numa fábrica de vidro em Itaquera e revezava meu tempo de folga e os horários de almoço lendo livros e gibis usados que eu comprava quando sobrava um troco. Ensaiava ter uma coleção de gibis do Wolverine. Não sobrou uma só revista desse tempo.

Anos depois, durante a faculdade de Rádio e TV, me apaixonei por roteiros e por artistas que tinham o dom de criar imagens, paisagens e rimas visuais com as letras no papel. Adorava também os livros da Linda Seger, do Robert Mckee e os cursos de diálogo da ótima dialoguista Adriana Falcão. Amei a escrita pra cinema!

Durante muitos anos, apesar de imaginar, escrever, ler e sonhar, a verdade é que fora das trocas de cartas do círculo mais íntimo, eu não tinha muito acesso a escritas de outras pessoas que como eu, pretas e de periferia, escreviam, liam, sonhavam. Isso mudou em 2007, quando fui no primeiro sarau, a convite de uma amiga, Mayara Penina (hoje jornalista no Nós, mulheres da periferia).

Nessa época eu trabalhava num banco e a Mayara me convidou pro Politeama, um sarau numa região central da cidade de São Paulo. Eu fiquei fascinado com aquela troca de material autoral, com as provocações e incentivos para criações coletivas, frescas ali na hora, mas também meio intrigado pra saber como isso se dava nas periferias. A partir daí comecei a procurar saraus de periferia na minha região.

Em 2008, conheci o Sarau do Marginaliaria em São Miguel e através deles o pessoal do Sarau “O que dizem os umbigos?” no Itaim Paulista. Amor à primeira vista! Samara Oliveira, Daniel Marques, Queila Rodrigues e muitas poetas me fizeram apaixonar pelas possibilidades coletivas dos saraus de periferia, e os saraus passaram então a constituir também a minha formação cultural e política.

Nas escutas e leituras dos saraus comecei a ter acesso a outras “linhas editoriais”, outros sensos e olhares, agora mais livres do binarismo das editoras e redes de comunicação hegemônica. Foi um respiro e nesse ponto em diante me permitiria me reconhecer ainda mais nas escritas das mulheres, homens e bixas de periferia, pessoas que queriam pra si, mais do que a sociedade as destinava.

Bem, esse texto é um pouco sobre como a leitura e escrita perpassou a minha vida e estar aqui escrevendo num espaço de periferia, num portal de jornalismo atuante nas quebradas de Éssepê, é um alento num tempo tão violento, tão indelicado, tão cheio de guerras velhas e novas.

Vez em quando escreverei por aqui sobre o que der na telha, às vezes sobre indignações, às vezes sobre utopias vindas de quem sonha um mundo plural, poético e melhor pra todes. 

Agradeço se você quiser comentar aqui, me escreve aí como a leitura e a escrita te tocou na sua vida, o que achou desse texto e por favor, se possível, visite os textos de mais colunistas daqui do Desenrola e Não Me Enrola. Até mês que vem! Saravá as mudanças!

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